A organização Amigos da Terra - Amazônia Brasileira anunciou ter entrado ontem com uma representação perante o Ministério Público Federal (MPF), a respeito da implementação da Medida Provisória (MP) 422, cuja conversão em lei foi aprovada ontem pelo Senado, seguindo para sanção presidencial. A norma facilita a privatização de terras públicas na Amazônia, ampliando até 1.500 hectares o procedimento simplificado para que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) conceda a titulação para ocupantes ilegais. Por outro lado, exige a comprovação de cultivos na área ocupada, o que pressupõe desmatamento.
Desde março de 2006, a lei estabelece que é crime o desmatamento ou uso econômico de florestas em quaisquer terras públicas, incluindo aquelas devolutas. O diretor da organização, Roberto Smeraldi, comentou: "Qualquer desmatamento ou uso econômico, realizados nessas terras após março de 2006, constituem crime: paradoxalmente, o mesmo uso econômico, por meio de cultivo de pastagem ou agrícola, é o que pode permitir que o ocupante ganhe títulos. Mas assim fazendo, ele poderá se entregar, sendo enquadrado pela atividade criminosa".
A Amigos da Terra solicitou ao MPF requerer ao Incra a lista dos beneficiados e abrir inquérito sobre o processo, pois os documentos exigidos para a concessão dos títulos podem representar a comprovação do crime.
Abaixo, os trechos principais da representação.[...] - a Medida Provisória 422/08, alterando o inciso II do § 2o-B do art. 17 da Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993, prevê a possibilidade de dispensar licitação para concessão de títulos de propriedade privada em áreas de até quinze módulos fiscais, ou 1.500 hectares, para ocupantes de terras públicas na Amazônia Legal, por parte do Instituto de Colonização e Reforma Agrária.
- por sua vez, o art. 118 § 2o II da Lei 11.196/05 - alterando a mesma Lei 8.666/93, já havia estabelecido que os "requisitos mínimos" para a concessão de título de propriedade em terras públicas ocupadas por particulares, dispensando licitação, sejam os da existência de "cultura e moradia" (grifos da autora).
- uma condição necessária para que exista o requisito de implantação de quaisquer "cultura" (aqui entendida como forma de cultivo agrícola ou de pastagem) é o da conversão do uso do solo. Por se tratar da região amazônica, caracterizada por formações florestais diversas, tais como florestas densas, florestas de transição e cerrados, tal conversão só pode ocorrer mediante desmatamento.
- o referido art. 118 da Lei 11.196/05 também prevê, em seu § 2o-A, que a norma se aplique genericamente a "áreas em que a detenção por particular seja comprovadamente anterior a 1o de dezembro de 2004"; mesmo assim, a norma permite que áreas desmatadas em qualquer momento, mesmo posteriormente a esta data, mas que fossem objeto de detenção por particulares (e não necessariamente os que hoje solicitam a titulação) antes de dezembro de 2004, venham a ser objeto da regularização sem licitação.
- por outro lado, o art. 50-A da Lei 9.605/98, modificado pela Lei 11.284/2006, estipula que é crime, com previsão de reclusão de 2 a 4 anos,"desmatar, explorar economicamente ou degradar floresta, plantada ou nativa, em terras de domínio público ou devolutas" (grifos da autora).
- em conclusão, referidas normas, conjuntamente, permitem que atividades que constituem crime possam ser utilizadas na documentação comprobatória para a apuração das condições, por parte do INCRA, para efetivar a expedição simpificada de títulos. Em particular, ocupantes de terras públicas - que tenham ocupado as mesmas antes de dezembro de 2004 ou que tenham adquirido referida posse de outros que as ocupavam antes de dezembro de 2004, e que, sem prejuízo de quando tenha iniciado a ocupação, tenham desmatado qualquer parte da área ocupada após a entrada em vigor da lei 11.284/2006 - ao pleitear a titulação, estão assumindo um crime.
- em seu site, no qual explica aos potenciais beneficiários a maneira em que a norma está sendo aplicada (http://www.incra.gov.br/index.php?visualiza=10298,2497), o INCRA reforça a legítima preocupação de que a ilegalidade seja utilizada para referida regularização, quando informa: "o tamanho do imóvel a ser regularizado sempre depende de sua exploração racional. Assim, a área explorada + a preservação permanente + a reserva legal compõem o tamanho máximo do imóvel pretendido". Ora, o INCRA sinaliza assim que estaria aplicando o conceito de reserva legal (que só se aplica às terras particulares) às terras públicas anteriormente ocupadas. Note-se que a atividade criminal caracterizada pela Lei 11.284/2006 se aplica a qualquer desmatamento ou uso econômico de áreas "em terras de domínio público ou devolutas", independentemente dele ter acontecido em medida inferior ou superior ao que a lei estabelece para reserva legal das terras particulares.
Isto posto, requer a autora desta representação a adoção das providências cabíveis a fim de apurar os fatos acima descritos, eventualmente responsabilizar os seus autores, e, desta forma, impedir a continuidade de, ou prevenir, condutas ilegais e lesivas ao meio ambiente assim como ao patrimônio público.
Em particular, sugere a autora estudar a necessidade de determinar abertura de inquérito, após solicitar ao INCRA a apresentação de todos os processos realizados para expedição de títulos desde março de 2008, quando vigora a MP 422 - e futuramente, após sua sanção, com base na lei que virá a converter a MP, aprovada ontem pelo Congresso Nacional), visando auferir eventuais atividades de desmatamento realizadas após março de 2006 nas terras públicas pelas quais é pleiteada a expedição de títulos, independentemente da data de ocupação das terras em objeto. O desmatamento pode ser averiguado (entre outros instrumentos) pelos dados mensais de sensoriamento remoto do sistema DETER do INPE, disponíveis na internet. [...]
(Amigos da Terra -
Amazônia Brasileira, 10/07/2008)