A reunião do G-8 no Japão começou sob o impacto da nova presença russa. A questão colocada para os membros veteranos era mais ou menos assim: Dmitri Medvedev, o novo líder russo, é mesmo para valer? Ou eles deverão continuar a tratar, ainda que secretamente, com Vladmir Putin?
Ainda não há resposta firme para essa questão. Ainda mais que o verdadeiro desafio para Medvedev não vem das mornas conversações no Japão, mas da Europa. Os Estados Unidos acabam de fechar um acordo com a República Tcheca para construir um radar anti-mísseis ao sul de Praga. A explicação oficial é a de que essa estação servirá para proteger a Europa de mísseis possivelmente disparados do Irã. Mas o Irã, pelo menos de momento, não possui mísseis dessa capacidade. Assim o olho do radar parece mesmo estar voltado para a Rússia.
Como reagiu esta? O Ministério de Relações Exteriores lançou uma declaração dizendo que se o acordo for ratificado pelos respectivos parlamentos (EUA e República Tcheca), a Rússia reagirá não diplomaticamente, mas militar e tecnicamente. Resta saber se esta é uma resposta novo (?) estilo Medvedev ou no velho(?) estilo Putin.
De resto, o G-8 até o momento debateu as questões dos alimentos e da mudança climática. Os países do G-8, reunidos primeiro, chegaram a um “acordo” em que propõem a adoção de reduções nas emissões de gás-carbônico da ordem de 50% até 2050. Isso exigiria medidas intermediárias (não especificadas até 2020). Mas a proposta, na verdade, se dirige ao próximo encontro da ONU, sobre o tema, a se realizar em Copenhague, em 2009.
Por quê? Porque para os países do G-8 a adesão da China e da Índia a essas reduções (apesar de estar nesta lista, o caso do Brasil é sempre tratado à parte) é fundamental. O presidente George Bush deu uma declaração dizendo que sem a China e a Índia não há acordo possível.
Entretanto, China e Índia têm sinalizado na direção de contrapropostas em que os países do “Ocidente” deveriam arcar com uma carga maior de redução, da ordem de 80% a 90%. Ou seja, as declarações são enfáticas, mas o impasse também é e continua. Na reunião subseqüente a dos países do G-8 (Alemanha, Itália, Japão, Canadá, Estados Unidos, Grã-Bretanha, França e Rússia) com a União Européia, mais o Brasil, a China, a Índia, o México, a Austrália e a Coréia do Sul, o clima foi frio. Houve um reconhecimento de que o corte nas emissões de carbono é necessário, mas näo se fixaram critérios nem um calendário.
Sobre a questão alimentar, a situação não é muito diferente, embora o impasse seja de outra natureza. Existem sinais suficientes de que a especulação financeira no mercado de futuros com o preço das commodities agrícolas mais as energéticas, como o petróleo e derivados, está catapultando os preços para cima.
Chama mais a atenção o caso de commodities como o petróleo e seus derivados, e o de produtos ligados à alimentação, como trigo, milho e o óleo e o grão de soja.
Entre março de 2003 e março de 2008, nas bolsas norte-americanas, o preço do petróleo cru e de alguns de seus derivados aumentou mais de 190%, em alguns casos passando dos 210%. O preço da gasolina aumentou 145% e o do gás natural 145%. O milho aumentou 134% , o óleo de soja 199%, o grão de soja 143%, e o trigo 314%.
Os ministros da área financeira dos países do G8 reuniram-se anteriormente em Osaka, no Japão, em meados de junho, e debateram o assunto, no que se refere ao preço do petróleo. Houve discordâncias entre os ministros; os da Itália, da França e do Japão mostraram-se mais favoráveis à possibilidade da especulação influir nos preços. Os dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha menos. A posição do ministro Fukushiro Nukaga, do Japão, interpretou a média das preocupações. Disse ele que, mesmo se a oferta e a procura fossem a razão principal para o aumento nos preços, “fatores financeiros podem ter algum tipo de papel – nós ainda não sabemos”.
O Secretário do Tesouro norte-americano, Hank Paulson, manifestou temor de que a denúncia da especulação financeira provocasse a busca de um bode expiatório para uma situação que é complexa. Mas o ministro italiano Giulio Tremonti declarou na ocasião que, se a conjugação entre oferta e procura “pode provocar aumentos de preços, mas não tão violentos nem repentinos”.
Em conseqüência da controvérsia, os ministros do G8 concordaram em pedir um estudo sobre o tema ao Fundo Monetário Internacional.
Entretanto, outras manifestações mais contundentes têm vindo à luz, sobre o mesmo tema, e não apenas referindo-se ao petróleo. Enquanto em Roma, em maio passado, a FAO organizava um debate sobre o problema da fome no mundo devido à alta dos preços dos alimentos, o Senado norte-americano, através de suas comissões, promoveu uma série de audiências sobre o tema da especulação financeira.
Depondo perante a Comissão de Comércio daquela casa, o investidor George Soros manifestou preocupação incisiva quanto a estar a especulação financeira promovendo uma alta extra, ou uma “super-bolha” nos preços do petróleo e derivados.
As declarações de Soros vieram ao encontro de uma série de observações feitas no mesmo debate, que enfatizam o surgimento de uma nova estrutura no mercado das commodities, pelo menos daquelas sobre que pairem suspeitas de escassez no futuro, como é o caso do petróleo e derivados, e do milho no caso norte-americano, devido à procura prevista de etanol.
Ed Morse, analista da casa Lehman Brothers, do mercado financeiro, advertiu que existe uma nova realidade no mercado em geral, qual seja, a do investimento que acumula estoques virtuais, através da internet. Ele estava se referindo ao chamado “boom” do “.com”. no mercado financeiro, uma maneira curiosa de se referir ao mercado de futuros.
A observação que se aponta é a de que fatores diversos, como possibilidade de escassez, instabilidades políticas, restrições a exportações por parte de países produtores, a depreciação do dólar, fazem não só disparar o preço das commodities no mercado de futuros, como atraem investidores não habituais nesse mercado, cujo comportamento impulsiona mais ainda os preços para cima.
No mesmo mês de maio passado, a Comissão de Segurança Interna e de Assuntos do Governo (Homeland Security and Governamental Affairs) do Senado norte-americano realizou uma série de audiências, cuja transcrição está disponível na internet, sobre o tema específico: “Especulação financeira e o mercado de commodities: estão os investidores institucionais e os “hedge funds” contribuindo para a inflação dos preços dos alimentos e da energia?”.
Os depoentes vieram de várias origens, como o Sindicato Nacional dos Fazendeiros, ou oficiais, como no caso de Jeffrey Harris, Economista-chefe da Comissão (do mesmo Senado) sobre o Comércio de Futuros (Commodity Futures Tradings Commission).
É importante observar que, embora os depoimentos divergissem quanto:
1) a possibilidade de investidores financeiros influírem na alta dos preços; e
2) o grau dessa influência, se ela existir, todos eles ressaltaram que o aumento nos preços do petróleo e derivados era importante, senão decisivo, para o aumento nos custos dos produtos agrícolas e dos alimentos.
O depoimento mais contundente quanto à possibilidade de investidores financeiros estarem não só interferindo, mas tendo papel condutor, na alta dos preços da commodities veio de um especialista na área, de empresa do setor, Michael W. Masters, da Masters Capital Management, na sessão de 20 de maio.
Masters expôs que há um novo tipo de investidor no mercado de futuros, que é chamado de “Index Investor”, porque recorre aos índices de preços e altas previstos em publicações da área, e as mais variadas, que vão desde um jornal como The Economist até empresas especializadas, como a Goldman Sachs Commodity Index e a Dow-Jones AIG Commodity Index. Não são pequenos investidores. Ao contrário, são, sobretudo, os chamados “Investidores Institucionais”, como Fundos de Pensão, tanto corporativos como governamentais, Fundos Previdenciários da Área da Saúde, até Fundos Administrativos de Universidades.
Esses investidores não têm um comportamento tradicional perante o mercado de futuros. Em primeiro lugar, a alta dos preços não os detém, ao contrário, os atrai, porque, baseados nas previsões das dificuldades que ocorrerão, confiam em que a tendência será de aumentos ainda maiores. Vão esticando os prazos de realização de suas compras de estoques futuros, para até cinco ou seis anos em casos extremos. Não compram e vendem, como os investidores tradicionais; só compram, desequilibrando os preços para cima. Para adquirirem posições mais vantajosas, ao invés de vender os seus “futuros”, eles tendem a comprar novos prazos para suas realizações. Isso retira liquidez do mercado, inflacionando-o mais ainda.
Segundo Masters, no fim de 2003 esse tipo de “Index Investor”, só nos Estados Unidos, trouxe 13 bilhões de dólares para o mercado de futuros, mas em março de 2008 essa quantia subiu para 260 bilhões.
Para dar um exemplo do impacto desse tipo de investimento, ele comparou o aumento da procura por petróleo por parte da China, comumente apontada como uma das responsáveis pelo aumento dos preços, com a determinada por esse novo aporte financeiro.
Nos últimos 5 anos a demanda anual chinesa subiu de 1,8 bilhões de barris para 2,8 bilhões. No mesmo período, a compra de futuros no mercado de petróleo, por parte dos “Index Investors”, aumentou 848 milhões de barris de petróleo. Esses investidores detinham, em maio deste ano, uma reserva de 1,1 bilhão de barris de petróleo. Esse mesmo tipo de comportamento ocorreu em relação aos estoques dos produtos cujos preços vêm subindo dramaticamente nos últimos anos e meses, como os de derivados de petróleo, milho, trigo, soja e óleo de soja, além de café e metais, como alumínio, chumbo, níquel, zinco e cobre, cujos aumentos de preço, nos últimos cinco anos, foram de 120% (alumínio) a 564% (chumbo).
Nos primeiros 52 dias úteis para o comércio em 2008, esse tipo de novo investidor, o “Index Investor”, antes ausente ou muito menor no mercado de futuros, colocou somente nos Estados Unidos cerca de 55 bilhões de dólares nesse mercado, uma injeção antes inexistente de mais de um bilhão de dólares por dia. A conclusão do estudo é de que esses novos aportes estão não só inflacionando o mercado de futuros, mas também pressionando o mercado presente de produtos, empurrando todos os preços para cima. E que somente medidas de controle desse mercado, com a limitação da presença deste tipo de investidor até então atípico, poderão ter efeitos sensíveis e duradouros, a longo prazo.
Aparentemente, essa nova situação no mercado de futuros poderia ser danosa para a produção de alimentos numa situação de crise. A especulação financeira agravaria a transferência de áreas de plantio destinadas à alimentação para a produção de energia. Isso pode até ser verdade no caso do milho, sobretudo, nos Estados Unidos. Entretanto a situação do Brasil é muito diversa, como apontou o Diretor-Geral Assistente da FAO, Alexander Muller, em entrevista à revista alemã Der Spiegel .
Primeiro, ele ressaltou a importância dos preços do petróleo e derivados para a alta nos preços dos alimentos:
“Spiegel online: Qual é a razão principal para a produção de alimentos não estar mais acompanhando a procura?
Muller: Vários fatores, incluindo de modo muito significativo o aumento do preço do petróleo. A agricultura tradicional é muito intensiva no que toca à energia: necessita petróleo para fertilizantes, pesticidas, tratores e transporte. Para escapar disso, muitos governos estão promovendo combustíveis a partir de produtos agrícolas. Isto vincula o preço do pão ao preço do petróleo”.
A seguir, a revista perguntou se a produção de biocombustíveis deveria ser suspensa para se obter uma situação mais confortável no que se refere ao preço e à produção de alimentos.
Muller: Isso seria bom em países onde as florestas são abatidas para dar lugar ao plantio que permite a produção de óleo de palma e de soja. Mas devem-se ver as diferenças. A situação é diferente no Brasil. Lá os biocombustíveis estão sendo produzidos sem subsídios do Estado, ao contrário da Europa e dos Estados Unidos. Mas é necessário que haja acordos internacionais sobre como produzir, de modo sustentável, os bio-combustíveis, sem agravar a crise internacional de alimentos”.
A posição de Muller foi praticamente ratificada por Robert Zoellick, presidente do Banco Mundial, no atual encontro do G-8. Ressaltou ele (sem abordar o tema da especulação) que a produção de biocombustíveis a partir do milho e de outros produtos, bem como a restrição a áreas de plantio para a alimentação em favor da energia pode potenciar o problema da fome. Mas ressalvou o caso da cana-de-açúcar e especificamente o caso do Brasil.
Há divergências teóricas sobre a questão da especulação financeira e o preço dos produtos agrícolas, da energia, e de outras commodities conexas. Os economistas que se opõem ao ponto de vista de Masters, mais conservadores, falam que as causas dessa disparada de preços, tanto nas commodities energéticas como nas de produtos agrícolas, estão nas “regras fundamentais” do mercado. Ou seja, ainda que indiretamente, mesmo que sem intenções “malignas”, “culpam” os pobres, que estão comendo mais e estão querendo consumir mais energia, como na China, na Índia e também no Brasil. A única alternativa viável seria aumentar a produção. (Mas deve-se levar em conta, por exemplo, que mesmo se o Brasil começar a explorar suas novas reservas de petróleo, o mesmo fazendo o Irã e até mesmo os Estados Unidos em sua plataforma marítima, a chegada dessa nova produção aos mercados levará ainda de cinco a dez anos).
Já os economistas do ponto de vista de Masters argumentam que não adianta aumentar a produção. O novo tipo de investidor que está modificando a estrutura do mercado é atípico, como já se disse, e quanto mais o preço das commodities aumentar, mais ele comprará, na expectativa de seus lucros no futuro serão ainda maiores, e também porque seu objetivo é proteger seus capitais diante das oscilações das moedas, sobretudo o dólar, e da inflação. Ou seja, esse tipo de investidor reage como aqueles que compram jóias e objetos de arte: por mais que os mercados oscilem, um Picasso terá sempre o valor e o preço de um Picasso. Só que agora não se trata de telas nem de ourivesarias, mas de mercadorias virtuais a serem atualizadas no futuro.
Para reverter essa prática, só é possível uma ação concertada em nível de governos, no plano internacional, que regulamente de maneira mais estrita o funcionamento do mercado de commodities, sobretudo o de futuros. Como, aliás, vem dizendo o presidente Lula, que deve repetir o argumento na reunião do G-8.
Agora, acreditar que esse coelho vai sair da cartola dos atuais cartolas do G-8, isso é bem outra história.
(Por Flávio Aguiar, CartaMaior, 09/07/2008)