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trabalho escravo cana-de-açúcar
2008-07-07
No estado mais rico do país, cortadores de cana ainda enfrentam dificuldades. Situação é pior nas propriedades de fornecedoras. Mesmo nesses casos, responsabilidade pelas condições de trabalho também é das grandes usinas

Com equipamentos e alojamentos em dia, peões da Cosan trabalham em condições melhores que os contratados pelos fornecedores da mesma empresa
Na manhã do dia 24 de junho, em Piracicaba (SP), o grupo móvel de fiscalização rural, coordenado pela Superintendência de Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE-SP) dividiu-se em dois. Parte das caminhonetes se dirigiu à Usina São Francisco, do Grupo Cosan - o maior produtor de açúcar e álcool do Brasil -, em Elias Fausto (SP), a 130 km da cidade de São Paulo, e o restante seguiu para uma frente de trabalho no município de Anhembi (SP), a 232 km da capital paulista.

A menos de um quilômetro da usina, o primeiro grupo encontrou cerca de 20 trabalhadores que cortavam cana. Todos usavam botas, luvas, chapéu, perneiras, óculos de proteção e eram registrados diretamente pela Cosan. No meio da plantação, havia um banheiro e um ônibus, que trazia uma cobertura especial e algumas mesas e cadeiras, garantindo o almoço na sombra. Oriundos de Minas Gerais, estavam satisfeitos com o tratamento.

Em Anhembi, a situação foi diferente. Não havia banheiro nem cadeiras, os equipamentos de proteção estavam gastos, e o ônibus, em péssimo estado, foi interditado. Além das más condições materiais, também havia reclamações de maus-tratos. A pessoa encarregada de cuidar dos peões era chamada de "feitor". Os trabalhadores haviam sido aliciados por um gato no Piauí, e cortavam cana para um fornecedor do mesmo Grupo Cosan.

Fornecedores
Para o procurador do Ministério Publico do Trabalho (MPT) Mário Antonio Gomes, que participou da ação de fiscalização em Piracicaba, as condições trabalhistas do setor canavieiro no estado de São Paulo têm melhorado, principalmente porque as usinas deixaram de contratar empresas de terceirização de mão-de-obra para o corte da cana. Novos problemas estão surgindo, contudo, entre os fornecedores de cana das usinas.

"Quando as usinas contrataram diretamente, as condições melhoraram, mas quando os trabalhadores estão atrelados a fornecedores, há uma precarização das condições de trabalho", ilustra.
Em bairro próximo à zona urbana de Piracicaba, trabalhadores que não tinham carteira assinada foram "escondidos" para não ser pegos pela fiscalização, abandonando até bicicleta no canavial

Essa diferença foi verificada novamente no dia 25 de junho, quando o grupo móvel saiu novamente. No município do Rio das Pedras (SP), a 154 km da capital, um alojamento de trabalhadores contratados diretamente pela Cosan tinha quartos e banheiros limpos, com pintura nova. O jantar servido aos contratados era farto e não havia superlotação.

Já em terras vizinhas à cidade de Piracicaba, uma fornecedora do grupo Cosan escondeu os trabalhadores minutos antes da chegada da fiscalização. Foram encontrados chapéus, mochilas e até uma bicicleta no meio da cana recém-cortada. Durante a conversa com os auditores, a empregadora admitiu que não assinava a carteira dos trabalhadores, e foi autuada.

Questionado pela Repórter Brasil sobre a exigência do cumprimento da legislação trabalhista por parte dos seus fornecedores, o Grupo Cosan respondeu que o contrato pode até ser cancelado quando alguma irregularidade é encontrada: "A Cosan solicita dos fornecedores o cumprimento rigoroso das normas trabalhistas. Em caso de descumprimento, o grupo exige a regularização imediata sob pena de suspender ou até cancelar o contrato com o fornecedor da cana-de-açúcar.", informa a assessoria de comunicação da empresa. Todos os empregados diretos da empresa, adiciona a Cosan, são contratados pelo regime da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), "dispondo de todos direitos trabalhistas garantidos por lei".

Responsabilidade
A terceirização de mão-de-obra para o corte da cana é ilegal, mas a compra de cana de agricultores autônomos, não. De acordo com Mário Gomes, contudo, as usinas também têm que responder perante à Justiça pelas condições de trabalho oferecidas pelos seus fornecedores. "Representantes das usinas entram nas propriedades, controlam a produção, chegam a mandar mais do que o próprio dono da terra. Se a usina tem essa ingerência sobre a propriedade, ela deve ter a responsabilidade solidária", explica.

Segundo a auditora fiscal do trabalho Sueko Uski, que também acompanhou o grupo móvel na região de Piracicaba, as empresas já são co-responsabilizadas administrativamente quando se percebe que a plantação é controlada por elas. "Nesse caso [de Anhembi], por exemplo, os equipamentos de proteção e o ônibus tinham o logotipo da Cosan. O trabalhador até sabe que ele foi contratado por outro, mas a cana que ele corta vai para a Cosan", afirma.

Na Justiça do Trabalho, os tribunais superiores já começaram a reconhecer essa relação. Em 16 de junho, uma decisão do Tribunal Superior do Trabalho (TST) condenou a Usina da Barra S.A Açúcar e Álcool, de Barra Bonita (SP), a pagar verbas indenizatórias a um cortador de cana que trabalhava na fazenda de um dos seus fornecedores. Os ministros entenderam, por unanimidade que quem mais se beneficiava com o trabalho do peão era a usina.

Assim como costuma acontecer na região de Piracicaba, o cortador de Barra Bonita não trabalhava diretamente para o fornecedor da usina: era empregado de uma empresa terceirizadora de mão-de-obra.

Dificuldades
A existência de cortadores trabalhando para fornecedores de cana torna mais difícil a tarefa do grupo móvel no setor sucroalcooleiro. Eles são mais numerosos, menos concentrados e não tão facilmente localizados como as grandes usinas. Muitas vezes esses produtores menores não têm condições de arcar com todos os custos da regularização dos trabalhadores. "É mais difícil porque eles são pulverizados. Uma usina chega a ter 100 fornecedores, e apenas no estado de SP são cerca de 300 usinas", afirma o procurador do MPT.

Apesar de a fiscalização estar centrando fogo nas contratações irregulares feitas por fornecedores de cana, ainda são encontrados problemas nas usinas. No final da operação em Piracicaba, procuradores flagraram 29 trabalhadores alojados em situação precária em Rio das Pedras. Eles trabalhavam para a Usina Comanche, de Tatuí (SP). Gastavam até seis horas por dia para ir e voltar do trabalho e não recebiam nada por esse tempo, o que é ilegal.
No alojamento "Maria Bonita", no município de Rio das Pedras, 3 trabalhadores dividem quarto de 6 m²

Por conta própria
O problema dos alojamentos precários muitas vezes foge da esfera de atuação da fiscalização, já que há muitos trabalhadores migrantes da Região Norte e Nordeste que vêm por conta própria para o Sudeste. Eles alugam quartos sem condições mínimas de segurança e higiene na periferia das cidades do interior paulista, em busca de trabalho.

"Como eles ficam aqui apenas por uma temporada, não têm condições de montar uma casa. Há gente dormindo em rede, compram fogões e geladeiras usadas. O primeiro e segundo salários são para pagar o transporte, aluguel, água, luz e o mercado", explica a irmã Inês Facioli, da Pastoral do Migrante de Guariba (SP).

Em muitos casos, trazem a família, que é obrigada a viver durante meses num único cômodo, em quartos quentes e apertados, com a fiação elétrica exposta, dividindo o banheiro com outros locatários do "alojamento".

Foi essa a situação encontrada pelo grupo móvel no alojamento conhecido como "Maria Bonita", também em Rio das Pedras. Uma pequena porta voltada para a rua dava acesso a um corredor apertado onde sete quartos se enfileiravam. Os trabalhadores pagavam R$ 70 por mês para dividir um quarto de 6 m² com mais duas pessoas. Em alguns cômodos, colchões ficavam ao lado de botijões de gás.

"Muitos deles começaram a trazer a família para não ter que voltar no final do ano, mas alguns já estão arrependidos. O aumento do preço dos alimentos fez com que eles tivessem dificuldades para manter a família aqui", conta irmã Inês. Mesmo submetidos a más condições de moradia, a religiosa relata que os trabalhadores se sentem melhor quando estão perto da esposa e dos filhos. "Essa é uma tendência. Os que trazem a família têm um outro astral. É um apoio moral, afetivo", explica a representante da Pastoral do Migrante.

Já que as moradias irregulares de migrantes que vêm por conta própria não podem ser fiscalizadas como parte do vínculo trabalhista, os procuradores do MPT firmaram um acordo com as vigilâncias sanitárias municipais para tentar melhorar as condições desses locais. Desde o início desta safra 2008/2009, esses órgãos têm atuado na fiscalização dos alojamentos. Mas a julgar pelas condições encontradas em Rio das Pedras, ainda há muito a ser feito.

A União da Indústria de Cana-de-açúcar (Unica) também foi questionada pela Repórter Brasil a respeito da responsabilidade das usinas sobre os trabalhadores que prestam serviços para seus fornecedores, mas não se pronunciou até o fechamento desta matéria.

(Repórter Brasil, 07/07/2008)

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