Não há quem não saiba da indicação de determinados produtos naturais para o combate a certos males do organismo. Esse conhecimento que remonta aos indígenas passou a fazer parte da sabedoria popular (Etnofarmacologia). Cabe à ciência validar o uso das preparações biologicamente ativas que justificam as ações curativas popularmente propaladas. Isso se faz tanto com estudos que avaliam a eficácia, a segurança e a qualidade do produto como identificando a substância ou o grupo de substâncias curativas presentes no produto natural.
Análises vão da matéria-prima ao produto acabado
O professor Marcos José Salvador, primeiro docente contratado do curso de Farmácia, lotado no Departamento de Fisiologia Vegetal, do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, vem atuando na área de tecnologia fitofarmacêutica e farmacognosia, com pesquisas envolvendo aspectos metodológicos, tecnológicos, de validação e da legislação. A farmacognosia é a ciência que estuda as matérias naturais, principalmente de origem vegetal e animal.
O professor constata que com a criação do curso de Farmácia, intensificam-se na Universidade atividades de pesquisa em Ciências Farmacêuticas. A linha de pesquisa que coordena tem como tema a Tecnologia Fitofarmacêutica e Produtos Naturais: pesquisa e desenvolvimento, que envolve estudos que vão desde a coleta do material vegetal, a identificação de possíveis substâncias ativas e a incorporação desse material a uma formulação farmacêutica, estudos estes que são, via de regra, monitorados por atividades biológicas relacionadas ao uso na medicina popular do material em análise.
Os componentes da biodiversidade podem fornecer ampla gama de produtos úteis e de importância econômica. Dentre eles, o pesquisador cita os fitoterápicos e os fitofármacos, originados de recursos genéticos vegetais. Fitoterápicos são medicamentos preparados exclusivamente à base de plantas medicinais, caso da espinheira santa, empregada no tratamento de úlcera gástrica. Os fitofármacos são substâncias extraídas de plantas, devidamente caracterizadas em termos químicos, que apresentam atividades farmacológicas, caso do jaborandi, cujas folhas são utilizadas para a produção do fármaco pilocarpina, substância ativa usada para o tratamento do glaucoma.
Salvador explica que os medicamentos, constituintes ativos de origem natural ou sintética, devem apresentar segurança, eficácia e qualidade. A segurança está ligada à determinação da posologia adequada para minimizar efeitos adversos; a eficácia garante a ação terapêutica prevista; a qualidade é a garantia da uniformidade, eficácia e segurança da formulação, independente da quantidade produzida.
Farmacêutico-bioquímico, graduado pela Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto, da USP, o professor Marcos Salvador vem trabalhando há cerca de dez anos na área de farmácia com produtos naturais bioativos, em pesquisas que envolvem alunos de graduação (iniciação cientifica) e pós-graduação (mestrado e doutorado). Em seus estudos realiza a prospecção de substâncias bioativas em espécies da flora brasileira (principalmente vegetais da família Amaranthaceae), bem como na biomassa de cultura de células e tecidos vegetais. A biomassa com atividade farmacológica e/ou os princípios ativos purificados são empregados como insumo, com vistas à busca de possíveis fitofármacos e o desenvolvimento de formulações dermatológicas e cosméticos.
O professor tem concentrado o trabalho na busca de substâncias ativas e preparações farmacêuticas com propriedades antimicrobianas (como novos antibióticos, antifúngicos e antiparasitários empregados na terapia da doença de Chagas e da leishmaniose) e agentes com atividade antiinflamatória, imunomodulatória, entre outros. Esses trabalhos são desenvolvidos tanto com a biomassa das plantas coletadas em seu habitat natural – Cerrado, Restinga e Mata Atlântica – como a obtida por cultura de células e tecidos vegetais.
Ele esclarece que a família Amaranthaceae possui plantas promissoras quanto a atividades biológicas e algumas são utilizadas na medicina popular e como alimento, tais como o Ginseng brasileiro (Pffafia spp.) e o Caruru (Amaranthus spp.), o que faz com que vegetais dessa família apresentem-se como matrizes potenciais para a busca de substâncias com as propriedades terapêuticas, visando à obtenção de possíveis medicamentos a partir de recursos naturais brasileiros.
Emprego
Na indústria farmacêutica, diz Salvador, o material de origem vegetal é empregado como insumo (matéria-prima) para a preparação de formulações sólidas, semi-sólidas ou líquidas, ou pode ser utilizado também para a extração de princípios ativos ou substâncias protótipos para a síntese de novos fármacos. Dentre as preparações farmacêuticas que utilizam material vegetal como insumo têm-se as tinturas, xaropes, chás, extratos fluidos e secos, fiticosméticos e medicamentos fitoterápicos. Mas, para sua utilização farmacêutica, há a exigência de que estas preparações sejam padronizadas, com caracterização qualitativa e quantitativa dos seus princípios ativos, fornecendo os requisitos de qualidade, eficácia e segurança exigido pela legislação.
O pesquisador informa que o interesse mundial por produtos derivados de plantas e produtos naturais cresceu vertiginosamente nos últimos anos. Esses derivados constituem misturas multicomponentes e sua eficácia pode estar associada a mais de uma substância, o que torna intrincado seu processo de controle de qualidade. Apesar dos grandes investimentos para a comprovação da eficácia e segurança de plantas medicinais, poucos são os estudos científicos relacionados à manutenção da qualidade destes produtos. Portanto, pesquisas nesta área devem ser intensificadas visando tanto o controle de qualidade físico e químico quanto microbiológico, com análises que vão da matéria-prima ao produto acabado.
Ele constata que no Brasil esforços têm sido integrados para garantir a conservação da biodiversidade e possibilitar o desenvolvimento econômico e o progresso na descoberta de substâncias bioativas, o que considera que deva ser incentivado: “É inegável que a biodiversidade brasileira apresenta grande importância no cenário mundial dado o valor intrínseco de seus recursos naturais e urge a necessidade de preservação e uso sustentável desta fantástica diversidade biológica, face ao acelerado processo de devastação que acomete muitos biomas brasileiros, incluindo as áreas remanescentes da Serra da Mantiqueira, Cerrado, Restinga e Mata Atlântica”.
Importância
Pesquisas com produtos naturais vêem constituindo uma estratégia simples e bem-sucedida que tem contribuído para a descoberta de novos medicamentos. Marcos Salvador diz que nos países industrializados estima-se que 25% dos medicamentos prescritos e registrados contêm constituintes ativos derivados do reino vegetal, empregados na forma de extratos, substâncias puras ou modificadas. Até 1985 estavam relacionadas 119 drogas provenientes de pouco mais de 80 espécies vegetais, mas já em 1999, metade dos vinte medicamentos best-selling eram produtos naturais, que movimentam uma receita bruta de cerca de U$ 16 bilhões.
O pesquisador considera incontestável a importância ecológica, científica e econômica da biodiversidade. Lembra que muitos produtos naturais são utilizados pelo homem desde tempos remotos como agentes terapêuticos para diversas enfermidades, além de serem também empregados como fomentadores de novos fármacos, fitoterápicos, cosméticos e suplementos alimentares. Nesse contexto, considera necessária a avaliação das propriedades biológicas – screening preliminares, estudos farmacológicos, toxicológicos – e a caracterização química dos produtos naturais com a finalidade de uma possível bioprospecção racional.
Segundo ele, nos países industrializados estima-se que 25% dos medicamentos prescritos e registrados contêm constituintes ativos derivados do reino vegetal, o que torna o estudo de plantas biologicamente ativas importante, pois além de possibilitar determinar as substâncias que contribuem para a bioatividade, permite entender seu mecanismo de ação, sua toxidade etc. Ele acrescenta que “investigações como estas são necessárias, principalmente na busca de alternativas para doenças típicas de países em desenvolvimento – micoses, malária, doença de chagas, leishmaniose, dentre outras – que não são muito estudadas pelas maiores potencias cientificas mundiais e que constituem as chamadas doenças negligenciadas”.
Produtos
Os estudos desenvolvidos pela equipe chefiada por Salvador envolvem estudos com antimicrobianos naturais empregados para combater bactérias e fungos, além de pesquisas com doenças parasitárias e o emprego da terapia fotodinâmica (PDT). Um dos trabalhos levou à obtenção de um creme de uso tópico para curar úlceras de compressão, desenvolvidas na epiderme de pacientes acamados. Esses cremes, que contêm princípios ativos de origem vegetal, são submetidos à exposição de luz em comprimento de onda adequado para estímulo da substância ativa. O processo, denominado Terapia Foto-Dinâmica (PDT), oferece a vantagem de possibilitar a conjugação da substância com a luz, permitindo o emprego de doses menores das presentes em pomadas comuns, minimizando efeitos adversos.
Estão sendo patenteados alguns novos produtos para veiculação na cavidade oral e com importância na odontologia preventiva. A novidade, no caso, é que eles evitam a atividade bacteriana diferentemente dos produtos disponíveis no mercado, que atuam com atividade biocida frente aos microrganismos causadores da placa bacteriana dentária. As formulações desenvolvidas são constituídas por produtos naturais ativos que evitam a formação da placa bacteriana, mas não apresentam atividade biocida, ou seja, não destroem os microrganismos benéficos presentes na ecologia bucal.
O pesquisador diz que na verdade o grupo busca realizar estudos sistemáticos. Esclarece que o desenvolvimento de um novo medicamento leva muitos anos e exige grandes investimentos. Essas dificuldades estão entre os fatores que dificultam o desenvolvimento de medicamentos genuinamente nacionais. Lembra que os poucos medicamentos fitoterápicos desenvolvidos no Brasil e presentes no mercado são obtidos da espinheira santa.
Para ele havia um grande distanciamento entre o segmento produtivo e a universidade. Nos últimos anos, constata, está havendo esforços para que haja uma maior proximidade entre a universidade e o setor produtivo de maneira a viabilizar tecnologias, uma vez que a universidade detém muita informação útil que não é operacionalizada no sentido de transformá-la em produto. É aí, diz ele, que entra a participação do setor produtivo, “porque a universidade desenvolve a metodologia e gera informação de aplicação, mas não constitui seu papel a produção em escala, o que deve ser realizado pela indústria”.
(Por Carmo Gallo Netto, Jornal da Unicamp, 02/07/2008)