A primeira grande fiscalização do Ibama em áreas produtoras de cana-de-açúcar em Pernambuco constatou que praticamente toda a produção da região é ilegal, prejudicial à saúde e ao meio ambiente. A lista de danos apurados na operação Engenho Verde revela uma atividade que se sustenta com base em crimes ambientais e prejuízos à coletividade - quadro bem diferente das paisagens sustentáveis pintadas pelo presidente Lula para mostrar no exterior as belezas da produção brasileira de etanol.
Em coletiva para anunciar medidas contra os usineiros “fora-da-lei” nesta terça-feira (01/07), o ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, lembrou o descompasso entre o discurso do presidente e a prática na zona da mata de Pernambuco. E argumentou que a impunidade destes casos poderia justificar a criação de barreiras para a exportação brasileira de etanol.
A fiscalização do governo se concentrou nas 24 maiores usinas do estado, que cultivam, cada uma, em média, 20 mil hectares de cana. E resultou em multas que somam 120 milhões de reais (5 milhões para cada usina), ações judiciais visando a recuperação das áreas degradadas e representações criminais com base na Lei de Crimes Ambientais, segundo informou o ministro. É o “braço forte” do governo reprimindo a devastação ambiental, vangloriou-se o ministro.
Com outro braço, o governo oferecerá aos usineiros financiamento facilitado para recuperação das áreas degradadas, via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). “Mas não será dinheiro de graça”, defende Minc. As condições de pagamento devem ser “semelhantes” às oferecidas aos fazendeiros da Amazônia que desmataram além do limite: 4% de juros ao ano e 12 anos de carência.
“Acabou a moleza. Estes usineiros só fazem lambança. Não quero saber se eles têm as costas quentes. Não quero saber quem está por trás. Quem estiver que vá conversar com eles na cadeia”, disse Minc. Na conta dos usineiros pernambucanos o Ibama debita o assoreamento de rios e lagos, perda de biodiversidade, extinção de espécies, acidificação de solos e águas, contaminação do ambiente com venenos agrícolas e erosão, entre outros prejuízos.
Tudo isso e mais um pouco é resultado de uma diversificada carteira de agressões que inclui a destruição de áreas de preservação permanente – nascentes, beiras de rios, encostas e topos de morros – para a plantação de cana, inexistência da reserva legal de 20%, queima ilegal ou desautorizada das lavouras, falta de licenciamento ambiental das atividades e uso de produtos altamente tóxicos e persistentes.
“Nenhuma das usinas autuadas tem regularização fundiária, reserva legal ou plano para a recuperação das áreas de proteção permanente”, disse o ministro.
Tudo devastado
“Segundo estimativas e observações através de sensoriamento remoto, todos os grandes rios que cortam a Zona da Mata de Pernambuco, bem como seus afluentes menores, estão atualmente desprovidos de mata ciliar em quase todas as suas extensões”, informa o relatório que deu origem às multas. A obrigação de manutenção das áreas de preservação permanente “não é (ou quase não é) respeitada pelos produtores do estado de Pernambuco, situação agravada pelas sucessivas queimadas e cortes por ocasião das colheitas”, denuncia o documento. Os fiscais alertam que os danos são cumulativos e de “extrema gravidade”.
A área remanescente de Mata Atlântica no estado de Pernambuco é de apenas 2,7% da original. “É o menor índice de preservação do bioma em todo o País”, diz Minc, lembrando que em todo o território Nacional sobraram 8,1% de sua cobertura.
De acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Ministério da Agricultura, em 2005 as usinas pernambucanas cultivaram 368.188 hectares, com produtividade de 1.267.801 toneladas de açúcar e 314.294 m³ de álcool (safra 2006/2007). A área representa 30% do total da zona da mata do estado de Pernambuco. O estado responde por 4,1% da produção nacional de açúcar e 1,8% da produção de álcool.
As lavouras de cana, segundo dados informados pelos fiscais, usam 63 produtos químicos diferente, formulados em 173 marcas comerciais. A maior parte (132) são herbicidas, mas há também inseticidas (29 marcas) e fungicidas (cinco), entre outros.
De acordo com o ministro Carlos Minc, o passivo que precisa ser recuperado na região produtora de cana de Pernambuco chega a 85 mil hectares, somando as áreas de preservação permanente e as reservas legais. “Aquilo está virando o Deserto do Saara”.
“Turminha braba”
A queimada da palha da cana-de-açúcar, usada para baratear a colheita, é classificada pelos fiscais como “fator extremamente danoso ao meio ambiente e à saúde humana”. A grande quantidade de gases e material particulado lançados na atmosfera provoca, de acordo com o documento, “a diminuição da atividade fotossintética dos vegetais, mortandade em cursos hídricos, aumento do efeito estufa, acidificação do solo e da água”. E ainda é um grande perigo à saúde humana, “pois as partículas suspensas na atmosfera,especialmente as finas e ultrafinas, penetram no sistema respiratório provocando reações alérgicas e inflamatórias. Não raro, ospoluentes vão até a corrente sangüínea, causando complicações em diversos órgãos do organismo”, registra o documento.
Além da aplicação de multas e da responsabilização criminal, o ministro anuncia que ainda vai fazer uma série de exigências aos usineiros. Entre elas, o licenciamento de todas as etapas da produção, recomposição florestal de 15% da Mata Atlântica, quintuplicando os remanescentes existentes, proteção dos recursos hídricos e mananciais, redução da poluição e criação de bases sustentáveis para a cadeia da cana. “Essa turminha braba é um péssimo exemplo para o Brasil”, disse Minc.
Os fiscais responsáveis pelo levantamento ainda propunham que a cana produzida na região e mesmo o álcool ou o açúcar obtidos deveriam ser apreendidos, “por ser objeto de crime”. Mas o ministro não anunciou nenhuma apreensão.
“Preconceito”
O Sindicato da Indústria do Açúcar e do Álcool do Estado de Pernambuco distribuiu nota em que “repudia a forma como o Ibama e o Ministério do Meio Ambiente realizaram a operação” e anuncia que vai “questionar administrativamente” as decisões. A entidade argumenta que as usinas têm acordo com a Agência Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos, com licenças operacionais e autorizações de queima concedidas pelo próprio Ibama.
De acordo com a nota, o acordo inclui o compromisso das usinas plantarem, “por um período de três anos, seis hectares/ano de mata ciliar”. E conclui: “Não admitimos preconceitos e prejulgamentos com uma cultura geradora de tantos empregos no Nordeste”.
O relatório dos fiscais reconhece que “todas as usinas alvo desta operação estão licenciadas”, mas, com base em fotos aéreas, supõe que os efluentes são “aparentemente” despejados “in natura” nos rios. E informa que “quase todas as usinas têm seu parque industrial instalados nas margens dos rios”, ou seja, exatamente onde deveria haver a mata ciliar.
O ministro Carlos Minc classifica de “imoral” o acordo que exigia a recomposição de seis hectares por ano. “O sujeito desmata milhares de hectares e depois tem que recuperar só seis hectares por ano? Nem nós nem o Ministério Público Federal reconhecemos este acordo. Ele é imoral e deve ter custado muito caro”, disse.
Em relação às queimadas, os usineiros são acusados de duas práticas irregulares: de acordo com o relatório, as solicitações de autorização para o uso do fogo são feitas para uma pequena área, para facilitar e baratear sua aprovação pelo órgão fiscalizador, mas áreas muito maiores são queimadas.
“Estranhamente, dos 368.188 hectares de plantio de cana-de-açúcar que teoricamente são queimados anualmente no estado de Pernambuco, segundo dados do PREVFOGO do IBAMA, somente foram solicitados na safra passada (2006/2007) 77.682,1 hectares de queima controlada. Isso indica que somente 21% (vinte e um por cento) da área que foi queimada foram autorizadas, enquanto que 79% (setenta e nove por cento) da área foram queimadas ilegalmente”, denuncia o relatório.
A outra acusação é que as lavouras prontas para serem colhidas costumam sofrer “incêndios criminosos”, denunciados pelos próprios usineiros. “Freqüentemente, as usinas apresentam boletins de ocorrência, atos meramente declaratórios, onde grande parte das suas áreas sofre “incêndios criminosos” pouco antes das colheitas, crime que acaba beneficiando suas vítimas, já que essas economizam com taxas ao Ibama, assim como com instrumentos de controle das queimadas, seguindo sua colheita sem maiores problemas”. De acordo com os fiscais, o fato indica duas possibilidades: “ou estamos diante de surtos sazonais de queima criminosa, atingindo somente o setor canavieiro, ou diante de casos graves de crimes ambientais e falsidades ideológicas. Em ambos os casos, a responsabilidade direta pela infração ambiental administrativa resta ao proprietário do imóvel.”
Em entrevista por telefone a O Eco, o representante das empresas, Renato Cunha desqualificou a ação do Ibama e disse que os usineiros são “amantes do meio ambiente”. “Somos um setor que se reposicionou, somos exportadores. Trata-se de uma inversão de valores lamentável”. Segundo ele, as matas ciliares existem “na maior parte das usinas”.
A favor dos usineiros, Cunha argumenta que a atividade existe há séculos e é anterior à legislação ambiental. “Se nos deixarem, vamos recuperar as áreas e nos adaptar à lei”, disse. “Meio ambiente é prioridade nossa”, completou.
(Por Warner Bento Filho, OEco, 01/07/2008)