Falar de índios, na América do Sul, é muito difícil. O tema é tão complexo e tão mal compreendido que raramente pode-se participar de uma discussão na qual as partes consigam demarcar previamente o âmbito do debate. De fato, cada participante tem sua própria definição de índio ou seu próprio estereotipo sobre o tema. Por isso, com demasiada freqüência, as discussões sobre assuntos indígenas se dão em planos paralelos e por isso, são infrutíferas, criando magoas e rancores e, quiçá, por isso é que os índios sejam, simultânea e contraditoriamente, muito maltratados e muito privilegiados. De todos os planos nos quais pode se discutir assuntos indígenas, o que deveria ser o primeiro, o mais urgente e o principal é o dos índios isolados ou arredios, ou seja, daqueles índios que ainda vivem como se vivia nas florestas, antes da chegada de Cabral ao Brasil, ou da expedição de Francisco de Orellana na Amazônia. Mas, na verdade, esse é o tema mais esquecido e o que menos prioridade tem nas decisões políticas e na consciência da sociedade.
Nos anos 1950 ainda se chamava de “índios” a mais de 50% dos peruanos. Mas, os que eu visitei pela primeira vez, durante três meses de 1955, no vale do Alto Ucayali, eram completamente diferentes. Eram Ashaninka bravos e orgulhosos, que viviam sua vida como eles queriam, sem pedir nada a ninguém e sem medo. Ao longo dos anos conheci outros índios de grupos pouco ou recém contatados nas selvas do Peru: Ashaninka, Machiguenga, Cashibo e, provavelmente, Ese’Eija ou Piro, e vi outros, até no Brasil, onde tive o privilégio de ser dos primeiros a conhecer os Uru-Eu-Wau-Wau. Navegar nos rios amazônicos afastados e saber, sentir, ou até ver os rastros nas praias ou no mato de índios curiosos e inquietos com a presença estranha, é uma experiência de uma intensidade indescritível. É participar, meio milênio mais tarde, do encontro de dois mundos. Mas, também é uma experiência melancólica, pois se sabe que se testemunha o estertor daquele momento histórico.
Enquanto escrevo esta nota, junho de 2008, é altamente provável que se esteja produzindo algum encontro entre índios isolados e cidadãos modernos. Contudo, esse encontro, com certeza, não será como o descrito antes. A emoção, resultado da surpresa, curiosidade e embelezamento do encontro entre dois mundos, neste caso, será substituída apenas pelo medo recíproco e apagada pelos disparos de espingardas e carabinas que respondem às flechadas e lanças dos índios assustados e agredidos. Madeireiros peruanos, garimpeiros brasileiros e narcotraficantes de qualquer nacionalidade, de uma parte e de outra, os últimos índios bravos das Américas se enfrentam, num combate desigual, com final monotamente reiterado durante quinhentos anos. Os índios deverão abandonar seus mortos e ajudar seus feridos para fugir monte adentro, em um espaço cada vez mais reduzido, devendo enfrentar outros índios, também, acuados por invasores e pelo avanço da colonização. Isso está mesmo acontecendo, neste instante, na fronteira entre o Peru e o Brasil, o principal refúgio dos últimos índios livres das Américas.
Em 2006 foi publicado um relatório sobre os índios isolados na América Latina. O autor, Vincent Brackelaire, recolheu informação que revela a existência de uns 70 grupos de índios nessa condição. Como era de se esperar, levando-se em conta o tamanho dos territórios silvícolas, 40 deles estariam no Brasil, 20 no Peru e 6 na Bolívia. No Equador existiriam dois grupos e um na Colômbia. Nenhum ficaria na Venezuela. É provável que algum grupo ainda subsista nas Guianas e no Suriname. Somando todos os indivíduos de cada um desses grupos dificilmente se consegue juntar uns poucos milhares de almas. As descrições no relatório citado chegam a um nível trágico quando as estimativas de população mencionam apenas dúzias, ou no máximo um par de centenas de pessoas para cada grupo identificado. Esses magérrimos números são, cada um deles, o fim de uma linhagem, o fim de uma cultura ou a extinção da humanidade diversa, a cada vez mais substituída pela cultura do “Jeans” com “Coca Cola”.
A maior parte dos dados coletados por Brackelaire foram reunidos durante o “Primeiro Encontro Internacional sobre Povos Isolados”, realizado em Belém em novembro de 2005, com participação da Coordenação Geral de Índios Isolados da FUNAI, do Centro de Trabalho Indigenista e da Rede Aliança Internacional para a Proteção dos Povos Indígenas Isolados. Chama poderosamente a atenção que um assunto tão importante tenha provocado uma “primeira reunião” apenas três anos atrás. É verdade que esse assunto tem sido uma missão promovida pelo extraordinário Marechal Rondon e levada adiante pela FUNAI, quase desde seu estabelecimento, especialmente através de homens com verdadeiro amor pela Amazônia e seus povos, como Orlando Villas Boas, seus irmãos e Sidney Possuelo. Não obstante, deve se reconhecer que essa instituição e, mais ainda, as suas equivalentes das outras nações amazônicas, esqueceram a importância desse esforço e a necessidade de aplicar medidas colaterais para oferecer aos índios isolados a oportunidade de escolher seu próprio destino. Na verdade, os governos estão permitindo e até fomentando, sem vergonha nenhuma, que os índios não contatados e as suas culturas sejam massacrados por gente ignorante e cruel, a serviço de empresários e políticos sem escrúpulos.
Por exemplo, a alegre construção da Estrada Interoceânica que unirá Rio Branco (Acre, Brasil) com Cusco (Peru), feita com avaliação de impacto socioambiental fajuta e post-mortem, tem possibilitado a invasão dos territórios ancestrais de vários desses índios isolados. Fotografias recentes transmitidas em vários jornais e na televisão (BBC, por exemplo) os mostram despavoridos pelos vôos rasantes dos curiosos em locais onde não estavam antes. Isso é uma das conseqüências da construção da mencionada estrada, que permitiu o acesso de empresas madeireiras, onde elas jamais poderiam ter extraído madeira sem essa facilidade. O governo peruano entregou concessões florestais bem na fronteira com o Brasil e bem perto do paralelo 343º, ao leste do qual deveria ficar o território dos índios em “isolamento voluntário” e, assim mesmo, os parques nacionais Manú (1,5 milhões de hectares) e Alto Purus (2,5 milhões de hectares) nos quais estes índios também moram. O problema é que os madeireiros não respeitam nem os limites das suas concessões e preferem aproveitar da incapacidade ou, melhor ainda, da falta de vontade do governo para impor ordem, explorando as florestas dos índios e dos parques, ricas em mogno e cedro, no lugar das suas próprias, as que reservam para mais tarde. Na sua procura de madeira nobre tampouco tem problema em invadir o país vizinho. Ninguém nos governos leva a contabilidade dos confrontos entre índios acuados e madeireiros e garimpeiros bem armados. Sem embargo, o apoio dos governos brasileiro e peruano para esta obra realizada e financiada principalmente por empreiteiras brasileiras é irrestrito.
O que se sabe, isso sim, é que a cada dia tem mais índios refugiados nos parques nacionais peruanos e mais índios que cruzam a fronteira e se refugiam nas terras indígenas e nas unidades de conservação do lado brasileiro. Os conflitos entre esses índios arredios de diversas famílias lingüísticas e de diferentes grupos e subgrupos étnicos, às vezes ancestralmente rivais, ocupando espaços cada vez menores e invadindo os territórios uns dos outros, são inúmeros e, também, ocasionam mortes e miséria. Vários conflitos inter-étnicos com conseqüências fatais têm sido documentados no Manú, incluindo um ataque (Ese’Eija ou Piro?) contra Machiguengas produzido em 1975 quando o autor desta nota estava presente bem perto do acontecimento, no mesmo Parque. Porém a freqüência de confrontações está aumentando de modo alarmante. Ademais, a súbita elevação da densidade da população humana tem um impacto desastroso nas dos animais dos quais eles se alimentam, acirrando os conflitos.
Faz duas décadas que esse problema vem sendo denunciado pelo famoso cientista John Terborgh, desde a sua base de pesquisa (Cocha Cashu) no Manu, e pelos chefes do Parque Nacional, sem receber nenhuma resposta séria do governo peruano. Mais, ainda, os madeireiros, agricultores e garimpeiros estão pressionando cada vez mais fortemente o Manú apesar de existir pessoal para protegê-lo. De outra parte, o enorme Parque Nacional do Alto Purus, criado em 2004, carece totalmente de pessoal e está aberto para os atropelos de todos os exploradores de recursos. O Parque Nacional da Serrra do Divisor, no lado brasileiro, também, sofre desses problemas, tanto originados no Peru, como no próprio Brasil e, ademais, é rota do tráfico internacional de entorpecentes.
O tema dos índios isolados, insisto, deveria ser absolutamente prioritário para as instituições como a FUNAI e para todas aquelas que se ocupam da Amazônia. A proteção desses índios é apenas matéria de uma decisão política simples e barata. Por exemplo, nos casos mencionados do Peru e do Brasil, é suficiente estabelecer postos de controle, com presença de polícia ou força armada, nos pontos chaves dos rios que dão acesso aos territórios onde estão os índios. Com isso se daria o tempo necessário para preparar seriamente o contato e adotar as medidas seguintes e, eventualmente, para não se fazer mais nada até que os próprios índios decidam outra coisa. O custo desta primeira e indispensável parte da operação é insignificante. Mas, como o próprio Sidney Possuelo diz “muitos defendem negros, mulheres e até índios aculturados, mas ninguém fala nos direitos humanos dos povos isolados” (O Estado de São Paulo, 10 de setembro de 2002).
A problemática que rodeia os índios isolados e arredios, que vivem mais ou menos como se vivia antes do “descobrimento” da América, é radicalmente diferente da que corresponde, por exemplo, a grupos indígenas contatados trinta ou mais anos atrás, com território demarcado, escolas e posto de saúde; onde se fala bom português, se calça “havaiana” e se assiste às telenovelas da rede Globo; ou se negocia, com assessoria legal e parlamentar, o aluguel da terra para o cultivo de soja, ou onde, os caciques enganados ou nem tanto, vendem suas florestas aos madeireiros e cobram porcentagem dos garimpeiros. Também estão os índios, que após séculos de miscigenação, não podem mais ser distinguidos, pelo seu sangue e sua cultura, de qualquer outro cidadão e que para manter seus privilégios devem se fantasiar. E, assim mesmo, estão outros índios que, embora contatados há muito tempo, ainda mantêm muito do seu sangue e algo da sua cultura; e que sofrem muito pela sua impossibilidade de se adaptar à realidade nacional ou que se suicidam como os Guarani-Kaiowa, pela falta de espaço e de opções, apesar de que alguns outros grupos étnicos foram beneficiados com territórios desnecessariamente gigantescos. Ainda pode se mencionar, dentro desta variada situação, o caso dos 24% de “índios” brasileiros urbanos, dos quais muitos nasceram longe dos mais extensos “territórios de perambulação” imaginados pelos antropólogos mais fanáticos.
A lógica diz que os índios ainda não contatados, os pouco contatados, ou os que preferem viver isolados, merecem muito mais proteção que todos os outros, cujo estilo de vida é cada vez mais parecido com o do resto dos cidadãos. Porém, na prática, não é assim. Dia a dia fica mais evidente que os governos dos países amazônicos dedicam seus esforços aos índios que têm importância política e se esqueceram dos outros, que são considerados apenas como curiosidades científicas.
Quiçá por isso mesmo veremos, a qualquer momento, outra fotografia como a que me marcou para a vida toda, quando ainda muito jovem li o livro de um explorador francês sobre o Brasil. A fotografia, do começo do século passado, mostrava um grupo de homens brancos, com rifles, montados sobre uma grande ruma de cadáveres de índios. A lenda dizia, mais ou menos: “Caçada de índios no Mato Grosso, Brasil”. Eles, esses “caçadores” assassinos, pelo menos, não tinham vergonha do que eram e se faziam fotografar. Mas, nestes dias, é provável que a hipocrisia dominante não permita ver uma evidência tão crua do crime. Isso porque os verdadeiros culpados, desta vez, são os próprios governos dos países amazônicos que, não só toleram, mas fomentam sem pudor esses fatos, sob o pretexto do desenvolvimento.
Sidney Possuelo, na mencionada entrevista, dizia “a humanidade perde parte de sua face toda vez que um povo desconhecido entra em contato com o nosso mundo”. Dificilmente pode se achar uma descrição mais exata! E, ao mesmo tempo, resulta inacreditável que isso aconteça sob os nossos narizes e sem que nada seja feito para evitá-lo.
(Por Marc Dourojeanni, OEco, 27/06/2008)