Sem qualquer regulação pública que resguarde os interesses de longo curso do Brasil, o mercado vai expandindo para o sul do Mato Grosso do Sul e para o sul de Goiás a indústria do etanol. Parece que ninguém lembrou que propor a transformação do etanol em commodity internacional, para muito além do atendimento ao mercado interno, significa detonar pelo menos três grandes problemas: a especialização produtiva; a posse de vastas porções do território por empresas, nacionais e internacionais, que definem a utilização de recursos segundo sua própria lógica e interesse; e a utilização em larguíssima escala das águas nacionais sem uma estratégia de segurança hídrica que garanta o fornecimento ao próprio Brasil pelos próximos anos.
Ainda por cima, há outro grave problema na tendência de expansão da indústria do etanol para o Mato Grosso do Sul, Goiás, e também o Mato Grosso. Esses estados são reconhecidos pela fragilidade dos seus sistemas de licenciamento ambiental, principalmente em relação a recursos hídricos. E etanol é basicamente água, misturada a outros componentes químicos. Torná-lo o combustível substituto do petróleo, na escala global com que sonha o presidente Lula, é o mesmo que amarrar ao mercado internacional a capacidade de a natureza brasileira produzir água pelas próximas décadas, independentemente das necessidades da população - que, aliás, não pára de crescer.
Para apostar na hipótese etanol internacional, se é que o Brasil precisa fazê-lo, seriam necessários estudos conclusivos prévios, sobre a capacidade de o País fornecer ao mercado global tamanho volume de água, via etanol, sem arriscar a segurança hídrica nacional.
Além disso, há o tal problema do licenciamento frouxo na maioria dos estados, algo que já preocupa quadros do governo responsáveis por regular o acesso aos recursos hídricos. Um dos que têm alertado para o problema é o presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), José Machado, que em pelo menos uma vez tornou pública a sua preocupação.
Durante reunião sobre biocombustíveis no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), realizada em 20 de abril, em São Paulo, Machado afirmou que está tranqüilo quanto à capacidade de a ANA e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) realizarem o licenciamento ambiental de empreendimentos de etanol que demandem água de rios federais.
Os dois órgãos têm, segundo Machado, conhecimento teórico, segurança institucional e quadros técnicos suficientes para licenciar empreendimentos que demandem água de rios federais. O mesmo não poderia ser garantido, observou, em relação aos afluentes desses rios e aos afluentes dos afluentes. Em sua maioria, eles são rios estaduais sob responsabilidade dos sistemas de licenciamento estaduais.
Especialistas, como a doutora em química Sônia Hess, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, vêm alertando que a situação é ainda pior naque estado, onde a exigência de grandes quantidades de água para produção de etanol se soma à vasta poluição atmosférica gerada pela queima da cana. O MS recebe quatro projetos de cana financiados pelo BNDES, incluindo o maior de todos - o da LDC Bio, no município de Rio Brilhante, que sozinho levará mais de 10% de todos os desembolsos do Banco para o setor sucro-alcooleiro.
Foi o Banco quem identificou o caminho que o etanol vai traçando em direção ao centro-oeste. Transformado pelo governo em agente financeiro viabilizador do setor sucro-alcooleiro, e encarregado de subsidiar as posições que o Brasil defenderá na conferência internacional sobre biocombustíveis (São Paulo, novembro de 2008), o BNDES constatou uma disparada na demanda por seus financiamentos para o etanol, por parte de investidores nacionais e internacionais.
Eles são atraídos pela relativa fartura e baixo custo no Brasil dos insumos estratégicos para essa atividade. Aqui, há simultaneamente terra agricultável, recursos hídricos, mão-de-obra, amplo domínio do ciclo e da cadeia de produção do etanol. E, ainda por cima, o território brasileiro tem uma das cinco maiores insolações do planeta, o que potencializa a produção do álcool combustível.
Dadas estas facilidades, os financiamentos do BNDES para o setor representaram mais de 5% dos desembolsos totais do Banco em 2007. Em 2004, atingiram 1,2%. O valor médio dos projetos subiu de R$ 80 milhões para R$ 300 milhões (leia uma análise completa do perfil destas operações aqui). É urgente a elaboração de um amplo plano diretor para orientar a indústria do etanol - e isso nem de longe se esgota com o prometido zoneamento econômico ecológico da cana, até agora não apresentado pelo Ministério da Agricultura. É preciso muito mais.
Por exemplo, necessitamos de mecanismos para impedir o financiamento público a projetos que provoquem o deslocamento de culturas de alimentos em direção a biomas sensíveis - em especial o pantanal, a floresta amazônica e o cerrado. Em verdade, o governo já deveria ter elaborado tal planejamento antes de iniciar sua cruzada pelos combustíveis agrícolas mundo afora. Mas, ainda há tempo de fazê-lo, para depois não termos de chorar sobre o etanol derramado.
(Por Carlos Tautz, Ibase *, Adital, 25/06/2008)
Jornalista e pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase)
* Instituto Brasileiro de Anális