O projeto de lei (PL) nº 2327/2007, da deputada Rose de Freitas, do PMDB/ES, foi o foco da audiência pública realizada no último dia 17 na Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados.
O projeto de lei propõe alterar a atual Lei de Cultivares (Lei nº 9.456/1997) - que criou direitos de propriedade intelectual sobre sementes e mudas no Brasil - permitindo à empresa proteger e obter exclusividade na reprodução e comercialização de variedades, desde que sejam distintas, homogêneas e estáveis. A Lei de Cultivares em vigor institui o chamado direito de melhorista, que é a cobrança de royalties pelo uso de sementes de variedade protegida. E apesar de fortalecer o emprego da propriedade intelectual sobre recursos genéticos da agricultura, a lei garantiu o direito de agricultor aos pequenos produtores. Trata-se de direito já consolidado em âmbito internacional, que permite a guarda, a troca e o uso de sementes na safra seguinte, o que assegurou uma autonomia mínima aos pequenos produtores.
A Lei de Cultivares permitiu ao Brasil participar da União Internacional para a Proteção das Obtenções Vegetais (UPOV), na sua versão de 1978, que garante tanto o direito do agricultor quanto o do melhorista. A proposta em discussão de reformulação da lei permitirá ao Pais aderir à versão de 1991, que é mais restritiva, pois estende os direitos de propriedade intelectual aos produtos da colheita, permite a aplicação de patentes e proíbe que o agricultor reserve e guarde sementes para uso próprio.
O PL em debate pretende alterar quatro artigos da lei em vigor: os artigos 8°, 9º, 10 e 37. As alterações pretendem estender a proteção da cultivar para a planta como um todo (atualmente, só protege as estruturas reprodutivas), ampliar o direito de propriedade a qualquer atividade com a planta protegida (produção, comercialização, exportação ou armazenamento de parte ou da planta inteira); e proíbe a comercialização de produtos colhidos sem a autorização do detentor dos direitos de proteção (melhorista).
Embora o PL em discussão fosse o proposto pela deputada Rose de Freitas, as falas dos palestrantes abordaram também o PL nº 3100 de 2008, de autoria do deputado Moacir Micheletto do PMDB/PR, que propõe alterações ao artigo 10 da Lei de Cultivares, mais precisamente sobre a questão do direito ao uso próprio pelo pequeno produtor (direito de guardar sementes, a fim de garantir o plantio de safras futuras).
Argumentos favoráveis
Diversos setores expuseram suas posições. Entre elas, os que defenderam a proposta de alteração da Lei de Cultivares argumentaram que a lei em vigor possibilita que grandes produtores se utilizem do direito do pequeno agricultor de guardar sementes para a próxima safra, para não pagar direitos de propriedade intelectual. A expressão “uso próprio” estaria sendo deturpada para justificar a guarda de qualquer volume de sementes para plantio próprio, sem levar em conta o tamanho da área, o grau tecnológico da produção e a renda do agricultor. A deturpação do direito do agricultor, chamado de pirataria de sementes por representantes dos obtentores de cultivares, é resultado da falta de fiscalização dos órgãos responsáveis.
A representante do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), Daniela Aviani, listou alguns gargalos na atual Lei de Cultivares, recolhidos a partir das criticas feitas por usuários. Uma delas refere-se à lista de espécies passíveis de proteção que o Serviço Nacional de Proteção aos Cultivares (SNPC) estabelece. Segundo os críticos, a lista tem número limitado e deveria ser ampliada.
Outro gargalo apontado refere-se à restrição ao direito do melhorista. Representantes dos obtentores de cultivares defendem que a proteção se estenda às plantas de reprodução vegetativa, que podem ser reproduzidas por clonagem (sem recorrer ao uso de sementes). Atualmente, a proteção recai apenas sobre o material propagativo (mudas e sementes).
Com relação às alterações no processo de proteção das variedades, a representante do MAPA, sugeriu aumentar o tempo do direito do melhorista (que atualmente pode chegar a 18 anos, dependendo do objeto da proteção) com o argumento que o prazo “não recompensa os anos de pesquisa e investimentos” empreendidos no desenvolvimento de uma nova variedade. Daniela Aviani também abordou a dificuldade em cumprir com a obrigação, imposta pela Lei de Cultivares, de se elaborar e publicar os descritores para a obtenção de cultivares. O MAPA vem discutindo, há dois anos, uma proposta de lei alternativa para o tema visando simplificar o processo de proteção das variedades.
Argumentos contrários
O representante do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), João Intini, apresentou um panorama sobre a crise mundial dos alimentos, a alta da inflação no Brasil impulsionada pelo aumento no preço dos alimentos (só o feijão teve uma alta de 200%) e insumos (segundo dados da CNA, os fertilizantes já contabilizam um aumento de 70% comparado ao ano de 2007). Para Intini, a resposta do governo federal frente à crise deve ser o fortalecimento da agricultura familiar, responsável por mais de um terço do Produto Interno Bruto das cadeias agropecuárias e de 10% do PIB nacional. Frente às denúncias de pirataria dos grandes produtores, o representante do MDA ressaltou que deveriam ser aplicadas as sanções já previstas na atual Lei de Cultivares e que existe um déficit de 5 mil fiscais para aplicar a lei (são três mil atualmente).
Manoel dos Santos, presidente da Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), manifestou-se contrário à alteração da lei, alertando que, se aprovada, os agricultores familiares ficarão impedidos de exercer suas atividades, visto que dependem do direito ao uso próprio, guarda, troca e venda das variedades. “Queremos uma política diferenciada para a agricultura familiar e não uma lei que dificulte ainda mais a vida dos agricultores” destacou.
Paula Almeida, da Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa AS-PTA, alertou que o PL estende os direitos de propriedade intelectual sobre a colheita, o que afetará drasticamente a realidade de mais de quatro milhões de famílias de pequenos agricultores, responsáveis pelo incremento de bilhões de reais ao PIB brasileiro. Para ela, a proposta de alteração da lei aumentará o custo de produção de alimentos no Brasil (uma vez que serão cobrados royalties também sobre a colheita), e esse custo será repassado ao consumidor final, impulsionando, ainda mais, a inflação e contribuindo para agravar a crise de alimentos.
Frente aos exemplos internacionais apresentados pela representante do MAPA, que destacou a Coréia como país que já adotou a UPOV-1991, Paula Almeida lembrou que após a adoção das alterações previstas na UPOV -1991 pela Coréia, houve um aumento de mais de 20% no preço de algumas frutas e que mais de US$ 13 bilhões foram pagos em royalties a outros países (referente a mais de 189 variedades protegidas), uma vez que grande parte das variedades melhoradas pertence a empresas estrangeiras.
Outro exemplo apresentado pela representante da AS-PTA é o que vem da Noruega, onde a versão de 1991 da UPOV foi rejeitada por ser considerado um mecanismo perverso de repasse dos custos de produção de alimentos aos agricultores e, ao mesmo tempo, uma violação aos direitos de agricultores, garantidos em instrumentos internacionais, como o Tratado Internacional de Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e Agricultura da FAO. Saiba mais.
O representante da Articulação Nacional de Agroecologia, André dos Santos, destacou que com o PL da deputada Rose de Freitas o pequeno agricultor que planta para comer e vende o excedente, terá que obter a autorização da empresa proprietária da variedade para comercializar sua produção. Segundo André, essa proposta fere os direitos dos consumidores, posto que se cobrará duas vezes pelo mesmo serviço (melhoramento da variedade). Uma vez ao comprar a semente e, novamente, ao vender a produção. André alertou que, se as alterações forem aprovadas, programas como o Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), e o Seguro da Agricultura Familiar (SEAF) serão inviabilizados. Santos criticou a proposta de alteração da lei afirmando que dificultará a superação da crise mundial dos alimentos. Ressaltou, ainda, que o reconhecimento da pesquisa e da inovação já está incluso no preço da semente. E que falta é uma fiscalização eficaz para coibir a pirataria.
Também os grandes produtores serão afetados pela proposta de estender os direitos de propriedade intelectual sobre a colheita, uma vez que terão de obter a autorização da empresa proprietária da variedade para comercializar sua produção, pagando royalties duas vezes (ao comprar a semente e ao comercializar a produção).
Errando o foco
O direito dos agricultores de reproduzir e armazenar sementes é garantido pela FAO, órgão da ONU para Alimentação e Agricultura, como um “direito resultante das contribuições passadas, presentes e futuras dos agricultores para a conservação, o desenvolvimento e a guarda de recursos genéticos vegetais, particularmente aqueles nos centros de origem/diversidade”.
A proposta de alteração da Lei de Cultivares não resolve o problema da pirataria dos grandes produtores, para a qual fiscalização eficaz e a aplicação efetiva das sanções bastariam, assim como erra o foco ao prejudicar milhões de pequenos agricultores. As propostas de alteração ferem direitos assegurados em nível internacional e também atentam contra a autonomia dos agricultores sobre as sementes, o que constitui uma séria ameaça à segurança alimentar e nutricional da sociedade brasileira.
Se a fiscalização não dá conta do recado hoje, não é restringindo ainda mais o uso das sementes que o sistema será eficaz e a lei efetivamente cumprida. Além disso, em tempos de crise alimentar e inflação, as alterações propostas oneram ainda mais os pequenos agricultores, levando ao aumento dos custos de produção, o que aumentará, ainda mais, as pressões sobre o preço dos alimentos. Este conjunto de fatores trará conseqüências também para a população urbana, além de comprometer a renda dos pequenos agricultores, limitando seu acesso ao mercado e comprometendo as condições de desenvolvimento social e econômico das diferentes regiões do país.
Lei em vigor e propostas de alteração
Lei de Cultivares - regulamentou o artigo 27 do acordo TRIPS no Brasil, permitindo que ele se tornasse parte da UPOV. Possibilitou o estabelecimento dos direitos de propriedade sobre sementes e mudas por uma empresa ou pessoa que obtenha uma variedade “distinta, homogênea e estável”. Assegura ao melhorista o direito de exclusividade na reprodução e comercialização do material genético obtido. O direito perdura por 15 anos, para estruturas reprodutivas de plantas (sementes e mudas), e 18 anos para arvores frutíferas.
A lei em vigor reconheceu o “direito do agricultor” permitindo: reproduzir e utilizar sementes para uso próprio; usar ou vender, como alimento ou matéria-prima, o produto obtido de seu plantio; utilizar o cultivo como fonte de variação no melhoramento ou para fins de pesquisa científica. Segundo a lei, o pequeno agricultor pode, ainda, multiplicar as sementes protegidas para doação ou troca com outros pequenos agricultores no âmbito de programas de financiamento.
Projeto de lei da deputada Rose de Freitas (PL nº 2327/2007). Pretende alterar quatro artigos da Lei de Cultivares (artigos 8°, 9º, 10 e 37). As alterações propostas visam estender a proteção da cultivar para toda a planta (atualmente recaí apenas sobre as estruturas reprodutivas – sementes e mudas). As propostas de alteração ampliam o direito de propriedade a qualquer atividade com a planta protegida (produção, comercialização, exportação ou armazenamento de parte ou da planta inteira). O PL proíbe, ainda, a comercialização de produtos colhidos sem a autorização do detentor dos direitos de proteção.
As propostas de alteração da lei restringem a livre utilização dos recursos genéticos da agricultura, ampliando o direito do melhorista até o produto da colheita, o que permitirá a cobrança de direitos de propriedade intelectual (royalties) sobre a produção. As empresas proprietárias de variedades agrícolas poderão cobrar indenizações pelo uso não autorizado do produto: “o que vender, oferecer à venda, reproduzir, importar, exportar, bem como embalar ou armazenar para esses fins, ou ceder a qualquer título, material de propagação ou produto da colheita de cultivar protegida sem autorização do titular, fica obrigado a indenizá-lo, em valores a serem determinados em regulamento, além de ter o material apreendido, assim como pagará multa equivalente a vinte por cento do valor comercial do material apreendido, incorrendo, assim, em crime de violação dos direitos de melhorista”.
Projeto de lei do deputado Moacir Micheletto (PL n° 3100/2008). O PL pretende alterar o artigo 10 da Lei de Cultivares, com a justificativa de que o termo “uso próprio” não é claramente definido e extrapola o objetivo inicial de garantir aos agricultores o direito de guardar sementes para o plantio de safras futuras. Segundo a justificativa do PL, o termo “uso próprio” é atualmente utilizado para “justificar a guarda de qualquer volume de sementes para plantio próprio, independente da área e do nível tecnológico e econômico do agricultor”, o que, segundo a proposta, prejudica programas de pesquisa em melhoramento vegetal. O PL define “pequeno produtor rural” como aqueles que “obtenham renda bruta anual máxima de valor equivalente ao limite de isenção estabelecido na legislação do Imposto de Renda da Pessoa Física.” Segundo a justificativa, o termo busca “delimitar o perfil do agricultor alvo de programas de subsídios especiais de crédito agrícola, de incentivo à pequena agricultura familiar, de benefícios fiscais e de acesso facilitado a insumos, entre outros, isentando-os de encargos adicionais representados pelo pagamento de royalties.
(Por Henry de Novion, ISA, 25/06/2008)