Uma infeliz série de artigos, incluindo um publicado no jornal The New York Times, realimentou um fantasma que nos persegue há bastante tempo: o risco da internacionalização da Amazônia. Um dos poucos brasileiros que tinha a coragem de apontar para o equívoco desta “iminente ameaça à nossa soberania” era o saudoso Senador Jefferson Peres que, num dos seus últimos discursos, disse: “Não tenho tanto medo da cobiça internacional sobre a Amazônia. Tenho medo da cobiça nacional sobre a Amazônia, da ação de madeireiros, de pecuaristas e de outros que podem provocar, repito, o holocausto ecológico naquela região”.
Não creio que exista uma conspiração em curso com o objetivo de internacionalizar a Amazônia. A lógica é simples: os alegados interesses econômicos de outros países não precisam de tropas ou domínio estrangeiro para usufruir das riquezas da região. Basta ver o setor de mineração, com forte domínio de multinacionais, que lavram nossas riquezas à luz do dia, amparadas pela Lei, em todo o território nacional, incluindo a Amazônia.
Recentemente uma licitação colocou nas mãos de um consórcio internacional a responsabilidade sobre a hidroelétrica do Jirau que terá importância estratégica para a região e o País. Empresas multinacionais apóiam a produção de soja na Amazônia. Poderíamos falar sobre a participação estrangeira em setores estratégicos como telecomunicações etc. Tudo isto sem a necessidade de nenhuma “invasão” ou “domínio” de outros países ou aquisição de terras por estrangeiros.
Alguns enganos são realimentados pela imprensa e servem para nutrir o debate sobre a “internacionalização”, que deveria ser periférico na discussão sobre o futuro da Amazônia. A frase atribuída ao ex-Vice-Presidente dos Estados Unidos, Al Gore, não foi dita por ele, mas sim por um congressista norte-americano de pequena expressão. Os cadernos escolares estadunidenses com o mapa da Amazônia excluída do Brasil nunca existiram de fato e foram montados por um site na Internet. Existem muitos outros enganos repetidos de forma equivocada.
O cerne da “questão amazônica” é outro e mais incômodo: os inimigos da Amazônia estão aqui mesmo, dentro do nosso País. Na sua quase absoluta totalidade, são brasileiros aqueles que desmatam, produzem e compram madeira ilegal, plantam soja promovem a grilagem de terras e assassinam líderes dos movimentos sociais. A ação do poder público brasileiro, salvo raras exceções, tem sido insuficiente para reverter este quadro. Infelizmente, essa é a dura realidade. O problema está aqui e não no exterior.
A solução inclui quatro componentes principais. Primeiro precisamos de um Projeto Nacional para a Amazônia que explicite o óbvio: desmatar é contra o interesse nacional. Das florestas amazônicas depende a chuva que irriga a agropecuária e abastece as hidroelétricas e as cidades em quase todo o Brasil. Soma-se a isso o potencial socioeconômico de produtos florestais, obtidos sob regime de manejo sustentável.
O Projeto Nacional para a Amazônia deve seguir o exemplo das políticas de sustentabilidade do Amazonas, baseadas num princípio simples: a floresta deve valer mais em pé do que derrubada. Segundo, precisamos de políticas públicas eficazes e na escala correta. Sabemos como promover o desenvolvimento sustentável na região. Existem muitos exemplos de sucesso que precisam apenas ganhar escala. Faltam investimentos públicos e gestão eficiente. Terceiro, precisamos envolver a sociedade civil, universidades e o setor privado numa grande cruzada em prol da sustentabilidade do desenvolvimento da Amazônia. Devemos combinar os conhecimentos tradicionais e os científicos, a criatividade e o empreendedorismo brasileiros a favor de um projeto nacional de sustentabilidade para a região. Quarto, devemos ser proativos no cenário internacional. O caminho é utilizar o interesse internacional a nosso favor, cobrando dos países desenvolvidos mecanismos financeiros que valorizem o papel de nossas florestas para a sustentabilidade do Planeta.
Buscar vilões estrangeiros é mais cômodo e simples, mas, infelizmente, não irá resolver o cerne do problema. O problema está aqui, na nossa cara. De nada adianta satanizar organizações não-governamentais que, no geral, realizam ações positivas nos campos sociais e econômicos. Dificultar a participação de estrangeiros no desenvolvimento científico e tecnológico da região? Burrice. Deveríamos, ao contrário, fomentar parcerias e a cooperação inteligente. Proteger contra a biopirataria? O caminho é fomentar o desenvolvimento tecnológico e o desenvolvimento de indústrias de biotecnologia na região. Deixar as florestas amazônicas fora do mercado de carbono? Não. Deveríamos defender a instituição de mecanismos de pagamento por serviços ambientais para remunerar as populações que vivem na floresta. Ao invés de optarmos por uma posição retranqueira e isolacionista, deveríamos ser proativos e propositivos no cenário internacional.
Obviamente, reposicionar o debate sobre a soberania da Amazônia não significa que devamos negligenciar os interesses e movimentos de outros países na região. Temos que estar alertas. Existem, em toda parte, interesses escusos que devemos combater especialmente o narcotráfico em áreas de fronteira. Felizmente, os militares representam o que há de melhor em termos de presença do Estado na região, ao desempenhar com competência sua função de guardiões do nosso território. Identificar os inimigos certos e nossas metas estratégicas é essencial para vencermos a batalha pela defesa da Amazônia. Nosso desafio é cuidar bem da sustentabilidade da Amazônia. Com competência e seriedade. Esta é a melhor arma para defendermos os interesses estratégicos e a soberania do Brasil na região.
(Por Virgílio Viana*, Eco21, 22/06/2008)
* Diretor-Geral da Fundação Amazonas Sustentável