Quem não acredita no poder da regulação estatal como parte do arsenal para redução das emissões de gases de efeito estufa devia ler o relatório recente sobre emissões das 100 maiores empresas de eletricidade do EUA. O relatório, “Benchmarking Air Emissions of the 100 Largest Electric Power Producers in the United States”, pode ser baixado daqui. Produzido em conjunto por uma coalizão de empresas privadas e fundos de investimento (CERES) , pela ONG Natural Resources Defense Council, pelo Public Service Enterprise Group e pela PG&E Corporation, ele mostra que as emissões de óxido de enxofre (SO2) e óxido de nitrogênio (NOx) das usinas elétricas caíram em grande parte por causa dos programas regulatórios de redução da poluição, criados pelas emendas de 1990 ao Clean Air Act. Em 2006, as emissões de SO2 dessas empresas foram 40% menores do que em 1990 e as emissões de NOx, 46% inferiores. Mas as emissões de dióxido de carbono (CO2), que não são reguladas por lei federal, cresceram 29% nesse mesmo período, de acordo com o inventário de gases de efeito estufa da agência ambiental do EUA, a EPA. O setor, individualmente, é o maior emissor de CO2 de toda a economia do país.
Mesmo considerando essas reduções resultantes da regulação governamental, o setor elétrico no EUA ainda é responsável por 70% das emissões de SO2; 20% de NOx; e 40% de CO2, além de contribuir com 68% da poluição aérea por mercúrio.
As 100 maiores produtoras de eletricidade estudadas no relatório produziram 85% da eletricidade total gerada no EUA em 2006; 96% da energia nuclear; 90% da eletricidade termelétrica a carvão; 84% da hidreletricidade; 73% da geração termelétrica a gás e 47% da eletricidade de fonte renovável de origem não-hidráulica. Entre as térmicas, o carvão forneceu 49% da eletricidade total; o gás natural, 20% e o óleo, 1%. A nuclear é a principal fonte não fóssil, com 19% do total; a hidreletricidade não passa de 7%; e outras fontes renováveis não alcançam 3%. Na amostra das 100 maiores, o carvão tem participação mais elevada, alcançando 52% do total; as nucleares também têm representação superior, com 22%; a contribuição do gás, é menor: 17%; as hidrelétricas têm o mesmo peso, 7%; e o óleo e as outras fontes renováveis têm participação inexpressiva, com 1%, respectivamente.
Por causa da participação de plantas elétricas nucleares e hidrelétricas entre as 100 maiores, as emissões de gases estufa nesse grupo são muito concentradas: os três maiores geradores são responsáveis por 25% das emissões de CO2; os quatro maiores emitem 25% do total de SO2 e mercúrio; e os 6 maiores 25% do total de CO2.
A principal fonte das emissões de CO2 é o carvão, representando 81,5% do total; as termelétricas a gás natural emitem 15% do total e as a óleo, 2%.
O relatório analisa, com base nos dados relativos às cem grandes, cenários para diferentes situações de aplicação de um sistema de cota e crédito de carbono, utilizando, inclusive, as condições previstas no projeto do Lieberman-Warner Act recentemente retirado de pauta no Congresso do EUA. Os autores fazem uma clara defesa da adoção do sistema de cota e crédito, já usado na União Européia, e que vem sendo objeto de muita controvérsia. Não parece realista imaginar cenários para as próximas décadas que não incluam a generalização de um mercado de cota e crédito, pelo menos no mundo desenvolvido, envolvendo Austrália, Nova Zelândia e Japão; a União Européia; e Estados Unidos e Canadá.
Estudos como esse mostram que, dada a reconhecida e cada vez menos refutável constatação dos riscos presentes e futuros da mudança climática, políticas de redução de emissões de carbono serão inevitáveis até 2015, quando o Protocolo de Kyoto perde sua vigência. Também fica evidente que não existe um mecanismo único - imposto sobre o carbono, cota e crédito, reduções e compensações voluntárias - que consiga atingir o volume de redução considerado necessário pelos cientistas para evitar que atravessemos o ponto crítico de concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera. É necessário um misto de políticas, usando incentivos típicos de mercado, via sistema de preços, regulação estatal e o fortalecimento das ferramentas de responsabilidade corporativa, transparência de emissões e esquemas voluntários de redução e compensação de emissões.
A regulação deve ser parte essencial desse misto e é no mínimo ingenuidade imaginar que só os mecanismos de mercado serão capazes de obter o volume necessário de redução das emissões de gases estufa. Esse exemplo do EUA serve mais para a maioria dos países com alta participação do carvão na geração elétrica. Mas é um alerta para que o Brasil interrompa, enquanto é tempo, o crescimento irresponsável da participação das térmicas a carvão em nossa matriz elétrica. No nosso caso, a geração de eletricidade não é o maior desafio, mas isso não significa que o Brasil não precise rever radicalmente sua política para o setor, trazendo para o centro das decisões estratégicas as fontes renováveis não-hidráulicas, como eólica, biomassa e fotovoltaica. Hoje, estão confinadas ao Proinfa, que serve de álibi para que continuem como contribuição periférica e acessória e não como alternativas reais, que vêm recebendo atenção crescente de empresas e governos nos Estados Unidos, na União Européia e na China.
A adoção mais rápida de tecnologias em fase de teste e amadurecimento, como de biocombustíveis celulósicos e hidrogênio, ou mesmo de seqüestro e armazenamento de CO2, não ocorrerá sem o impulso da regulação mais rígida. Apenas os mecanismos de mercado, via mecanismo de preços, ou mesmo por meio da improvável adoção generalizada no curto prazo de imposto sobre o carbono, não serão suficientes. É a combinação entre as restrições da regulação e as induções do mercado que permitirá alcançar metas mais próximas do ponto necessário.
No Brasil, estamos atrasadíssimos nessa discussão. Ainda sequer temos inventários suficientemente completos de emissões para podermos desenhar políticas mais adequadas a nosso contexto. Temos recusado liminarmente a regulação, a adoção de metas compulsórias de emissões e uma política voltada para a mudança climática, sem informação suficiente e sem avaliação de riscos e oportunidades para o país e para as empresas.
(Por Sérgio Abranches*, OEco, 23/06/2008)
* Mestre em Sociologia pela UnB, PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell e Professor Visitante do Instituto Coppead de Administração, UFRJ.