Em Brasília, há um governo, atravessado por contradições, que nunca se furtou ao diálogo. No Rio, um jornal que sempre apreciou o extermínio dos filhos da terra. É tão difícil discernir quem é o interlocutor mais confiável? O canto da sereia ainda é tão irresistível?
Reportagem de O Globo, no último domingo, 22 de junho, mostra o jogo errático da grande imprensa quando o assunto envolve ogoverno Lula e os movimentos sociais. Deveria servir de alerta para certa esquerda que não entendeu, ou finge não ter entendido, o jogo bruto da direita e suas corporações midiáticas.
Com destaque, em página ímpar, o jornal destaca uma suposta opção do presidente Lula pelo agronegócio em detrimento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra ( MST). O espaço concedido ao presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) é excessivamente generoso para não levantar suspeita. Lá, Plínio Arruda Sampaio não poupa certezas: “Os acampados abandonaram a estrada porque se convenceram da dura realidade: Lula não vai fazer reforma agrária. Sabendo disso, o MST decidiu engrossar a demanda e fala agora em combater o agronegócio".
O mais interessante é que o jornal parece dar razão a lideranças que sempre procurou criminalizar, e trabalha com números que aparentemente fundamentam seus argumentos. Mas a manipulação é tão evidente que, na mesma matéria temos montantes díspares, vindos da mesma fonte. Na dobra superior da página 15, a jornalista Soraya Aggege informa que “enquanto Fernando Henrique assentou, em oito anos, 400 mil famílias, Lula assentou 150 mil em cinco anos, segundo checagem de pesquisadores sobre os dados do Ministério do Desenvolvimento Agrário".
Escondidos, numa coluna do final da matéria, surgem outros números fornecidos pelo mesmo Ministério. Agora, são 448.954 famílias assentadas no mesmo período de tempo, ou seja, mais que o triplo do governo anterior. Parece que a repórter não teve qualquer cuidado em checar os números do próprio texto. Incompetência? Desatenção? Ou tentativa deliberada de criar falsas polarizações? A resposta talvez esteja em uma perspectiva comparada com o tratamento dispensado à questão agrária ao longo dos últimos anos pelo jornalismo nativo. Para isso, voltaremos no tempo para centrar a análise em fato emblemático.
Em dezembro de 2004, a imersão conservadora da imprensa brasileira produziu, um subtexto digno de figurar como peça pobre do realismo mágico. Não pela magnitude estética, mas pelo mergulho no absurdo. Sem a grandiosidade estilística de um Gabriel García Márquez, a Macondo do jornalismo brasileiro foi uma ficção pobre, travestida de discurso objetivo. Não se propôs a contar a história de qualquer cidade mítica, mas a ocultar os interesses de Arcádios Buendía que impõem seus desmandos há mais de três séculos de solidão.
Enquanto 600 delegados de 70 países participavam, em Valencia (Espanha) entre 4 e 8 de dezembro, do Fórum Mundial de Reforma Agrária (FMRA), os jornais brasileiros preferiram ignorar o evento ou a ele dedicar apenas breves registros anódinos. Fingiram não ver o ato inaugural de uma nova articulação contra-hegemônica. Pela lógica editorial predominante, os debates em plenárias e as oficinas sobre mazelas e limites do modelo agrário hegemônico não eram dignos de figurar em folhas que só avalizam as chamadas "reformas agrárias de mercado".
Do ponto de vista jornalístico, o silêncio sobre o Fórum não encontrava qualquer justificativa que não esbarrasse nos surrados critérios classistas do que deve ser notícia. Afinal, lá estavam Miguel Rosseto, então ministro do Desenvolvimento Agrários, e representantes do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) – duas entidades governamentais responsáveis pela promoção de uma nova ordem fundiária.
Relevância política doméstica era o que não faltava. A grande ausente, tanto nas editorias de política quanto nas de economia, era disposição para confrontar reflexões de matizes distintas daquilo que era reiterado dia após dia, na batida monocórdica do pensamento único.
Como destacou o semanário Brasil de Fato, reproduzindo avaliação do reitor da Universidade Politécnica de Valencia (UPV), Javier Sanz "pela primeira vez na história, representantes de movimentos sociais, organizações não-governamentais, governos e especialistas acadêmicos reúnem-se em um encontro dessa amplitude para debater os desafios que envolvem as lutas por reforma agrária em todo o mundo".
Do ponto de vista político, o camponês reafirmava sua existência como sujeito de direito e, ao denunciar o modelo de monocultura voltado à exportação, tocava em questão sensível para veículos que não cansam de incensar as virtudes do latifúndio redimido: o agronegócio, que estaria alavancando indicadores macroeconômicos, seria, na verdade, expressão do atraso imposto pelos centros hegemônicos aos países periféricos.
Reiteramos, tal como já fizemos em outros artigos publicados em Carta Maior, que O Globo, O Estado de S.Paulo, Folha de S. Paulo e Gazeta Mercantil, entre outros, existem como isolamento acústico para demandas que venham a contrariar interesses secularmente consolidados.
Como conseqüências da perda de soberania nacional face às imposições dos organismos multilaterais de crédito, teríamos a privatização de recursos naturais, a degradação ambiental, a concentração de propriedades e a extinção da agricultura camponesa e familiar que privilegia o mercado interno.
De acordo com as organizações presentes em Valencia, o resgate soberano exigiria, ainda, que a alimentação e agricultura saíssem das discussões travadas no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) e fossem tratadas como direitos de todos. O documento final não deixa dúvidas de que estamos em meio a um processo contra-hegemônico de grande vulto.
A inter-relação entre os interesses campesinos e os demais setores da sociedade demonstra a superação corporativa que marca as fases embrionárias dos movimentos sociais. Vejamos um trecho publicado na edição de 9 de dezembro de 2004, de Carta Maior:
"Reafirmar o acesso à terra como direito de toda a humanidade e retirar as questões relativas à alimentação e à agricultura das discussões travadas no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) e dos acordos comerciais bi e multilaterais. Esta foi a principal resolução política definida na declaração final do 1º Fórum Mundial sobre a Reforma Agrária, que terminou nesta quarta-feira (8) em Valencia. Após quatro dias de intensa discussão, com a participação de representantes de organizações de mais de 70 países, a mais importante contribuição desse FMRA foi apontar para a unificação de uma agenda de mobilizações que coloque a luta pela reforma agrária como parte integrante da luta estrutural contra as políticas neoliberais que contribuem para aumentar a miséria dos trabalhadores, seja no campo ou na cidade, em todo o mundo".
A observação do representante dos camponeses da Catalunha, Xávi Caetán, era importante demais para não ser registrada nesse artigo escrito com uma perigosa dose de indignação:
"Os governantes e a elite européia devem mudar sua postura. Não adianta ficarmos aqui discutindo a soberania alimentar nos países menos desenvolvidos enquanto nossas grandes empresas continuam adquirindo gigantescos pedaços de terra no Sul apenas para transformá-los em pastos."
Mas não era esta uma das denúncias mais graves feitas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST)? A de que o processo de desnacionalização no campo era crescente? Imaginem que pauta isso não daria se o compromisso da imprensa brasileira fosse com uma sociedade efetivamente republicana?
E como ignorar o impacto internacional das declarações do delegado palestino, Jadeh Jamal, quando afirmava que camponeses da Palestina, Iraque e Afeganistão estão morrendo de fome por conta da política de força exercida por Estados Unidos e Israel? Como deixar de refletir sobre mais essa constatação feita pela mesma liderança?
"Atualmente, por falta de alternativas de produção dignas, os camponeses do Afeganistão são responsáveis pela produção de 80% da heroína que é vendida na Europa. Não podemos ter medo de, ao lutar pela reforma agrária, denunciarmos nossos verdadeiros inimigos".
Como pudemos ver nessa pequena viagem no tempo, a questão agrária é de enorme centralidade se pensamos em democracia, justiça social e Estado de Direito. E é aí que reside o pecado capital da nossa grande imprensa: a falta de compromisso com qualquer um dos três itens. Assim, quando publicou estudo da Unicef apontando a existência de 27 milhões de crianças vivendo abaixo da linha de pobreza e não faz qualquer menção à concentração fundiária, produz uma falsa representação da realidade. Um ocultamento ideológico imperdoável.
Impossível pensar em atuação política no interior da estrutura midiática visando à exploração de contradições e ocupação de espaço. Esse erro antigo foi abandonado nas principais intervenções do Fórum da Mídia Livre, realizado no Rio de Janeiro.
A importância de contar com veículos próprios para a luta ideológica tem levado várias organizações a repensar a questão de estabelecer uma ordem informativa horizontalizada, capaz de transpor suas demandas específicas e atingir um público amplo. A mobilização social requer inventividade nas formas de comunicação política. E, por certo, no interior da própria luta a práxis encontrará os melhores caminhos.
Em um momento como esse, será que o Globo se tornou o porta-voz de movimentos anti-sistêmicos? Será que ainda não aprenderam que quando a esmola é demais, o santo desconfia? Um mínimo de sensatez é necessário.
Em Brasília, há um governo, atravessado por contradições, que nunca se furtou ao diálogo. No Rio, um jornal que sempre apreciou o extermínio dos filhos da terra. É tão difícil discernir quem é o interlocutor mais confiável? O canto da sereia ainda é tão irresistível? É essa a nossa esquerda conseqüente e combativa?
(Por Gilson Caroni Filho, Carta Maior, 23/06/2008)