No século passado estive a trabalho na Cidade de Cuenca, no Equador. Minhas tarefas profissionais, eminentemente burocráticas, terminaram em uma sexta-feira e meu vôo de volta decolava apenas no domingo. Aproveitei o sábado para fazer o que mais gosto. Visitei o Parque Nacional de Cajas.
Cajas é uma belíssima Área Protegida que fica na Cordilheira dos Andes a escassos 30 quilômetros da arquitetura colonial de Cuenca. Trinta quilômetros morro acima, bem entendido. Sua altitude mínima está aos três mil metros acima do nível do mar, mas seus 29 mil hectares têm pontos ainda mais altos. Abrigam picos que ultrapassam os 3.500 metros. Não são, contudo, as elevações andinas que fazem desse Parque um dos mais belos que já visitei. O que encanta em Cajas são suas 232 lagoas de todos os tamanhos e formas, cuja limpidez azul reflete as montanhas como se fossem espelhos. A partir da sede do Parque, tão logo se começa a caminhar, já se pode ver os primeiros reservatórios naturais, pequenitos ou grandotes, interligados por filetes d´água, formando um grande sistema lacustre. A beleza é tanta e tão incomum que o excursionista quer caminhar por muitas e muitas horas para experimentar essas paisagens por todos os ângulos possíveis. Assim fiz eu.
Só há um problema. Tal como a maioria das Unidades de Conservação brasileiras, as trilhas de Cajas não são dotadas de infra-estrutura alguma. Não há sinalização, drenos, corrimãos ou pontes. Pedi a um guarda-parque que me indicasse uma caminhada de aproximadamente quatro horas de duração. Ele desenhou um mapa tosco pelo qual eu bordejaria oito lagoas antes de virar à esquerda e desembocar em uma estrada de asfalto, alguns quilômetros acima da sede de Cajas. Uma vez na rodovia seria fácil pegar uma carona de volta, assegurou-me.
Lá fui eu. Comecei por margear uma grande lagoa que dividia o chão de um amplo anfiteatro com outras três. Depois enveredei-me por um vale de paredes altíssimas, em que um pequeno rio era seguidamente represado em gargalos do relevo para formar uma série de lagos em cujas superfícies é possível ver a reprodução perfeita das montanhas. Em Cajas fica claro o significado da expressão espelho d´água. Dois, três, quatro, cinco, seis, no sétimo lago já estava exausto. Marchara apenas 3 horas, mas a altitude tinha cobrado seu preço. O ar rarefeito não me deixava caminhar no mesmo passo a que estava acostumado em terras cariocas ao nível do mar. O meu consolo é que faltava apenas uma hora para o fim da jornada.
Eis que, ao vencer o último gargalo e vislumbrar o derradeiro lago, não vejo a trilha dobrar para a esquerda como rabiscara o gentil guarda-parque. A lagoa estava completamente flanqueada por um pequeno anfiteatro cujas paredes quase verticais deviam ter uns 250 metros de desnível. O caminho contornava a água e galgava a vertente do fundo, íngreme como um poste. Consultei o relógio. Eram três da tarde. Só me sobravam cerca de 2 horas e meia de luz. Depois, seria a escuridão, os ventos frios e o sério risco de morrer de hipotermia. O dia ainda estava relativamente quente, mas senti a espinha gelar-me. O que fazer? A decisão sensata seria intuir que seguira erradamente o mapa e voltar pelo mesmo caminho que viera. O problema é que já estava esbagaçado. Por outro lado, se cabritrasse aquela parede e a trilha não se envergasse para a esquerda, eu não teria mais luz nem preparo físico para retornar.
Sentei no chão e avaliei a situação. Li e reli o rascunho do guarda-parque, confrontei-o com um mapa da região de Cuenca, consultei a posição do sol para calcular onde estava o Leste e o Oeste e apostei na subida. Uma vez no topo, a trilha quebrava para a esquerda e, em menos de 20 minutos, eu estava no pavimento da rodovia que liga o altiplano à cidade de Guayaquil. Naquela noite dormi mal, pois a adrenalina demorou muito a baixar.
São várias as lições que se tiram da minha experiência. Nunca caminhe sozinho, nunca comece um passeio no fim da tarde, tenha sempre um bom mapa com você, esteja munido de um celular para emergências, em lugares frios carregue sempre um agasalho para o caso de ser necessário. Felizmente safei-me por ter alguma experiência em caminhadas e conhecer alguns rudimentos de navegação. Saber ver o sol e conseguir sobrepor dois mapas de escalas e qualidades diferentes me deu alguma segurança para tomar a decisão que me levou a escalar a borda do último anfiteatro.
Se não já hoje, certamente em um futuro muito próximo, nada disso teria sido necessário. Um GPS bem calibrado e com o software adequado teria tranquilizado o caminhante, mostrando claramente sua localização bem como o traçado da estrada e da própria trilha. Nos deslocamentos de automóvel pelas cidades e rodovias da Europa e dos Estados Unidos, o GPS já é o grande navegador. Ninguém mais lê mapas ou interpreta as placas de sinalização. Basta ter ouvidos. O GPS mostra o caminho das pedras: “vire a direita daqui a 200 metros”, “avance por dois quilômetros e retorne a esquerda no sinal” e assim por diante. Vez por outra ele erra. O software, afinal, é feito por falíveis seres humanos. Ordena uma entrada na contra-mão ou não foi atualizado e não sabe que a rua tal está interditada para obras do metrô. Nada demais, Basta reprogramá-lo e ele recalcula o itinerário fazendo o freguês chegar ao destino por uma rota alternativa.
Na América do Norte já há algumas trilhas cujo traçado pode ser colocado na memória do GPS. Para breve está previsto um tênis de caminhada que emitirá sinal para uma rede de satélites permitindo localizar seu usuário em qualquer lugar do planeta 24 horas por dia. Ninguém mais vai se perder ou deixar de ser encontrado.
Só eu. Por anos desprezei os analfabetos cartográficos. Sou daqueles chatos que sabe ler as linhas de relevo em um mapa e localizar os penhascos no papel. Sei diferenciar as estradas, a altitude e a vegetação pelas cores; sei identificar os ícones que me descortinam as plantações, as cachoeiras dos rios, os fios de alta tensão, os postos de gasolina, os sinais de trânsito, as escolas, as delegacias de polícia, por fim sei onde é norte sul leste e oeste. Infelizmente, logo nada mais disso vai ter valor. Vou perder a utilidade da minha arte.
Mas estou ficando velho e ainda guiarei minha vida nas trilhas pela descrição que Sérgio Buarque de Hollanda fez dos índios e de seus sucessores bandeirantes no clássico “Raízes do Brasil”:
“...Quando em terreno fragoso e bem vestido, distinguiam-se (as trilhas) graças aos galhos cortados a mão de espaço a espaço. Uma seqüência de tais galhos, em qualquer floresta, podia significar uma pista. Nas expedições breves serviam de balizas ou mostradores para a volta.(...) Onde houvesse arvoredo grosso, os caminhos eram comumente assinalados a golpes de machado nos troncos mais robustos. Em campos extensos chegava-se algumas vezes a extremos de sutileza.(...)
Essa destreza com que sabiam conduzir-se os naturais da terra, mesmo em sítios ínvios, herdaram-na os velhos sertanistas e guardam-na até hoje nossos roceiros. Concebe-se que práticas inventadas pelo gentio para marcar os caminhos — por exemplo, o uso de dobrar os galhos ou de golpear os troncos de árvore, ainda hoje freqüente entre a gente do interior — fossem facilmente aceitas pelos desbravadores paulistas.(...)
Um sistema de sinalização convencional nada seria, porém sem o socorro de um espírito de observação permanentemente desperto e como só se desenvolve ao contato prolongado com a vida nas selvas.”
Espero em cada trilha nova desenvolver um pouco mais a destreza da navegação com e sem mapas. Tanto aquela em que temos que casar o lugar em que estamos com o que lemos no papel, quanto aquela em que necessitamos exercitar nossos instintos mais selvagens, que nos incitam a decifrar as montanhas, os ventos, os rastros e os sinais.
Caminhar sem navegar também é bom. Certamente é mais seguro. Democratiza a natureza, abrindo-a aos mais medrosos e menos competentes. Franqueia às multidões as entranhas da mata selvagem. Na medida em que retira a componente do medo, aumenta o número de usuários e cria um grupo maior de defensores das Áreas Protegidas. Muito bacana, mas não é para mim. Não sou poeta mas amo a natureza e, em questões de andanças no mato, sou discípulo de Fernando Pessoa: “Navegar é Preciso, Viver Não é Preciso”
(Por Pedro da Cunha e Menezes*, OEco, 17/06/2008)
* Membro da UICN Brasil, Especialista em Unidades de Conservação urbanas. Ex-Diretor Executivo do Parque Nacional da Tijuca.