Desde o início da invasão colonizadora a vida e o futuro dos povos indígenas foram duramente afetados em função das doenças trazidas pelos europeus, tais como o sarampo, varíola, gripe, tuberculose, parasitoses e outras epidemias infecto contagiosas. Os invasores, depois de algumas décadas de perseguições, escravização e confrontos, perceberam a fragilidade imunológica dos povos para alguns tipos de doenças e se aproveitaram disso para seus projetos de ocupação territorial, desenvolvendo então terríveis atentados genocidas e etnocidas.
São muitos os registros históricos de praticas como a contaminação de alimentos, água e roupas com bactérias e vírus, para disseminar epidemias que matavam milhares de pessoas, diminuindo assim a necessidade do uso da força e das armas. Através dessa estratégia os invasores europeus ocuparam territórios, devastaram florestas, saquearam as riquezas minerais e exterminaram centenas de povos e culturas que milenarmente viviam neste território.
Esse processo genocida teve um longo percurso de quase cinco séculos, mas acentuou-se nos séculos XVIII e IXX, perdurando até o final dos anos de 1960. Em 1967 foi criada a Funai em substituição ao SPI, que desde 1910 buscava responder as demandas impostas pelo Estado brasileiro que impunha a política de expansão das fronteiras colonizadoras, com o slogan positivista “Ordem e Progresso”.
Os sucessivos governos, conhecedores da existência de inúmeros povos indígenas, os tratavam como quistos humanos ou como entraves para a implantação dos programas de ocupação e “desenvolvimento”, das terras consideradas “distantes e desabitadas”. Esta visão de “entraves ao desenvolvimento” ainda persiste na atualidade quando ouvimos o presidente Lula dizer que as questões dos índios, quilombolas, ambientalistas e Ministério Público são entraves para o desenvolvimento do País.
Iniciou-se com o SPI a política do contato para o aldeamento dos índios, confinando-os em reservas e ou em parques. A perspectiva dos governantes sempre foi a de liberação das terras ocupadas pelos povos indígenas e cobiçadas para projetos desenvolvimentistas, estabelecendo para este fim áreas específicas nas quais seriam concentradas as aldeias indígenas. Nesta mesma perspectiva, os povos indígenas deveriam ser “harmoniosa e gradativamente integrados à comunhão nacional”, sendo previstas ações oficiais voltadas para este fim, tais como a criação de postos de serviços de saúde e educação, bem como a presença de diferentes confissões religiosas motivadas pelo propósito de “redimi-los pela fé”.
O objetivo central dos militares, que comandavam o SPI, era o de extinguir paulatinamente os indígenas a partir da imposição de políticas assistenciais que conduziriam, em um curto período de tempo, a integração. Ou seja, gradativamente os povos indígenas seriam incorporados aos modos de vida ocidentais, até que deixassem de afirmar seu pertencimento étnico, perdendo então os direitos sobre as terras. E aqueles que não se submetessem a essa perspectiva deveriam ser banidos das reservas e o Estado deixaria de prestar-lhes assistência. Estes, consequentemente, estariam susceptíveis às doenças, às violências, aos embates com as empresas de colonização e com os grandes empreendimentos hidroelétricos, de mineração, madeireiros e das construtoras de estradas de ferro e estradas vicinais.
Eles estariam também, na ideologia dominante, condenados ao extermínio e por isso se projetava, na época, que até o ano de 2000 não existiriam mais índios no Brasil.
A assistência em saúde, durante décadas, foi sendo prestada por grupos de pessoas, espécies de equipes volantes, que percorriam, com os soldados do Exército, as reservas que foram criadas. As ações e serviços em saúde sempre se caracterizaram como emergenciais, esporádicas e paliativas. Nunca se estabeleceu um processo de reflexão e construção de políticas continuadas e voltadas para a cura das endemias e de prevenção das doenças que assolavam os povos e comunidades indígenas.
Posteriormente, com a Funai, se manteve a mesma dinâmica, qual seja, a assistência continuava a ser desenvolvida através das equipes volantes. Só no final dos anos de 1970 é que foi criado um setor de saúde que buscou coordenar as ações destas equipes em articulação com alguns postos indígenas, postos da Funai, instalados dentro de algumas aldeias. Essa política perdurou até o início dos anos de 1990.
Na segunda metade dos anos de 1980 houve forte mobilização nacional pela criação de um Sistema Único de Saúde para toda a população. Isso ocorreu em função da caótica realidade existente no país que se caracterizava pela ausência do Estado nas ações e serviços de saúde pública.
O processo constituinte trouxe a tona essa discussão, bem como o debate sobre a realidade dos povos indígenas. Eram muitas as denúncias, neste período, acerca da situação dramática em algumas comunidades indígenas que enfrentavam epidemias de sarampo, tuberculose, malária. Esta situação adquiriu visibilidade e foi amplamente difundida no Brasil e no exterior. A mortalidade entre os indígenas, de modo especial na Amazônia, era alarmante e colocava em risco a existência de inúmeros povos, a exemplo dos Deni no Amazonas que, em função das invasões em seus territórios, foram acometidos por surtos intensos de tuberculose. No final dos anos de 1980 a população Deni havia sido reduzida em 25%.
Também foram estarrecedoras as mortes de Yanomami em Roraima, resultantes de invasões garimpeiras e dos Nambikuara em Rondônia e Mato Grosso. Este quadro de negligência precisava ser revertido e, em 1986, foi convocada a primeira Conferência Nacional sobre Saúde Indígena. A partir deste momento histórico foram sendo apresentadas propostas para que a atenção à saúde indígena fosse assumida como uma política diferenciada e não mais como ações emergenciais.
Depois de promulgada a nova Constituição Federal, em 05 de outubro de 1988, ocorreram mudanças quanto às definições de responsabilidades da União no tocante à assistência aos povos indígenas. Foram editados decretos do presidente da época, Fernando Collor de Mello, repassando atribuições, que se concentravam no âmbito da Funai, para diferentes instâncias e ministérios do governo federal. No caso da saúde o Decreto de número 23/92 transferiu parte das responsabilidades da assistência em saúde para a Fundação Nacional de Saúde, hoje Funasa. Em 1994 o Decreto 1141 determinou que “as ações de proteção ambiental, saúde, e apoio às atividades produtivas voltadas às comunidades indígenas constituem encargo da União”... e que a Funai participaria com um representante “na elaboração dos programas e projetos” de que tratavam a referida portaria e ainda seria “garantida a participação de representantes da comunidade indígena envolvida”.
No ano de 1993 ocorreu a segunda Conferência Nacional de Saúde Indígena, momento em que diversas organizações indígenas e indigenistas debateram amplamente as propostas que estavam sendo gestadas em todas as regiões do Brasil sobre a perspectiva de criação de um sistema de saúde específico e diferenciado para as populações indígenas. Das resoluções desta conferência se originou a Lei Arouca (Lei 9836/99), que cria o Subsistema de Atenção a Saúde dos Povos Indígenas tendo por base os Distritos Sanitários Especiais Indígenas. De acordo com a lei, o subsistema deverá: “obrigatoriamente levar em consideração a realidade local e as especificidades da cultura dos povos indígenas e o modelo a ser adotado para a atenção à saúde indígena, que se deve pautar por uma abordagem diferenciada e global, contemplando os aspectos de assistência à saúde, saneamento básico, nutrição, habitação, meio ambiente, demarcação de terras, educação sanitária e integração institucional. O Subsistema de Atenção à Saúde Indígena deverá ser, como o SUS, descentralizado, hierarquizado e regionalizado. O SUS servirá de retaguarda e referência ao Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, devendo, para isso, ocorrer adaptações na estrutura e organização do SUS nas regiões onde residem as populações indígenas, para propiciar essa integração e o atendimento necessário em todos os níveis, sem discriminações. As populações indígenas devem ter acesso garantido ao SUS, em âmbito local, regional e de centros especializados, de acordo com suas necessidades, compreendendo a atenção primária, secundária e terciária à saúde.
A lei assegurou as obrigações da União e definiu também que “Os Estados, Municípios, outras instituições governamentais e não-governamentais poderão atuar complementarmente no custeio e execução das ações”. Definiu ainda que “Caberá à União, com seus recursos próprios, financiar o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena e O SUS promoverá a articulação do Subsistema instituído por esta Lei com os órgãos responsáveis pela Política Indígena do País”.
Ao longo dos 10 anos que se seguiram, os objetivos e propostas que antecederam a criação da lei foram sendo deturpados, adaptando-se aos interesses governamentais. A implantação do subsistema deveria ser orientada pelas diretrizes da segunda Conferência Nacional de Saúde Indígena, sendo os distritos sanitários estruturados com autonomia em seus planos de ação, estrutura administrativa, na gestão de recursos humanos e financeiros, sempre com ampla participação indígena.
No entanto, os distritos sanitários especiais indígenas foram criados em 1999, durante o mandato de Fernando Henrique Cardoso, sem a devida atenção aos critérios sócio-culturais e étnicos que deveriam resguardar as bases dessa política. Impôs-se, sem discussão com os povos indígenas, a criação de 34 distritos, sendo que estes, na sua maioria, passaram a ser administrados por organizações não governamentais, dentre elas também algumas organizações indígenas, ou ainda por prefeituras. Poucas organizações estavam equipadas técnica e administrativamente para a nova função, enfrentando grandes desafios no gerenciamento e execução de ações em saúde.
Vale ressaltar que, dentre os distritos criados, o Distrito Sanitário do Leste de Roraima, que atende a área Raposa Serra do Sol, talvez seja um dos únicos a assegurar ações ancoradas numa política mais ampla, que prima pela autonomia e participação integral dos povos indígenas. Este distrito mantém um plano distrital, planejamento de trabalho, formação de agentes indígenas, capacitação de profissionais em saúde e conselhos atuantes no controle social.
A regulamentação do Subsistema de Saúde Indígena deveria ser efetuada pelo Poder Executivo, atendendo aos preceitos da Lei Arouca. No entanto, até hoje foram criados distritos mas esta política não se estruturou na forma de um subsistema, como prevê a lei, organizado com autonomia, recursos orçamentários próprios, capacidade de gestão e com exercício pleno e imprescindível do controle social pelos usuários. O que o Poder Executivo tem feito é criar mecanismos que deturpam a Lei Arouca, possibilitando a terceirização e a municipalização. Ao invés de regulamentar o subsistema de atenção à saúde dos povos indígenas, foi editado o decreto 3156/99, que define as competências da Funasa para executar ações de atenção à saúde indígena.
Também foi editada a portaria 2656/2007 (que altera a 1163/97) visando a criação de mecanismos de controle relativos ao repasse de recursos públicos para estados e municípios que prestam serviços em saúde às populações indígenas. Esta última portaria gerou grande polêmica porque cria confusão quanto às responsabilidades e atribuições federais, estaduais e municipais e por abrir precedente para uma possível municipalização da saúde indígena, contrariando reflexões e determinações das Conferências Nacionais anteriormente referidas.
Estes ajustes servem quase que exclusivamente para atender interesses políticos regionais e municipais, desvirtuando a proposta discutida e organizada durante anos pelo movimento indígena e indigenista. Em função disso, se presencia, em todas as regiões do país, o caos no tocante a prestação de serviços e à atenção continuada às comunidades e povos indígenas, resultando no alastramento de doenças contagiosas, de epidemias, de desnutrição, da fome e da mortalidade sem precedentes na história recente deste país.
Na terra indígena do Vale do Javari, no Amazonas, por exemplo, “a taxa de mortalidade infantil na reserva, no ano passado, foi de 123,07 óbitos de menores de 1 ano para cada mil bebês nascidos vivos, índice cinco vezes maior do que a média nacional entre não-índios (22,6, em 2006) e duas vezes e meia acima da média indígena (48,5). Apenas o Afeganistão e seis países africanos, entre eles Serra Leoa, Angola e Libéria, têm taxas maiores, entre os 194 países e territórios monitorados pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Mas nenhum supera a aldeia de Massapê: 277,7” (Agência Globo, 24/05/2008). A agência noticia ainda que “a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), órgão do Ministério da Saúde responsável pelo atendimento indígena, não tem médico algum na região, só enfermeiros e auxiliares. Vale repetir: não há médico nos 8,5 milhões de hectares da terra indígena Vale do Javari”.
A matéria vai mais além, informando que “segundo a Funasa, os casos de malária superaram o número de habitantes da reserva em 2007, o que significa que pessoas foram infectadas mais de uma vez no ano. Já a hepatite B atingia 7,7% dos moradores, dos quais boa parte não recebe tratamento”.
Não se trata de fatos isolados. O último relatório de violências contra os povos indígenas, organizado pelo Cimi, traz ocorrências em várias regiões do país, de desassistência à saúde indígena, morte por desassistência, mortalidade infantil e desnutrição (Capítulo III – Violência por Omissão do Poder Público).
Nos últimos meses os povos indígenas têm manifestado veementemente seu descontentamento com a negligência da Funasa no tocante ao estabelecimento do diálogo sobre a política de saúde. A intransigência em conversar e estabelecer um processo de discussão e avaliação sobre o atual modelo de prestação de serviços nas áreas indígenas e sobre o alastramento de doenças e a morte de pessoas de todas as idades não pode ser silenciada. Neste sentido, os povos indígenas elaboram documentos relatando as dificuldades que enfrentam; denunciam que o governo federal lava as mãos diante dos problemas e delega para terceiros (como representantes de entidades e de prefeituras) o diálogo com as comunidades e, como manifestação de repúdio a esta situação, têm ocupado sedes da Funasa em diversas regiões.
O contexto atual exige que se apontem as responsabilidades e que se mostrem claramente os efeitos da deturpação do modelo de atenção à saúde dos povos indígenas, impondo-se mais uma vez uma política concebida na ilegalidade e na provisoriedade. De quem é a culpa pelo mau gerenciamento dos recursos financeiros e humanos no âmbito dos distritos de saúde? De quem é a responsabilidade pelos alarmantes índices de mortalidade e pelo alastramento de doenças que se imaginava controladas, tais como a hanseníase, tuberculose, hepatite, leishmaniose, malária, febre amarela, dentre outras?
Podemos afirmar que a responsabilidade é do governo federal, em especial do Ministério da Justiça e seu subordinado órgão indigenista, a Funai, instâncias que deveriam assegurar a demarcação e garantia das terras indígenas. Isso porque não há como assegurar a saúde indígena sem a garantia de espaços de vida adequados a estas populações, espaços nos quais possam construir suas estratégias e projetos de vida ancorados em seus sistemas simbólicos. Não há como assegurar plenamente o direito à saúde indígena, sem considerar as práticas próprias de manutenção da vida e de prevenção de doenças, que devem ser respeitadas, incentivadas e devem também nortear a política de atenção diferenciada à saúde indígena. Mas estas práticas próprias de cada povo só podem ter como espaço de realização as terras indígenas – demarcadas, fiscalizadas e respeitadas pelo poder público. No que tange a Funai, esta não dispõe de estrutura financeira e nem autonomia para atender as demandas quanto à demarcação de todas as terras indígenas, bem como de sua proteção e fiscalização, fato que revela a mais absoluta falta de interesse que o atual governo vem demonstrando pelos povos indígenas.
Podemos afirmar também que a responsabilidade pelo gravíssimo quadro de saúde indígena é do Ministério da Saúde e de sua subordinada, a Funasa. Isso porque, o modo de organização da política de atenção à saúde indígena, comprometeu seriamente as diretrizes e proposições das Conferências Nacionais de Saúde Indígena, especialmente porque não se regulamentou o subsistema específico e diferenciado, conforme estabelece a legislação correspondente, e se instituiu a terceirização dos serviços e o incentivo a municipalização.
O resultado disso é o aprisionamento dos distritos em estruturas burocráticas que impedem a autonomia na definição das ações estratégicas de manutenção da saúde e prevenção de doenças. No que se refere à Funasa esta enfrenta também dificuldades como as da Funai. No entanto, está mais bem amparada com recursos financeiros, que por sua vez são mal administrados e quando destinados a prestação de serviços em saúde percorrem os caminhos da inoperância, da má administração e gestão, dos entraves burocráticos que engessam os projetos e impedem adaptações pautadas na realidade dos povos atendidos, na ausência de controle social por parte das comunidades e povos indígenas e no pouco diálogo e abertura para avaliar o modelo de atenção a saúde em vigor.
Cabe, portanto ao governo federal proporcionar um amplo processo de avaliação das ações até então desenvolvidas, iniciando-se em cada localidade, envolvendo os distritos e favorecendo a participação de todas as comunidades indígenas. Cabe também ao governo reformular a sua política de saúde indígena para atender as determinações constitucionais e às estabelecidas pela lei Arouca, constituindo uma política de atenção e de assistência para os povos indígenas que atenda efetivamente às suas demandas, desenvolvendo ações e serviços de prevenção e proteção duradouras e eficazes.
(Por Roberto Antonio Liebgott*, Cimi, 13/06//2008)
* Vice-Presidente do Cimi