Latas de refrigerante e tambores de plásticos viram instrumentos musicaisnas mãos das crianças do residencial Albino Boa Ventura, em Goiânia, Goiás. Filhos de catadores de material reciclável, eles fazem parte do bloco de percussão de lixo Vida Nova. A criação do grupo é resultado do trabalho do projeto Vidas Secas. A história desses garotos e garotas foi registrada e se transformou no documentário "Lixo Ritmado, Batuque Reciclado", lançado no dia 28 de maio, em Goiânia.
No dia do lançamento, fui assistir o documentário. Com o cinema escuro, a
fita começou. Rostos sorridentes de crianças foram aparecendo na tela e cada uma dizendo o seu nome. Neste momento, a mulher sentada ao meu lado deu um pequeno grito de alegria e disse: "É o Max, meu filho". Sorri em reposta ao seu comentário. As cenas seguintes mostraram as crianças e suas famílias ainda na favela dos trilhos, local onde moraram por cerca de 7 anos. Elas relataram o seu cotidiano. A maioria delas não estudava, algumas eram responsáveis pelas tarefas domésticas e quase todas ajudavam os pais na separação do lixo. A vida na favela não foi fácil, as famílias viviam em pequenos barracos de lona sem condições sanitárias mínimas. Várias crianças falaram de alagamento, de ratos passeando em suas camas e muitos insetos.
As cenas da favela emocionaram Consita, a mulher sentada ao meu lado. A cada nova tomada projetada, chorando ela agradecia a Deus por ter saído dali. A dura realidade social brasileira começou a ficar mais clara na tela. As crianças começaram a relatar o preconceito que sofriam: "Muitos nos tratam iguais a cachorro", "As pessoas acham que a gente é lixo", "A gente sofre muito preconceito". As frases não paravam de pipocar. Ninguém podia calar as crianças. Toda dor e sentimento de revolta por terem sido desumanizadas e rotuladas foram, aos poucos, sendo extravasados.
Os sonhos... O que dizer do que elas acalentam como esperança de futuro? A pergunta veio: O que você quer ser quando crescer? E as respostas foram aparecendo: "médico", "jogador de futebol", "atriz"... Ninguém - como bem alertou um dos líderes do Movimento dos Catadores antes de começar a exibição do documentário - disse que queria ser catador de material reciclável. Embora não queiram viver a mesma realidade dos pais, as crianças sabem que o trabalho que realizam é importante para toda a sociedade.
Em Goiânia há 3.500 catadores de material reciclável organizados. O número ainda será maior se incluirmos aqueles que não participam de associações e movimentos. Eles retiram das ruas cerca de 400 toneladas de lixo por dia. O que corresponde a 89% da cadeia produtiva da reciclagem da capital goiana. Contudo, mais do que serem fundamentais para a preservação do meio ambiente, eles são cidadãos, pessoas, como eu ou você que lê agora este artigo.
Do lixo, o material que antes o segregavam em uma sociedade preconceituosa, veio o caminho para reafirmarem seus direitos. As crianças, que agora não vivem mais na favela, se apresentam em lugares públicos, como feiras e eventos. A percussão possibilitou a elas descobrirem o sentimento de pertencer a uma sociedade e de poder, com o mínimo de condições que lhe foram oferecidas, conquistar o seu lugar. Lugar que deve ser garantido, não apenas no papel - na Constituição de 1988, mas de fato. Elas, e todos - que ainda vivem em lugares sem condições mínimas, precisam ter garantido um teto para viver, escola, serviço de saúde, lazer e cultura.
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Portal do Meio Ambiente- 16/06/2008)