Só no Pará, um dos estados da região Norte onde essa praga bateu mais cedo, ela deixou 20 milhões de hectares desmatados, dos quais um terço é puro passivo ambiental reconhecido por lei – áreas de preservação permanente e reservas legais peladas ou degradadas – e um rastro de violência e conflitos sociais. E é justamente lá que vai se aplicar um antídoto há muito conhecido, o reordenamento fundiário, mas raramente aplicado pelos governos.
O processo se institucionalizou no início desse ano, quando o governo paraense enviou ao Legislativo estadual projeto de lei estabelecendo as condições para a regularização fundiária em terras que pertencem ao estado. “Ele determina os critérios para a titulação definitiva”, diz Valmir Ortega, secretário de Meio Ambiente do Pará. “Serão levados em conta o tamanho da propriedade, sua finalidade, capacidade de produção e o registro no cadastro ambiental rural”.
Essa última demanda, na verdade, é a grande novidade do programa no Pará. É a primeira vez que a necessidade do cadastramento, e a conseqüente regularização do passivo ambiental, se transforma em pré-condição para a titulação de uma posse. O Paraná tem um programa semelhante, mas a regularização ambiental não está ligada à obtenção do título definitivo e sim a possibilidade de passar a propriedade adiante como herança.
Partida
A decisão do governo do Pará de começar a encarar o problema fundiário em seu território se consolidou ao longo de 2007, quando o Instituto de Terras do Pará (Iterpa), resolveu atuar em 27 áreas de conflito no estado dando prioridade à organização e a titulação de posses. Descobriu duas coisas que a rigor todo mundo já sabia. “A ação reduziu o índice de violência nessas áreas”, diz José Benatti, presidente do Iterpa. De quebra, ela ajudou também a conter o ímpeto da devastação ambiental.
A certeza de Ortega e Benatti quanto à aprovação do projeto é grande. Ana Julia, a governadora, detém maioria tranqüila na Assembléia. “E o texto simplesmente detalha o que já está na constituição estadual”, garante Ortega. Além disso, ele aposta que as lideranças políticas e empresariais do estado percebem a importância de reduzir o que ele chama de custo Pará. Ortega aponta sobretudo para a questão da imagem do estado, onde a bagunça da ocupação para a percepção de que ele é uma zona sem lei, que tem sérias conseqüências como o desmatamento e a violência.
Diante da expectativa de aprovação do projeto, o Iterpa deu início a levantamentos preliminares sobre a situação fundiária em 8 municípios no Sudeste e Sul do Pará. O órgão tem 10 equipes fazendo a varredura fundiária nessas regiões. Segundo Benatti, essa primeira fase é, na teoria, muito simples. “Estamos indo em cada posse e marcando sua localização com GPS na porteira ou no local de ocupação”, conta ele. Mas estando o Pará no Brasil, as coisas não são assim tão preto no branco. “A demanda de descrição física do terreno sob posse é coisa recente, que não existia até algumas décadas atrás”.
Benatti dá exemplos. “Você esbarra em ocupações que estão registradas no Incra ou no Iterpa sem muitos detalhes. Não é raro você bater num papel que diz que a posse está na margem esquerda do rio Capim, e é só. Ou seja, o cara pode estar em qualquer lugar dessa margem”, diz. Pior é quando o termo diz que a posse está à margem do rio Capim. “Aí pode ser em qualquer canto, a 10, 20 ou 30 quilômetros do rio”. Passada essa primeira fase, vem a segunda, que é a discussão sobre o processo de regularização.
Prioridade
O projeto de lei que está tramitando na Assembléia dá os parâmetros gerais de como isso vai acontecer. Além da exigência do cadastramento ambiental, o texto exige que a ocupação tenha pelo menos 10 anos e que ela tenha gerado uma atividade produtiva. A partir daí, entram no processo de regularização critérios específicos para cada tamanho de posse reclamada. Para áreas até 100 hectares, o projeto prevê a possibilidade de titulação definitiva sem ônus ou a concessão de uso não onerosa. Entre 100 e 500 hectares, há a possibilidade de alienação da terra pública ocupada através da venda sem licitação.
Ortega diz que esse será o corte prioritário para a ação do governo estadual, dando preferência à concessão ao invés da alienação por conta de uma dupla razão. “Os pequenos e médios posseiros respondem por 70% do total de posses irregulares”, diz Benatti. E a opção pela concessão tem o objetivo de evitar que, uma vez legalizadas, a maioria dessas posses caiam no mercado de terras estadual, favorecendo a concentração e especulação fundiária.
Os maiores posseiros, que reclamam áreas acima de 500 hectares, são responsáveis por 80% das terras com ocupação irregular. O projeto de lei diz que nessa categoria, quem tiver reclamação sobre até 1500 hectares e cumprir as demandas previstas, inclusive a regularização ambiental, poderá comprar diretamente do estado, com base em preço de mercado, a terra que ocupa. A partir daí e até 2500 hectares, a alienação será feita apenas através de licitação pública. Quem der mais, e claro, cumprir as obrigações legais, leva. Quem quiser reclamar mais de 2500 hectares pode tirar o cavalo da chuva.
A constituição estadual proíbe a alienação de terras públicas acima dessa extensão. “Ao fim do processo, quem estiver reclamando mais de 2500 hectares terá que, no mínimo, desocupar a área excedente e devolvê-la ao estado”, diz Ortega, explicando que o programa de reordenamento fundiário do Pará mistura sanções legais com estímulos para incentivar a adesão dos posseiros. “Repressão só não adianta, até porque a capacidade do Estado nessa área é reduzida”. Ortega acha que a adesão dos pequenos posseiros tem potencial para ser grande, porque com a instabilidade fundiária são eles que mais sofrem com o processo de grilagem de terras.
Valores
Benatti, antigo estudioso dos conflitos fundiários no estado acredita que de 10% a 15% dos posseiros não resistirão ao programa, porque a regularização definitiva melhora as suas chances para obter financiamento e vender sua produção. “A maioria vai ficar olhando para esses, para ver no que a coisa vai dar e testando a capacidade do governo de reclamar suas terras de volta”, diz, lembrando que a titulação em si já é um incentivo poderoso, porque ela faz o valor da terra saltar.
Hoje, segundo ele, um hectare de terra com título de propriedade no Pará, dependendo da região, custa entre 400 reais e 1200 reais. “Sem o título, esse valor cai para entre 200 reais e 300 reais”, conta. De todo o modo, Benatti estima que do total de posseiros no estado, uns 10% deverão resistir pesado ao programa de regularização, ou porque querem manter controle sobre mais de 2500 hectares ou porque estão de tal modo integrados à economia ilegal que não conseguem enxergar os benefícios da regularização.
Ortega diz que a obrigatoriedade do cadastro ambiental envolverá necessidade de custos extras para os posseiros que queiram se regularizar. Mas não está preocupado com a possibilidade de que isso se transforme num obstáculo. “O programa prevê que a regularização ambiental ocorrerá sem ônus para os pequenos posseiros. Para o resto, haverá assistência técnica, financiamento e a possibilidade de exploração econômica das reservas reconstituídas”, explica.
A tarefa que o governo do Pará se propõe é hercúlea, e não apenas porque ele pretende encarar um problema que afeta o país há 500 anos. O volume de terras envolvidas no processo é imenso. O estado tem 124 milhões de hectares de extensão. Mais da metade disso é terra que já tem destinação como Unidades de Conservação estaduais e federais, zonas militares e Terras Indígenas. Do resto, onde está definitivamente o problema da estabilidade jurídica fundiária, há as Áreas de Proteção Ambiental (APAs), cerca de 10 milhões de hectares, e terras devolutas do estado, em torno de 20 milhões de hectares, e da União, quase 30 milhões de hectares.
Participação federal
“A área a ser trabalhada envolve 49% do território”, diz Benatti, explicando que o levantamento inicial, caso houvesse mais equipes do Iterpa, poderia ser acelerado. No momento, há dez equipes trabalhando no estado. “Se ampliarmos esse número para 25, em no máximo 4 anos teremos finalizado o processo de mapeamento inicial e a conciliação de nosso banco de dados”, continua. “Eu acredito que se o comprometimento do governo estadual continuar no longo prazo, em 15 anos já se terá um mínimo de segurança jurídica. Em trinta anos, o processo deve estar concluído”.
Isso, fique desde já entendido, se o governo federal fizer parte do processo, já que ele é o grande latifundiário de terras juridicamente instáveis no Pará. “Nós estamos provocando o governo federal, no bom sentido, para se juntar a nós nessa empreitada”, conta Ortega. Em três municípios onde os levantamentos iniciais já foram feitos, o Iterpa trabalho em parceria com o Incra. Mas ele sabe que esse tipo de parceria não basta. É preciso mudar a mentalidade do órgão.
“Há muito tempo a agenda do Incra é 100% dedicada à reforma agrária e portanto à distribuição de terras. Regularização fundiária ainda é coisa distante do seu horizonte”, diz Ortega. No ministério do Meio Ambiente (MMA), o programa paraense é visto com expectativa otimista e o desejo de adesão ao que ele propõe é grande. Mas entre a vontade e a realidade, ainda existe um abismo. Se ele será transposto, só o futuro dirá.
(Por Manoel Francisco Brito, OEco, 13/06/2008)