Georges Jean Wesner se levanta às 4 da madrugada todos os dias para ir a pé, numa marcha de duas horas, até uma instituição de caridade que fornece alimento, onde ele enche dois pequenos baldes com arroz e feijões, a única comida que consegue para suas seis crianças há semanas.
"Tenho 52 anos, muita energia e quero trabalhar," disse Wesner, com um toque de desespero na voz. "Mas não posso, porque não há trabalho. A comida está tão cara agora que nós nem conseguimos comprá-la." A crise alimentar que provocou protestos e uma onda de violência em todo o globo nos últimos meses devastou o Haiti, país mais pobre do hemisfério.
Multidões enfurecidas quebraram vidros de lojas e protestaram furiosamente pelas ruas em várias cidades do Haiti em abril, deixando seis pessoas mortas e provocando a renúncia do primeiro-ministro do país caribenho. Grupos de ajuda internacionais e governos estrangeiros apressaram-se em enviar novo auxílio de emergência, e o presidente haitiano René Preval rapidamente anunciou a concessão de subsídios para diminuir os preços de produtos alimentícios tais como arroz e feijão, cujo preço dobrou no ano passado.
Mas num país onde se calcula que cerca de 80% dos 9 milhões de moradores tinham dificuldades para sobreviver com US$ 2 por dia - antes que houvesse a alta dos preços - a situação passou de ruim para tenebrosa. "Antes desses aumentos de preço, os haitianos pobres gastavam 80% de sua renda em alimentos," disse Angel Aloma, diretor da Food for the Poor (Comida para os pobres), do Sul da Flórida, uma dos maiores grupos de ajuda que trabalham no Haiti. "Agora, eles foram de 80%, para impossível."
A Food for the Poor dá alimentos diariamente a cerca de 20 mil haitianos nas cozinhas de caridade de Porto Príncipe e de outros locais, também distribuindo comida para outros grupos de ajuda que alimentam mais milhares de pessoas. Mas os esforços são apenas uma gota num oceano, e há um número incontável de haitianos que nada recebem. Vendedores de rua têm um negócio arriscado vendendo biscoitos feitos de barro e óleo de cozinha, que por menos de um centavo cada, são o máximo que os haitianos conseguem comprar.
A situação levantou o espectro de um êxodo de massa de haitianos em fuga da ilha para o sul da Flórida em botes improvisados, como já aconteceu em ondas em décadas recentes. Mas a Guarda Costeira dos Estados Unidos anunciou depois dos motins de protesto pelo preço de alimentos de abril que havia aumentado suas patrulhas e muitos haitianos dizem que, embora fiquem tentados em sair, são dissuadidos pela rígida legislação dos EUA e pelos perigos inerentes à travessia em alto mar.
Embora sempre houvesse bandos de crianças mendigando nas ruas da capital do Haiti, agora os idosos e também jovens adultos costumam aproximar-se dos carros, com a mão estendida, a palma aberta e os olhos implorando. "A situação nunca esteve tão ruim," disse Lesley Dor, de 60 anos, que chegou cedo para enfrentar a multidão e depois esperou por cinco horas na cozinha da Food for the Poor em Porto Príncipe, para conseguir uma única refeição para seus sete filhos. "Isso é tudo o que temos. Não há mais ajuda."
Os funcionários dos grupos de ajuda dizem que a crise alimentar chega no momento em que o Haiti estava tentava uma recuperação após décadas de turbulência política, que recrudesceu mais recentemente em 2004, quando o presidente Jean-Bertrand Aristide fugiu antes de uma rebelião armada. As tropas das Nações Unidas intervieram e depois da eleição de René Preval como presidente, o país lentamente se moveu para a estabilidade.
As quadrilhas violentas de adeptos de Aristide foram amplamente subjugadas. Embora o seqüestro por recompensa continue sendo um problema, o trabalho foi reiniciado em obras de infra-estrutura como melhorias nos sistemas de água e esgoto. Agora a crise alimentar ameaça o progresso. "O principal problema é a instabilidade," disse Sophie Perez, diretora de programas para o Haiti da CARE de Atlanta, um grupo internacional de ajuda. "Sem estabilidade e segurança, não haverá investimentos por empresas estrangeiras e os grupos de ajuda vão achar que é difícil trabalhar no Haiti."
O drástico aumento nos preços de produtos alimentícios fez com que vários grupos de ajuda e o governo haitiano apelassem por maiores esforços para incentivar a produção própria de alimentos. Mas os desafios são severos. É vasta tanto a erosão como o esgotamento do solo, com grande parte da ilha tendo sua vegetação devastada por mercadores de carvão, que fornecem aos pobres a única fonte de combustível pela qual podem pagar.
Ainda assim, existem muitos pequenos produtores rurais no país. A histórica região de produção de grãos do Haiti é centrada no vale do Rio Artibonite, poucas horas ao norte da capital, onde o solo rico e o suprimento adequado de água serviram ao sustento de gerações de produtores rurais. Tais produtores costumavam colher a maior parte do arroz consumido pelos haitianos, mas no final da década de 1980, altos funcionários do governo abriram os portos do Haiti ao arroz e alimentos importados, em resposta às fases de escassez.
O resultado foi uma inundação de importações baratas que logo prejudicaram os próprios produtores do Haiti, que não tiveram condições de competir. A produção caiu e a dependência haitiana dos importados cresceu vigorosamente. Hoje em dia os produtores de arroz ainda cultivam seus terrenos no rico vale do rio, mas dizem que não conseguem ganhar o dinheiro do qual necessitam para alimentar suas famílias.
"Eu costumava trabalhar em 50 lotes de arroz, mas atualmente só consigo o suficiente para alimentar minha própria família," diz Dieu Maitre Guillaume, de 49 anos, que mora com sua vasta família em duas cabanas caindo aos pedaços perto da principal rodovia do vale. "O preço de uma saca de fertilizante era 250 gourdes (cerca de US$ 6,50) há alguns anos e agora é de 2.500 gourdes (cerca de US$ 65). Isso está nos matando."
Os produtores do vale também sofrem restrições por causa da confusão generalizada sobre a titularidade das terras, uma vez que os programas de reformas do antigo governo dividiram algumas grandes propriedades, disseminando o conflito que se soma à demorada confusão quanto às heranças. "Eu cultivo um lote de meio acre que herdei de minha mãe," disse Sylvana Louis, de 62 anos, cuja família colhe arroz no vale há várias gerações. "Do lado de meu pai havia 23 filhos. Nós nos revezamos cultivando as terras."
Como a maioria de outros produtores de Artibonite, Sylvana disse que não tem nenhum lucro por causa do elevado preço dos fertilizantes e dos custos com transporte, que também tiveram uma alta vertiginosa recentemente. Então, ela só colhe o suficiente para sua família e outras duas sacas de 200 libras que ela vende para conseguir dinheiro e comprar outros produtos alimentícios. "Eu dou comida para meus sete filhos e muitos e muitos netos," diz ela, parada em meio ao que se parece com um paraíso agrícola. "Sou uma produtora de arroz, mas no momento não tenho arroz para cozinhar em casa."
(Por Mike Williams, Cox Newspapers, tradução de Claudia Dall'Antonia, UOL, 16/06/2008)