Antigas disputas muitas vezes se acalmam por um tempo, mas basta um incidente para fazê-las se acender de novo. É o que ocorre com a discussão entre expoentes da agricultura orgânica e os que preferem a agricultura industrializada, de alta tecnologia. A última provocação é a crise de alimentos global, que fez os preços de produtos como milho e arroz aumentarem acentuadamente: os consumidores dos países desenvolvidos sentiram a pressão nos supermercados e milhões de pessoas no mundo em desenvolvimento enfrentam a fome.
O rápido aumento da demanda por alimentos é a principal causa da espiral de preços. Os biocombustíveis começaram a competir com a indústria alimentar por recursos como cana-de-açúcar e milho e, na China e na Ásia, está surgindo uma classe média emergente que quer carne de animais alimentados com cereais. O consenso é que o mundo deve reforçar a produção agrícola para suprir a demanda maior. O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, pediu na semana passada em uma reunião da organização em Roma um aumento de 50% na produção global de alimentos até 2030.
Aí termina o consenso. Esta semana a empresa de sementes americanas Monsanto, que se tornou a besta-fera dos ambientalistas europeus na década de 1990 ao promover as sementes geneticamente modificadas (GM), fez sugestões para superar a lacuna de produção. Ela quer que países como Brasil e México aumentem suas produções com métodos de alta intensidade.
A visão da Monsanto -e dos EUA- é que a agricultura no estilo americano deve se espalhar pela América Latina e a Ásia (mesmo que a África continue sendo um caso especial). Os agricultores desses lugares devem usar as sementes híbridas de alto rendimento compradas da Monsanto ou de concorrentes como a Syngenta, alimentá-las com fertilizantes e água, protegê-las com produtos químicos e extrair mais de suas terras.
A Monsanto prefere que os agricultores comprem sementes geneticamente modificadas mais caras, que resistem a insetos e exigem menos substâncias químicas. Mas até a abordagem européia -a proibição das sementes GM com adoção de outras práticas agrícolas de alta intensidade- já ajudaria, ela afirma.
"Nós somos uma parte da solução. As sementes são o ponto de partida", diz o escocês Hugh Grant, executivo-chefe da Monsanto, que está tentando reabilitar sua imagem global. Grant prometeu desenvolver sementes que duplicarão as produções de milho, soja e algodão até 2030 e exigem 30% menos água e outros insumos para crescer.
A Monsanto conquistou alguns amigos entre organizações não-governamentais, mas ainda tem muitos críticos. A Greenpeace e a Friends of the Earth dizem que "o velho paradigma da agricultura industrial, com alto uso de energia e tóxicos é um conceito do passado". Elas vêem mais esperança na agricultura de pequenos agricultores usando sementes tradicionais e menos água e substâncias químicas.
Embora pareça tentador -e adequado para a África ou lugares que não têm infra-estrutura para a agricultura high-tech-, não é a solução para a crise alimentar global. Para atingir a meta de Ki-moon, a sustentabilidade ecológica por si só é insuficiente. As produções globais devem continuar aumentando no século 21 com a mesma rapidez que apresentaram no século 20 nos EUA e na Europa.
A agricultura intensiva ou usando sementes híbridas comerciais, que devem ser replantadas todo ano, têm um longo histórico de aumentos de produção. A produção de algodão por hectare nos EUA aumentou cinco vezes desde a década de 1930, quando essas técnicas começaram. Os plantadores de milho americanos obtêm uma produção três vezes maior por hectare que os do México, Brasil e Índia.
"Não há dúvida de que essas tecnologias funcionam. Tecnicamente, são triunfos", diz José Falck-Zepeda, um bolsista pesquisador do Instituto Internacional de Pesquisa de Políticas Alimentares em Washington. Ele afirma que novas formas de sementes GM, incluindo algumas que toleram a seca ou água salobra, serão necessárias nos países em desenvolvimento afetados pela mudança climática.
Isso não significa que todos tenham de usar sementes GM; na verdade, os resultados das sementes GM nos EUA na última década foram desiguais. Os agricultores conseguiram reduzir a quantidade de trabalho e gerenciamento necessários para os cultivos, porque eles exigem menos aspersão, mas as sementes GM não aumentaram notadamente as produções.
Além disso, a agricultura industrial levou a abusos tanto nos países desenvolvidos como nos em desenvolvimento. Os aqüíferos do centro-oeste dos EUA e da Califórnia estão sendo esgotados pela agricultura, que consome 70% da água do país. A terra agrícola nos países em desenvolvimento foi prejudicada pelo uso excessivo de fertilizantes e pesticidas e a irrigação inadequada.
A tecnologia por si só não basta. Os agricultores precisam investir mais em sementes e fertilizantes, o que muitas vezes exige acesso ao crédito. Se eles conseguem cultivar plantações maiores, precisam evitar riscos financeiros em mercados de futuros e vender para mercados de exportação. Muitos agricultores nos países em desenvolvimento preferem não produzir excedentes por causa dessas complicações.
Mas Grant está certo ao dizer que a Monsanto -ou a tradição que ela representa- faz parte da solução. Conduzida corretamente, a pesquisa biológica poderia ajudar a aumentar as produções enquanto reduziria a sede por produtos químicos e água. Isso poderia até ajudar a evitar a degradação da terra e o desperdício ambiental no mundo em desenvolvimento.
A história sugere que a tecnologia ajuda se for aplicada corretamente e não se esperar que ela faça todo o trabalho. Isto apresenta às ONGs e aos governos uma opção difícil: continuam resistindo à agricultura industrializada por causa de temores sobre danos ambientais ou incentivam os agricultores a tentar extrair os benefícios enquanto minimizam os efeitos colaterais?
A resposta é óbvia. Não é preciso parar de se preocupar e aprender a amar a Monsanto, mas as produções precisam aumentar para que as populações não passem fome. É necessário que as antigas disputas sejam esquecidas e os dois lados cooperem. As apostas em jogo são altas demais para não se fazer isso.
(Por John Gapper, Financial Times, tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves, UOL, 12/06/2008)