As “verdades e mentiras” que se confundem na polêmica sobre os agrocombustíveis ignoram ou invertem certos efeitos, como o fato de que empregar soja para fazer biodiesel não reduz a produção de alimentos, pelo contrário, aumenta, segundo especialistas. Quem procura resolver a equação, destacando que nem sempre há oposição entre produção de alimentos e agroenergia, é Segundo Urquiaga, pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
O óleo, que representa entre 18% e 20% da soja, foi sempre um “subproduto” que agora ganha maior valor por sua conversão em biodiesel, afirma Urquiaga. O derivado principal dessa leguminosa é a proteína, que constitui cerca de 40% e que estão concentrados na casca, destinada, sobretudo, à alimentação do gado. Assim, quando mais óleo se destinar ao combustível mais aumentará, e em proporção maior, a produção de proteína que, no final da cadeia, servirá para a alimentação humana, explica o pesquisador à IPS.
Além disso, por sua capacidade de fixar o nitrogênio do ar, a soja é um cultivo ideal para recuperar pastagens degradadas, em um sistema integrado de semeadura e pecuária, acrescenta o especialista. A inoculação de bactérias para potenciar essa capacidade de fixação do fertilizante é uma tecnologia desenvolvida pelo centro de Agrobiologia da Embrapa, onde trabalha Urquiaga. Essa faculdade fixadora, característica das leguminosas, já foi incorporada a algumas variedades de cana-de-açúcar e há possibilidade de estendê-la a alimentos cotidianos da população brasileira, como arroz, milho e mandioca, e de ampliá-la aos feijões, o que indica o “caminho longo e prometedor” que a ciência deve percorrer, reconhece o pesquisador.
O investimento em ciência oferece “os melhores retornos” e pode encontrar novas áreas agrícolas, como ocorreu com o cerrado, a extensa savana que ocupa todo o centro do Brasil e que era considerado “improdutivo” até a década de 70, recorda Urquiaga. Estes são aspectos esquecidos nas distorcida polêmica sobre a agroenergia, atropelada pela crise mundial dos alimentos, lamenta o cientista. A discussão tende a incriminar de maneira simplista os biocombustíveis, refinados de cultivos que também servem para a alimentação humana, pois lhes “roubam” terras cultiváveis, sem admitir a possibilidade de sinergias, acrescenta.
A resposta brasileira, tanto do governo quanto dos empresários do agronegócio, é que a existência de pelo menos 50 milhões de hectares de pastagens degradadas, cuja produtividade poderia ser recuperada, permite expandir os biocombustíveis sem afetar os alimentos nem as selvas amazônicas. Trata-se de uma área equivalente a quase toda a que hoje é destinada à produção de grãos neste enorme país, o que permitiria, em teoria, duplicá-la. O problema é que esse reaproveitamento das velhas pastagens não se materializa até agora de maneira significativa, e a pecuária segue sua marcha sobre a Amazônia, provocando desmatamento, que é a maior fonte de gases causadores do efeito estufa no Brasil. Os ambientalistas se preocupam com o efeito dominó.
Os produtores de etanol de cana-de-açúcar, com maior poder econômico, adquirem as melhores terras deslocando os cultivos de soja e outros grãos que, por sua vez, empurram a pecuária, menos rentável e que necessita de grandes áreas, para terras amazônicas mais baratas ou inclusive gratuitas, em virtude da posse fraudulenta de terrenos públicos. Mais grave é o “efeito exponencial”, porque com um hectare vendido ao plantador de soja o pecuarista poderá comprar cinco hectares ou mais de floresta para desmatar, disse à IPS Sérgio Guimarães, coordenador do Instituto Centro de Vida, que atua no Mato Grosso, o Estado que mais produz soja no Brasil e o que mais desmata a Amazônia.
Os biocombustíveis foram propostos para mitigar o aquecimento global, pois sua queima emite menos gases causadores do efeito estufa do que os derivados dos hidrocarbonos. Mas, perderam a batalha pela opinião pública, responsabilizados por parte da crise alimentar e por danos ambientais e sociais, como o desmatamento amazônico e o trabalho em condições de escravidão no Brasil. O governo parece ter conseguido – pelo menos perante boa parte dos governantes e autoridades presentes na Cúpula Alimentar Mundial realizada na semana passada em Roma – absolver seu etanol de cana, distinguindo-o do similar produzido os Estados Unidos a partir do milho e à custa de altos subsídios.
A cana apresenta uma eficiência energética muitas vezes superior ao milho, e o açúcar é hoje uma exceção de baixos preços no mercado mundial, além do que o Brasil exporta crescentes excedentes de grãos e outros alimentos, apesar da grande expansão de seu etanol nos últimos anos. Mas, cerca de 80% do biodiesel brasileiro são feitos a partir da soja, plantada pelos grandes produtores, embora o governo conceda estímulos à sua produção a partir de outras oleaginosas, como o rícino, pinhão, girassol e algumas palmeiras, que quase não são consumidos como alimentos e que contemplam o cultivo de pequenos agricultores.
A soja e a cana preocupam por seu papel na segurança alimentar, pois são plantações em terras que poderiam produzir alimentos populares, como arroz e feijão, mas, principalmente por reter insumos e crédito, enquanto a recuperação das pastagens degradadas carece de estímulos, avalia Adriano Campolina, diretor da organização não-governamental internacional ActionAid nas Américas. De todas as formas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, deveria estar promovendo, em lugar do etanol, “os programas brasileiros de maior êxito, como o Fome Zero, o Bolsa Família e o crédito à agricultura familiar, que são um caminho efetivo para reduzir a fome”, disse Campolina à IPS.
(Por Mario Osava, IPS, Envolverde, 11/06/2008)