As medidas anunciadas em Brasília para conter o desmatamento da Amazônia provocaram uma série de críticas e protestos ao revelarem suposto desprezo pelos demais biomas brasileiros, em particular o Cerrado. O governo resolveu restringir o acesso ao crédito rural para fazendeiros da Amazônia que desmataram além do permitido. Mas não impôs impedimento para aqueles que estão no vizinho Cerrado, segundo maior bioma em extensão no País, com exatos 2.036.448 km² (24% do território nacional), de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O Cerrado, que contribuiu com três das principais bacias hidrográficas brasileiras (São Francisco, Prata e Tocantins), guarda uma das maiores biodiversidades do planeta, com alto grau de endemismo. Mas, a despeito de sua riqueza, vem sendo radicalmente alterado, pelo avanço da atividade agropecuária, e perde, a cada ano, cerca de 20 mil km² de florestas. Incêndios e queimadas fazem parte do calendário anual da região há milhares de anos, mas com intensidade e freqüência crescentes.
Agora, sob a assinatura do ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, a zona de transição entre Cerrado e Amazônia acaba de voltar ao debate. É de Minc a portaria publicada na última semana reconhecendo que, mesmo nos municípios da Amazônia Legal há propriedades do bioma Cerrado. Para estas, não se fará as exigências ambientais na hora de conceder o financiamento. O argumento é que há municípios que são cortados pela linha que divide os dois biomas. Nestes casos, as propriedades que estão no lado de fora não teriam por que respeitar a lei. E como o governo saberá quem está de que lado? Esta tarefa foi delegada, pela mesma portaria, aos órgãos ambientais dos estados, que deverão emitir declaração “atestando que o imóvel rural não se encontra inserido no Bioma Amazônia”.
A base para esta averiguação será, de acordo com o ministro Carlos Minc, o mapeamento dos biomas feito pelo IBGE. Mas aqui aparece o primeiro problema: a escala do mapa (concluído há menos de um mês), de um para cinco milhões, não permite definir quem está dentro e quem está fora da Amazônia. Nesta escala, cada centímetro no papel representa 50 quilômetros na dimensão real. Só o risco que divide os dois biomas é uma faixa de 2,5 quilômetros de largura. A advertência é de Marcelo Marquesini, engenheiro florestal da Campanha Amazônia do Greenpeace.
“O mapa que temos hoje não é para isso. A escala não oferece nível de precisão compatível para este trabalho”, confirma o engenheiro florestal José Collares, do IBGE. Para permitir esta definição, de acordo com o técnico, seria necessário um levantamento muito mais preciso, com escala mínima de um para 250 mil. Nesta escala, um centímetro de desenho representa 2.500 metros. Mas, pelo menos por enquanto, não há mapas com esta precisão.
Em campo
Então, será necessário ir a campo para atestar em que bioma afinal está a propriedade. E aqui aparece outro problema. O Ministério do Meio Ambiente não estabeleceu nenhum critério nem deu condições para os órgãos ambientais dos estados fazerem o trabalho. O MMA sequer poderia estabelecer regras para isso, já que se trata de diferentes esferas de administração, de acordo com o consultor do Ministério Sérgio Travassos, do Departamento de Políticas de Combate ao Desmatamento. “Tecnicamente, o correto seria ir a campo em casos de dúvida”, diz Travassos. Mas não se sabe como os órgãos estaduais vão resolver o problema. No caso do Tocantins e do Maranhão, a linha da dúvida seria de menos de mil quilômetros. Mas no Mato Grosso haveria trabalho para a Secretaria de Meio Ambiente ao longo de uma linha de cerca de três mil quilômetros. Isto quer dizer que só debaixo do risco do mapa, no Mato Grosso, há algo como 750 mil hectares – área maior que o Distrito Federal - que podem ser Amazônia ou não, para fins de financiamento. E isto é só uma parte, sem contar toda a área que não estaria em discussão, por estar claramente do lado de fora da linha, ainda que não se saiba exatamente onde ela passa. Estabelecer isto, separando o pequi do cupuaçu, será o trabalho dos técnicos dos órgãos estaduais que, a julgar pelo histórico, poucas condições terão de dominar esta bola. Seja por falta de estrutura, pessoal, competência ou vontade.
É uma exigência sem planejamento para uma região onde a presença do estado é mais rara que nota de cem. E onde mesmo a presença às vezes não diz muito. “Em muitos lugares da Amazônia, não há que se falar em ausência, mas em seqüestro do Estado”, adverte o professor Donald Sawyer, do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília, referindo-se à apropriação, pelos poderosos locais, dos serviços e equipamentos públicos, que funcionam sob suas ordens e interesses. “A descentralização é muito arriscada na área ambiental. Os poderes econômicos locais são muito fortes. Só o controle central da União e o controle social impedirão abusos”, diz o professor. Marquesini reforça as preocupações: “o controle ambiental pelos estados é super frágil. O governo federal passou essa tarefa sem nenhum acompanhamento. Queria apenas se livrar do problema”.
O deputado Sarney Filho (PV-MA), coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista, é outro que vê problemas na coordenação entre União, estados e municípios. Segundo o parlamentar, falta ainda a aprovação de lei regulamentando esta cooperação para a política ambiental. “Há projeto em trâmite, de minha autoria, o PLP 12/2003, exatamente com esta finalidade”, diz o deputado. Mas não há previsão de data para sua votação, embora tenha sido anunciado como uma das prioridades do Plano de Aceleração de Crescimento (PAC). Projetos da área ambiental sempre encontram fortes resistências no Congresso Nacional. Mesmo iniciativas relativamente simples amarelecem nas gavetas enquanto se sucedem governos e legislaturas. É o caso, por exemplo, da chamada PEC – Proposta de Emenda Parlamentar do Cerrado (115/95), que inclui Cerrado, Pampa e Caatinga na relação de biomas considerados Patrimônio Nacional. É simplesmente uma declaração de princípios, que não traria nenhuma alteração prática. Mas espera entrar na pauta de votações da Câmara há 13 anos. O Motivo, segundo Sarney Filho, é a pressão de ruralistas. “Eles acham que isso vai engessar o Cerrado. Agora, estou conversando com cada um deles, mas é muito difícil”.
A sensação que fica, de acordo com Marquesini, é uma espécie de esquizofrenia. “De um lado multa, crimes, prisão. De outro, se pode financiar quem destroi. No Cerrado, vale tudo”.
(Por Warner Bento Filho*, OEco, 11/06/2008)