Com a recente eleição do bispo Fernando Lugo para a presidência do Paraguai, imediatamente após o pleito do país vizinho começou-se a especular sobre o que aconteceria com as bases do tratado da Usina Hidrelétrica Binacional de Itaipu. Com as declarações do novo mandatário guarani no sentido de defender o interesse nacional nas tarifas cobradas pela exploração da usina, reabriu-se o debate em torno das posições que deveriam ser tomadas pelo Brasil.
Procurado pelo Correio da Cidadania, Roberto D’Araújo, engenheiro e ex-membro do conselho administrativo de Furnas, defendeu a manutenção das bases atuais do acordo, pois acredita ser também vantajoso aos paraguaios. "Eu entendo que o tratado deve ser respeitado. Itaipu é uma das poucas usinas do sistema brasileiro e da América do Sul no qual, uma vez pago seu custo, sua energia passa a ser praticamente gratuita. Itaipu é uma das poucas usinas que permaneceram sob o antigo regime de serviço pelo custo", afirma.
O início das negociações entre os dois governos para a construção e financiamento da usina se deu em meados dos anos 60, enquanto a construção da usina foi encerrada somente em 1972. Bancada pelo Brasil, cada país tem direito a 50% da energia produzida. A parte que cabe ao Paraguai, e que não é usada, é vendida a preço de custo para os brasileiros. O acordo é válido até 2023, quando se calcula que a dívida dos guaranis com o Brasil estará paga.
Porém, tal tratado é cada vez mais contestado nas terras de nossos vizinhos, que alegam receberem valores injustos sobre a exploração de Itaipu. Questionado sobre as desvantagens paraguaias, D’Araújo volta a defender as bases originais do acordo. "Quando terminar o pagamento de Itaipu, a parcela de energia que caberá ao Paraguai terá um custo baixíssimo. É a única usina na qual, terminado o prazo imaginado para que esteja paga, a tarifa ao consumidor pode chegar perto de zero. E tal questão não está sendo discutida", argumenta.
Entretanto, esse tipo de opinião não encontra eco no lado oposto da fronteira. Para Ricardo Canese, engenheiro especialista em hidroeletricidade, o tratado é totalmente nocivo ao povo paraguaio e no fundo não beneficia o brasileiro. "Deve-se retomar a legalidade original do Tratado de Itaipu, do ‘preço justo’. Temos que recordar que não é o povo brasileiro que verdadeiramente se beneficia dos irrisórios e extremamente ridículos preços que o Brasil paga ao Paraguai por conceder com exclusividade a totalidade da sua energia. São empresas transnacionais radicadas no Brasil as principais beneficiárias pela energia hidroelétrica paraguaia de baixo custo que é revendida a altas tarifas ao consumidor brasileiro".
Para Canese, também dirigente do Movimento Tekojoja, Itaipu foi transformada em um feudo, cuja manutenção é defendida apenas por executivos que trabalham para a usina recebendo altíssimos salários. "Seus dirigentes, nomeados pelos governos do Brasil e do Paraguai, não prestam contas aos representantes de seus povos e nem à Justiça. Seus salários gerariam inveja aos famosos senhores feudais da Idade Média ou até mesmo aos executivos mais bem pagos do primeiro mundo. Esse é o caso do diretor jurídico brasileiro de Itaipu, João Bonifácio Cabral Filho, que saiu em defesa dos privilégios do feudo de Itaipu, de não mudar nada. Seu ingresso financeiro é equivalente a 300 mil dólares por ano, o que explica claramente o porquê de sua postura a favor do imobilismo na Itaipu binacional".
D’Araújo, por sua vez, explica que as tarifas cobradas pelo Paraguai são as mesmas cobradas pelo Brasil. "A tarifa é única, assim como o custo. Então, se mudar a tarifa a ser paga ao Paraguai, tem de mudar tudo", avisa. "E tem outra vantagem: de 2023 em diante, toda energia produzida lá é gratuita. Entre aspas, digo, pois isso quer dizer que ela paga seu próprio custo de operação, que em geral fica em torno de R$ 10,00 por mW/hora. No Rio, paga-se por volta de 400 reais por mW/hora", completa.
"O Paraguai é um país hidrelétrico. É o único país da região com genuínos excedentes. Com um PIB da ordem de US$ 7,5 bilhões, possui uma riqueza hidrelétrica que vale 50% disso", explica Canese, em artigo que consta no livro ‘O direito do Paraguai à soberania’.
De autoria de Gustavo Codas, a obra, aliás, recorre a fatores históricos para sustentar a legitimidade do desejo paraguaio de rever o acordo. "O país sofre uma pesada herança da qual o Brasil é, em grande parte, responsável. O Paraguai foi castigado, primeiro, pelas conseqüências duradouras da guerra de extermínio que Brasil, Argentina e Uruguai lhe fizeram nos anos de 1864-1870 e, na segunda metade do século 20, pelo fortalecimento de um modelo capitalista mafioso vinculado à burguesia brasileira em todo tipo de negócios ilícitos – narcotráfico, lavagem de dinheiro, contrabando etc.", escreve Codas.
"Consequentemente, não há nada mais importante do que recuperar a soberania sobre essa valiosa riqueza natural", completa Canese. Por outro lado, D’Araújo volta a apresentar motivos para a não revisão do tratado. "Acho muito difícil uma usina construída com recursos brasileiros, financiada pelo Brasil e com esse esquema de pagamento ter seu acordo revisto. Não há motivo", afirma ele, que não acredita ser essa uma postura imperialista por parte dos brasileiros.
De toda forma, no momento parece pouco palpável uma verdadeira revisão nos termos do tratado. Além do apoio de diversos setores do governo e de mídia para que não se toque no contrato firmado, o próprio presidente Lula vem sinalizando que realmente não pretende fazê-lo, ainda que tal decisão contrarie frontalmente as intenções de Lugo. Em uma época em que cada vez mais governos do continente se unem em torno das mesmas diretrizes e projetos políticos, o assunto deve ser tratado com delicadeza suficiente para que nenhum dos lados se sinta aviltado e injustiçado e para que a visão de um continente unido em suas lutas não se perca no caminho dos longos debates que prometem vir.
(Por Gabriel Brito,
Correio da Cidadania, 06/06/2008)
Gabriel Brito é jornalista.