O STF determinou, em abril último, a não-remoção dos agricultores do território indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, homologado em 2005 pelo presidente da República. Acatou-se a alegação inicial do governo estadual, no sentido de que ocorreria perda da autonomia do Estado-membro (43 por cento são terras indígenas) e prejuízos econômicos (os rizicultores responderiam por 6 por cento da economia). Isto colocou a “questão indígena” na agenda nacional, com inúmeros questionamentos relativos à extensão e finalidade das terras, à soberania nacional, aos direitos dos povos indígenas.
O alegado “risco à segurança nacional” já fora sustentado quando da homologação do território ianomâmi, em 1992, com área seis vezes maior e também localizada em zona fronteiriça. Ao contrário do senso comum, tanto as terras indígenas quanto as terras de fronteira pertencem à União, não podendo ser vendidas, e, nesta condição, é facilitada a possibilidade de ação das Forças Armadas para defesa do território e da soberania nacionais e da Polícia Federal para garantir a segurança e a ordem pública e proteger os direitos constitucionais indígenas, tal como expresso no decreto presidencial de homologação, onde estão situadas as cinco etnias: ingarikó, makuxi, patamona, taurepang e wapichana.
O que se verifica são profundos desconhecimentos em relação aos indígenas:
a) os grupos indígenas se denominam nações porque essa é a nomenclatura aceita nos tratados internacionais, não implicando tais denominações qualquer pretensão separatista; b) o conceito de terras abrange territórios como a totalidade do habitat das regiões que os povos interessados ocupam ou utilizam, tendo em vista a importância que esta relação tem para a cultura e os valores espirituais dos indígenas, em suma, para a própria cosmologia indígena; c) a definição de territórios indígenas longe está de qualquer demanda por criação de novos países, o que pode se verificar em todas as lutas indígenas do continente, não esquecendo que a demanda separatista hoje, na Bolívia, está nas mãos de uma elite branca contra a maioria indígena. Parece haver um implícito racismo anti-índio, separando brasileiros e índios, como se fossem estrangeiros, não dominassem o idioma nacional, supostamente seres inferiores, necessitassem ser civilizados ou mesmo ser alvo de manipulação, em evidente contrariedade ao que a Constituição de 1988 estabeleceu, ao romper com o regime assimilacionista de incapacidade e tutela dos indígenas, garantindo-lhes plena capacidade para pleitear seus interesses em juízo e conservarem sua identidade, direitos coletivos e cultura, se assim entenderem. Por trás de um discurso que se diz de igualdade – uma Roraima para “índios” e “não-índios” – esconde-se um profundo ressentimento em relação aos índios, considerando-os destinatários de “direitos especiais” ou mesmo “privilégios” (pela extensão de terras).
Da mesma forma, o slogan “terras em demasia” esquece que: a) Raposa Serra do Sol representa 7,7 por cento do Estado de Roraima e que as 32 outras reservas indígenas somadas não ultrapassam 46 por cento do território; b) nos 54 por cento restantes cabem no Rio de Janeiro, Espírito Santo e Alagoas; c) na Região Norte, existem proprietários individuais com mais de um milhão de hectares, sem qualquer reclamação dos mesmos setores contrários à demarcação; d) Roraima, localizada na fronteira com a Guiana, foi reconhecida como pertencente ao Brasil no início do século justamente pela presença dos índios; e) mais da metade da população rural do Estado é indígena, e as áreas não-demarcadas estão no eixo Boa Vista-Manaus, permitindo a plena sustentabilidade do Estado; f) na reserva indígena, existem várias escolas e professores, bem como criação de bovinos, suínos e eqüinos, não tendo os governantes o cuidado de verificar em quanto as reservas indígenas contribuem para a economia.
Por sua vez, a Constituição assegura o “direito originário” às terras tradicionalmente ocupadas, devendo a União demarcá-las. Isto não torna os índios “proprietários”, mas sim possuidores, podendo usufruir das reservas naturais do território, ao passo que os fazendeiros querem, sim, o reconhecimento de propriedade, com o que as terras passariam da União para uso individual, sem qualquer garantia de proteção de fronteiras e interesse nacional. Ora, os arrozeiros não somente se instalaram, mas também ampliaram as lavouras quando o processo de demarcação já estava em curso e têm sido responsáveis por violenta degradação ambiental, que resultou em recente multa de mais de 30 milhões aos proprietários, poluindo o leito dos rios, e, com isto, prejudicando a própria sustentabilidade da reserva e, futuramente, o abastecimento de água potável capital do Estado. Do grupo originário, restaram poucos, que, todavia, têm sido responsáveis pela implosão de pontes, destruição de escolas e igrejas, bem como resistência a qualquer forma de desocupação, cujo prazo final venceu no início do ano, estimulando o conflito entre etnias- alguns índios são empregados dos fazendeiros e temem pela subsistência- ao mesmo tempo que vivem de benefícios fiscais vigentes até 2018.
A tese de “retalhação” da reserva em “ilhas” ou “bolsões de desenvolvimento” tem, até o momento, a trágica experiência dos índios guarani de Mato Grosso do Sul, com sucessivas notícias de suicídio, alcoolismo e mortes de crianças, ao mesmo tempo que permitiria a expansão dos mesmos fazendeiros na região e iria contra a preservação da territorialidade daqueles povos, esquecendo-se que a demarcação é, também, delimitação, ou seja, o crescimento da população indígena daquele espaço não implicaria, no futuro, um aumento da reserva indígena.
O STF está diante do desafio de, quando se comemoram vinte anos da Constituição, explicitar se assegura os direitos dos indígenas, vilipendiados há mais de quinhentos anos, reconhecendo a diversidade étnico-cultural do país, ou se sucumbe aos argumentos de poucos fazendeiros e da elite locais. Com isto, reabre a discussão sobre as outras terras indígenas (demarcadas ou não) e acirra a discriminação dos indígenas, perpetuando formas racistas e coloniais pretensamente defensoras dos direitos humanos. Isso vai acontecer justamente um ano após a Declaração dos Povos Indígenas da ONU e 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos?
(Por César Augusto Baldi, Caros Amigos, 10/06/2008)
* César Augusto Baldi é mestre em Direito (ULBRA/RS), doutorando Universidad Pablo Olavide (Espanha), chefe de gabinete no TRF-4ª Região e organizador do livro “Direitos humanos na sociedade cosmopolita” ( Ed. Renovar, 2004).