O governo anuncia que vai caçar o gado criado em áreas de desmatamento ilegal na Amazônia. É apenas um dos desafios para conciliar a pecuária com a floresta José Antonio Lima, Juliana Arini e Mariana Sanches
A cada segundo do mês de abril, 21 árvores foram derrubadas na Amazônia. No total, a região perdeu 1.123 quilômetros quadrados de floresta, uma área equivalente à da cidade do Rio de Janeiro. O número, divulgado na semana passada pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), pode ser ainda maior. O cálculo não leva em conta os possíveis desmatamentos do Pará. Nuvens encobriram seu território, impedindo os satélites do instituto de captar as imagens do Estado, campeão nacional de desmatamento em 2007. O resultado, embora alarmante, não foi surpresa para o governo. Desde dezembro os indicadores apontavam para o crescimento das áreas devastadas, confirmando a insuficiência das medidas tomadas pelo Ministério do Meio Ambiente, ainda sob a gestão de Marina Silva. O sucessor, Carlos Minc, herdou os índices e a obrigação de achar uma solução para o problema.
Minc já encontrou um bode (ou melhor, um boi) expiatório. Diante da constatação de que 78% do desmatamento na Amazônia até hoje foi motivado pela pecuária, ele lançou a cruzada contra os "bois piratas". O apelido foi dado pelo ministro aos rebanhos criados em 36 municípios na Amazônia que concentram mais derrubadas ilegais. Neles, as autorizações para desmatamento foram embargadas por um decreto presidencial de dezembro de 2007. A política de fiscalização e repressão à pecuária ilegal gestada por Minc pretende funcionar da seguinte maneira. Primeiro: o governo localiza, com a ajuda de radares ou mesmo de sensores térmicos do Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam), as áreas desmatadas ilegalmente e ocupadas pelos bois. Depois, técnicos marcam esses bois a ferro quente, multam o proprietário e confiscam o gado. O dono teria a obrigação de manter os animais, mas o direito de vendê-los passaria a ser da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Ela os leiloaria para frigoríficos, que se responsabilizariam por retirar os animais da área desmatada. O dinheiro da venda iria para os cofres do governo. "A idéia é fazer com que esses bois acabem virando recurso para o Fome Zero", afirmou Minc.
A estratégia de caçar bois no pasto pode soar folclórica - a última vez que isso aconteceu foi no governo Sarney, para evitar desabastecimento -, mas o governo acertou no alvo. Abrir pastagens é a razão por trás de 78% do desmatamento da Amazônia. Em boa parte das vezes, isso ocorre em florestas públicas invadidas. O plano de coibir os bois piratas pode funcionar. Mas antes o ministro terá de descobrir como fiscalizar os frigoríficos e evitar que as autuações não sejam simplesmente ignoradas, como os R$ 4 bilhões em multas por crimes ambientais aplicadas apenas entre 2003 e 2007 e nunca pagas. Se conseguir pôr a idéia em prática, oferecerá um incentivo para os pecuaristas investirem menos em derrubadas de novas áreas e mais em aumento de produtividade das pastagens existentes. Aí o boi poderá deixar de ser uma ameaça à floresta.
A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) estima que o Brasil tenha cerca de 70% de suas pastagens operando abaixo da média produtiva. Nessas terras, seria possível criar ao menos três vezes mais gado que hoje. Isso sem precisar recorrer a técnicas de confinamento ou rações de última geração. O aumento da produção sem aumentar a quantidade de pastos na Amazônia depende de tecnologias simples, como sementes de gramíneas mais adaptadas ao solo e ao clima amazônicos, uso de adubos e o rodízio de pastagens.
"Somente na Amazônia há 50 milhões de hectares de pastos pouco produtivos", afirma o engenheiro agrônomo Luiz Carlos Balbino, supervisor da gerência de planejamento e negócio da Embrapa Transferência de Tecnologia. "Se restaurássemos essa área, o Brasil teria plenas condições de atender ao aumento da demanda e não precisaria derrubar uma árvore sequer para dar lugar a boi até 2030." Essa é a estratégia do fazendeiro Pérsio Lima, de 52 anos, dono de duas fazendas em Paragominas, leste do Pará. Ele conseguiu uma proporção de 2,5 bois por hectare em suas fazendas, um índice quatro vezes melhor que a média de seus vizinhos na Amazônia.
Mas, se é possível aumentar a produção sem derrubar mais floresta, por que tão poucos pecuaristas fazem essa opção na Amazônia? A primeira resposta, e a mais simples, é aritmética. Os gastos para restaurar e aumentar a produtividade giram em torno de R$ 2 mil por hectare. Invadir uma nova área do mesmo tamanho, derrubar a floresta e transformar o terreno em pasto custa em média R$ 800. "A facilidade de conseguir novas áreas, que muitas vezes saem de graça, é um estímulo para os fazendeiros derrubarem a floresta", diz Paulo Barreto, pesquisador do Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).
Para vigiar os 5 milhões de quilômetros quadrados da Amazônia Legal, o Ibama tem apenas 577 fiscaisO Estado e a União são donos de 21% das terras da região. Esse pedaço da Amazônia não tem nenhum tipo de documentação. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão responsável por registrar essas áreas, nunca conseguiu regulamentá-las. Os governos estaduais não foram mais hábeis que o Incra. O resultado foi uma ocupação ilegal, legitimada pelo usucapião (a Constituição estabelece que, após dez anos, o ocupante da terra recebe a posse legal da área). Esse é o caso de quase 10% das terras na Amazônia. Seus proprietários nunca pagaram nada por elas. "Eram as terras de ninguém. O primeiro que chegou tomou a área", diz Barreto. "Se as terras na Amazônia continuarem sendo distribuídas de graça, não há como evitar mais desmatamento."
Coibir a ocupação ilegal, e a conseqüente derrubada da madeira e instalação de bois, é uma tarefa árdua também pela escassa fiscalização das terras. Em toda a extensão da Amazônia Legal, com mais de 5 milhões de quilômetros quadrados, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama) mantém 577 fiscais residentes - seus outros 940 fiscais no restante do país participam apenas de ações especiais na região. "A falta de fiscalização que impera na região possibilita que o posseiro consiga vender a madeira da terra que ocupou", diz Barreto. "Com o dinheiro da venda das árvores, os pecuaristas compram sementes para o pasto e as cabeças de gado. No fim, o dinheiro da madeira financia o tal boi pirata."
"Não há dúvidas de que o modo ilegal de criar gado na Amazônia é muito rentável", diz o engenheiro Luiz Carlos Balbino, da Embrapa. "Mas é hora de começar a se perguntar até quando a Europa ou os Estados Unidos estarão dispostos a comprar carnes que não seguem as regras de sustentabilidade." Os pecuaristas sabem que maus resultados nos índices de desmatamento podem causar embargos econômicos a suas produções. Isso já aconteceu em 2006 com a soja. Os grandes compradores de grãos, como a rede McDonald's e Wal-Mart, declararam que não comprariam mais áreas recém-desmatadas na Amazônia. O embargo culminou na proibição do plantio de soja em áreas de floresta.
Os pecuaristas temem que o mesmo aconteça com a carne, o segundo produto mais importante de exportação para o país. De acordo com a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), os fazendeiros que ainda realizam desmatamento o fazem por falta de opção. "A derrubada de mata precisa, sim, ser coibida", afirma Assuero Doca Veronez, presidente da Comissão Nacional de Meio Ambiente da CNA. "Mas é necessário tornar viável o custo de uma intensificação de produção. Sem empréstimos não é possível e ultimamente o governo tem colocado todos os pecuaristas, os que desmatam e os que se mantêm na legalidade, na vala comum da falta de crédito."
O principal motivo de discórdia entre ruralistas e o Ministério do Meio Ambiente é o decreto assinado por Lula em dezembro de 2007. A medida foi uma das ações mais duras do governo federal com os fazendeiros da Amazônia e gerou uma onda de protestos. Um dos líderes do movimento, o governador de Mato Grosso, Blairo Maggi, chegou a dizer que seria impossível produzir alimentos sem derrubar a floresta. Nos 36 municípios da Amazônia campeões de devastação, além de proibir o desmatamento, o decreto retirou a concessão de financiamentos para os proprietários de terras. Em complemento ao decreto, uma resolução do Conselho Monetário Nacional (CMN) definiu as novas regras para os empréstimos. A norma entrará em vigor em julho. Ela prevê que apenas os proprietários rurais que tiverem os documentos de posse da área e não desmatarem ilegalmente poderão pegar dinheiro emprestado nos bancos. "Os produtores podem reclamar, mas não vamos mais liberar financiamento sem esses critérios ambientais", diz Minc.
Eles já estão reclamando. Inclusive no Senado. Na quarta-feira, a Casa deve decidir se derruba ou não o decreto presidencial que proíbe novos desmatamentos nas 36 áreas críticas da Amazônia. "O ministro tem de entender que para salvar a Amazônia não basta apelar para o dó que temos das árvores e dos passarinhos", diz a senadora Kátia Abreu (DEM-TO), autora da proposta. "É preciso que a floresta em pé tenha viabilidade econômica."
Para tentar minimizar o confronto com o setor produtivo e estimular a intensificação do uso da terra, Minc lançou uma nova linha de crédito. Ele vai liberar R$ 8 milhões para os produtores rurais que buscarem a legalização da posse de suas terras e que queiram reflorestar áreas desmatadas (leia a entrevista ao lado). "Queremos estimular os pecuaristas a sair da ilegalidade", diz.
O que estimula a devastação da Amazônia5. 850 km2
FORAM DESMATADOS só nos últimos nove meses,17% a mais que em todo o ano anterior
1. 123 km2 foram derrubados EM ABRIL, O EQUIVALENTE ao município do Rio de Janeiro
78% de tudo o que foi desmatado na Amazônia até hoje virou pastagem
INVASÃO
Alguns pecuaristas invadem terras e as desmatam para ampliar o rebanho
21%
da Amazônia é terra pública sem regularização, vulnerável À OCUPAÇÃO ILEGAL
8,5%
das terras já foram invadidas por posseiros, sem nenhuma punição
DESMATAMENTO
Abrir novas áreas é mais barato que aumentar a produtividade do pasto
R$ 2 mil
é o custo médio para aumentar a produtividade de 1 hectare de pastagem
R$ 800
é o custo médio para derrubar uma floresta e abrir pastagens
Sem terno nem meias palavrasO estilo e os coletes do ministro que foi apelidado de "Carlos Mídia" pelos desafetos
Ás na fabricação de comentários polêmicos, o novo titular do Ministério do Meio Ambiente, Carlos Minc, mostrou, em menos de duas semanas de gabinete, a que veio. Tanto pelas frases de efeito como pelo estilo das roupas em meio à sobriedade dos ministérios, Minc avisou que seria performático. Está sendo. Não se tem notícia de um ministro convocar, em tão pouco tempo, uma cadeia nacional. Mas era o Dia Mundial do Meio Ambiente. Minc deu seu recado em menos de três minutos. Alertou a população sobre a importância da preservação e encerrou sua aparição com "saudações ecológicas".
Ele vestia, como sempre, colete e gravata no lugar de terno. Sua vestimenta alternativa é parte de um estilo que o acompanha há mais de 30 anos, diz sua mulher, Margarida Galamba, portuguesa de nascimento que ainda guarda um leve sotaque lusitano. Em três ocasiões formais já como ministro, desfilou três modelos. Sua coleção, de quase 50, incha com presentes e compras feitas num brechó em Visconde de Mauá, reduto de gente alternativa na serra fluminense.
No dia da posse, Minc ganhou um desses acessórios do estilista Carlos Tufvesson, um dos preferidos das celebridades do eixo Rio-São Paulo. Com estampas que reproduzem o Cristo Redentor e a Mata Atlântica, o colete é ainda mais chamativo que o estilo usual do ministro. "As estampas dessa coleção são uma homenagem ao Rio", diz Tufvesson. "Fiz questão de criar. Ele é um cara muito bacana." Tufvesson é um militante da causa gay, que tem o apoio do ministro.
Minc, apelidado de "Carlos Mídia" por seus desafetos, tem sido notícia diária desde que virou ministro. Antes da posse, comprou briga com o governador de Mato Grosso, Blairo Maggi, um dos maiores plantadores de soja do país e importante liderança política da base de sustentação do governo. "Se deixar, ele planta soja até nos Andes", afirmou Minc, ainda em Paris, logo que aceitou o posto. Maggi soltou uma nota negando o óbvio, que tenha terras lá. O bate-boca promete.
Com seus cabelos compridos, Minc não pode ser acusado de ferir o protocolo. É raro vê-lo de terno, mas está sempre de gravata quando a ocasião requer, ainda que, às vezes, elas fujam ao padrão. Ele prefere as customizadas, com estampas impressionistas ou mensagens oportunas. "Brasília é o reino dos estranhos. Tem político de chinelo, cabeludo, barba enorme. Ele é quase um conservador e está no lugar certo. Já pensou se fosse ministro da Fazenda?", diz o publicitário carioca Lula Vieira. Isabel Clemente
GUARDA-ROUPAMinc e parte de sua coleção de coletes. O estilo chamativo é sua marca há 30 anos Carlos Minc
"Vamos leiloar esse gado"
ÉPOCA - Boa tarde, ministro.
Carlos Minc - Sono io ("Sou eu", em italiano).
ÉPOCA - Como é a questão do boi pirata? O senhor anunciou que vai começar a caçar os bois na Amazônia que estão em áreas de desmatamento ilegal. Como isso vai acontecer?
Minc - Na Amazônia tem 60 milhões de cabeças de gado...
ÉPOCA - São 76 milhões...
Minc - Sei lá, um monte de milhões de cabeças de gado. Mas, quando eu falo de boi pirata, estou me referindo às 331 propriedades que foram embargadas. Algumas pessoas até estão questionando por que prender o boi, e não o dono do boi? O que eu estou propondo é que todas as novas operações vão ser acompanhadas por peritos. Isso é para evitar que a impunidade ambiental continue. Em relação a nossos boizinhos, bem, eu também não posso ir lá e prender o boi. O que vai acontecer é que o fiscal vai lá, autua, depois multa, embarga o boi. E, se o crime ambiental continua, o boi vai apreendido.
ÉPOCA - Existe fiscal para tudo isso?
Minc - Calma, eu não vou apreender todos os bois da Amazônia. O problema é o discurso do contra. Vamos focar nas 331 propriedades que já estão embargadas. Não deve ter mais que milhares de bois nessas fazendas. Sei lá quantos. Algumas devem ter 30 mil cabeças.
ÉPOCA - Se essa for a média das propriedades, vão ser quase 3 milhões de bois.
Minc - Não importa. O que eu quero dizer é que esse é um trabalho que quero fazer com a Conab (Companhia Nacional de Abastecimento).Vamos leiloar esse gado. Isso vai acabar virando recurso para o Fome Zero.
ÉPOCA - Como resolver a bagunça fundiária da Amazônia?
Minc - Vamos lançar uma linha de crédito de R$ 8 milhões para os proprietários que querem legalizar suas áreas. Esse recurso também poderá ser usado para recuperação das terras degradadas. Também lançamos outra medida, que é dar um preço mínimo para os produtos florestais. Isso nunca aconteceu. O produtor de babaçu, cupuaçu e castanha nunca teve a mesma garantia que aquele que planta arroz. Todo mundo acha muito romântico e bonitinho o extrativismo. A gente fica aqui no centro-sul falando: "Ah, o extrativismo". Mas essas pessoas sempre ficam num miserê de dar dó. Isso tudo entrou em uma medida provisória assinada pelo presidente. Foram três coisinhas sensacionais que a gente meteu lá.
ÉPOCA - Qual foi a terceira?
Minc - A terceira não tem a ver com esse nosso assunto. Ela permite que, para tomar crédito, o fazendeiro também possa dar como garantia as áreas florestadas. Antes só podia usar uma terra nua. A parte florestada era considerada improdutiva. Isso valoriza a floresta em pé. Agora eu já falei demais. Um grande abraço.
(Revista Época,
FGV, 09/06/2008)