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impactos mudança climática
2008-06-03

Campos exuberantes plantados com alfaces e tomateiros ladeiam as estradas. Novos e verdejantes condomínios pontilhados de casas de férias de tons pastéis atraem compradores do Reino Unido e da Alemanha. Campos de golfe - dezenas deles, todos recentemente construídos - conduzem ao litoral. Pelo menos esta parte do sul da Espanha, que foi intensivamente trabalhada, está prosperando.

Só existe um problema neste quadro da prosperidade: esta província, Murcia, está ficando sem água. Devido ao aquecimento global e aos projetos de desenvolvimento mal feitos, trechos do sudeste da Espanha estão se transformando rapidamente em deserto.

Murcia, tradicionalmente uma região agrícola pobre, tem passado nos últimos anos por uma onda de construção de resorts, ainda que muitos agricultores tenham adotado lavouras que exigem mais água, encorajados pelos planos de irrigação, que se tornaram cada vez mais insustentáveis. Esta combinação exerceu novas pressões sobre a terra e a sua reserva de água em declínio. Neste ano, os agricultores estão brigando com os construtores de condomínios e resorts pelos direitos à água. Eles travam uma batalha para decidir qual dos dois terá água para tocar os seus projetos. E, em um sinal de desespero crescente, começaram a comprar e vender água, como se fosse ouro, em um próspero mercado negro no qual a maior parte do produto é proveniente de poços ilegais.
 
 
O sul da Espanha é há muito tempo flagelado por secas cíclicas, mas, segundo os cientistas, a crise atual provavelmente reflete uma mudança climática mais permanente provocada pelo aquecimento global. E isso é o prenúncio de um novo tipo de conflito.

As batalhas de outrora eram travadas pela conquista de terras. As batalhas atuais giram em torno do petróleo. Mas, segundo os cientistas, as guerras do futuro - um futuro que será mais quente e seco em grande parte do mundo, devido à mudança climática - terão como foco a água. "A água será a questão ambiental deste ano - o problema é urgente e imediato", diz Barbara Helferrich, porta-voz da Diretoria de Meio Ambiente da União Européia. "Se já temos carência de água na primavera, sabemos que o verão será muito ruim".

Dezenas de líderes mundiais irão se reunir na sede da Organização de Agricultura e Alimentação (FAO) da Organização das Nações Unidas (ONU), em Roma, a partir desta terça-feira (03/06), para discutir a crise global de alimentos causada em parte pela carência de água na África, na Austrália e aqui, no sul da Espanha.

A mudança climática significa que os desertos cedo ou tarde expulsarão
135 milhões de pessoas das suas terras, segundo estimativas das Nações Unidas. A maioria desses indivíduos mora no Terceiro Mundo. Mas o sul da Europa está enfrentando o problema agora, e, segundo os cientistas, o clima da região está ficando tão seco que ela fica a cada dia mais semelhante às regiões áridas da África.

Para Murcia, a crise da água já chegou. E a sua chegada foi acelerada por construtores e fazendeiros que investiram em projetos que exigem muita água, e que são impróprios para um clima que se torna mais seco e
quente: lavouras como a de alface e tomate que necessitam de muita irrigação, resorts que prometem uma piscina no quintal, hectares e mais hectares de campos de golfe com grama recém-plantada, que suga milhões de litros de água por dia.

"Sofro muita pressão para liberar água para os fazendeiros e também para os construtores", diz Antonio Perez Garcia, gerente de fornecimento de água de Fortuna, enquanto toma um café com fazendeiros em um bar na praça poeirenta da cidade. Ele lamenta o fato de só ser capaz de fornecer a cada proprietário 30% da quantidade de água autorizada pelo governo.

"Não sei bem o que faremos neste verão", acrescenta Garcia, observando que o nível do aqüífero local está diminuindo tão rapidamente que em breve as bombas não serão mais capazes de alcançá-lo. "Sou bastante pressionado por fazendeiros e construtores. Eles podem reclamar o quanto quiserem, mas, se a água acabar, acabou".

Ruben Vives, um fazendeiro que confia na generosidade de Perez Garcia, diz que não foi capaz de arcar com os preços da água no mercado negro.  "Neste ano o meu ganha-pão está ameaçado", diz Vives, que há quase duas décadas cultiva plantas que exigem pouca água, como os limoeiros. As centenas de milhares de poços - a maioria ilegal -, que no passado proporcionaram um alívio temporário para a sede das culturas, reduziram as reservas de água subterrâneas até um ponto sem retorno. A água do norte da Espanha, que costumava ser transferida para cá, também foi reduzida a quase nada, já que as províncias do norte, mais úmidas, também estão vendo a água desaparecer.

A luta pela água gerou escândalos. Autoridades locais estão na prisão por aceitarem propinas para autorizar construções em locais que não tinham uma reserva adequada de água. Chema Gil, um jornalista que revelou um desses esquemas, vem sendo alvo de ameaças de morte, porta um spray de gás pimenta e é protegido noite e dia pela Guardia Civil, uma força policial que tem funções militares e civis.

"O modelo de Murcia é completamente insustentável", afirma Gil. "Nós consumimos duas vezes e meia mais água do que o sistema consegue recuperar. Sendo assim de onde vem essa água? Ela é importada de outra região? É retirada do aqüífero que está secando? Com o aquecimento global estamos entrando em um beco sem saída. Toda a água que estamos usando para irrigar os pés de alface e os campos de golfe será necessária apenas para beber".

Enfrentando uma crise de âmbito nacional, a Espanha tornou-se uma espécie de laboratório involuntário. O país está patrocinando uma conferência sobre questões relativas à água neste verão, e anunciou um plano de ação neste ano para combater a desertificação. O plano inclui a adoção de métodos de irrigação mais eficientes, bem como um programa extensivo de usinas de dessalinização para gerar a água doce que a natureza não fornece mais.

O Ministério do Meio Ambiente da Espanha estima que um terço da região corre o risco de se transformar em um deserto, devido à combinação de mudança climática e mau uso da terra. Mesmo assim, as autoridades federais ficam nitidamente incomodadas quando são indagadas a respeito da "africanização" do clima espanhol - um termo atualmente comum entre os cientistas. "Estamos em uma situação muita melhor do que a África, mas, no âmbito da União Européia, a nossa situação é séria", afirma Antonio Serrano Rodríguez, secretário-geral de terra e biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente da Espanha.

Mesmo assim, Serrano e outros reconhecem os contornos amplos do problema. "Haverá áreas que não poderão mais ser utilizadas para agricultura. Áreas nas quais atualmente a produção é pequena, e que se tornarão inúteis", diz ele. "Certas partes do país estão de fato muito perto do limite". Embora o sul da Espanha sempre tenha sido infernizado por secas cíclicas, a temperatura da superfície no país subiu em média 2,7ºC desde 1880, enquanto o aumento global da temperatura neste período foi de 1,4ºC.

Segundo projeções da ONU, a pluviosidade aqui diminuirá 20% até 2020, e 40% até 2070. As mudanças na fazenda da família Almarcha, em Albanilla, nas três últimas décadas, são uma prova de que o clima está mais quente e seco. Até duas décadas atrás, cultivava-se trigo e cevada, na fazenda, culturas que só exigiam a irrigação natural na forma de chuva. Quando a pluviosidade caiu, Carlo Almarcha, 51, passou a cultivar amêndoas.

Há cerca de dez anos, ele abandonou as amêndoas e passou a cultivar organicamente pessegueiros e pereiras. "Estas plantas precisam de menos água", explica Almarcha. Mas recentemente ele precisou mudar novamente de cultura, passando a plantar oliveiras e figueiras. "Elas resistem à seca e são menos sensíveis ao clima", diz Almarcha.

Almarcha participa de um sistema governamental de fornecimento de água, no qual os fazendeiros pagam o triplo do valor normal - 33 centavos em vez de 12 centavos por metro cúbico - a fim de obter água extra. O preço no mercado negro é ainda maior. Mesmo assim, as perspectivas para Almarcha são sombrias.

"Antigamente sabíamos que na primavera teríamos chuva", diz ele, com as suas botas de trabalho firmadas sobre o solo seco de um olival, onde anteriormente havia um campo de trigo. "Agora não sabemos nunca quando ou se a chuva virá. Além disso, não há mais inverno, e as plantas precisam do frio para descansar. Assim, o crescimento é menor. E às vezes não há crescimento algum. Até as plantas parecem estar confusas".

Embora Almarcha tenha passado gradualmente a cultivar lavouras que exigem menos água, o programa governamental anterior de transferência de água fez com que os fazendeiros rumassem para a direção oposta. Eles passaram a produzir uma grande variedade de frutas e verduras que exigem muita água, e que nunca haviam sido cultivados no sul do país. Murcia é tradicionalmente conhecida pelos seus figos e tâmaras.

"Não é possível plantar morangos naturalmente em Huelva - é quente demais", explica Raquel Monton, especialista em clima do Greenpeace em Madri, referindo-se à vizinha capital espanhola do morango. "Em Saragoza, que é um deserto, cultiva-se milho, a lavoura que mais exige água. É uma loucura. A única coisa mais insana do que isto é a construção de cassinos e campos de golfe". Algo que, é claro, Murcia possui.

Em 2001, uma nova lei para a regulamentação do uso da terra em Murcia fez com que ficasse bem mais fácil para os moradores vender terra para a construção de resorts. Embora há muito tempo o sul da Espanha conte com sistemas elaborados para administrar a sua água relativamente escassa, atualmente todos, ao que parece, descobriram formas de burlar as regras.

A grama nos campos de golfe e nas casas de férias é às vezes classificada como "lavoura", possibilitando que os proprietários possam reivindicar uma quantidade de água que não seria fornecida para a manutenção de campos verdes nas áreas de lazer. Investidores estrangeiros plantam um punhado de árvores e chamam as suas casas de férias de "fazendas", para que possam ter direito à água para irrigação, diz Perez Garcia.

"Assim que um proprietário obtém o fornecimento de água, ele pede a mudança do tipo de utilização do terreno", explica Garcia. "Assim, ele passa a ter a propriedade e a água. A idéia é que a água fosse para irrigação, mas na prática as pessoas fazem o que bem entendem. Ninguém sabe se essa água vai abastecer uma piscina". Embora diga que "o seu coração está do lado dos fazendeiros", Garcia não conta com funcionários suficientes para monitorar a forma como as pessoas utilizam a água.

"Com tanto dinheiro em jogo, as autoridades descartam leis e políticas que poderiam encorajar o desenvolvimento sustentável", afirma Gil, o jornalista. No princípio, ele foi condenado pela comunidade quando escreveu artigos criticando os projetos de desenvolvimento. Mas, recentemente, quando as pessoas descobriram que a água estava acabando, o comportamento delas começou a mudar.

Mas, mesmo assim, o povo e os políticos tendem a ver na água um recurso ilimitado. "Os políticos pensam em blocos de quatro anos, de forma que vale tudo, contanto que os problemas não ocorram durante os seus mandatos", afirma Monton, do Greenpeace. "As pessoas pensam sobre o problema, mas elas não refletem de fato sobre o que acontecerá no futuro. Elas não se preocupam, até o dia em que abrem a torneira e percebem que a água acabou".


(Por Elisabeth Rosenthal, The New York Times, tradução UOL, 03/06/2008)

 


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