Era uma vez dois portugueses, que deixaram 1.100 títulos de terras baseados em cartas de sesmarias – a fórmula que a coroa portuguesa distribuía terras na colônia. O tempo passou. Na década de 1970, mais especificamente, em 1975, um brasileiro chamado Carlos Medeiros, dizendo-se herdeiro, iniciou um inventário, solicitando a validação dos títulos. O processo foi conduzido ilegalmente, porém, os documentos receberam aprovação da justiça. Os títulos foram registrados em vários cartórios.
A partir daí Carlos Medeiros começou a vender terras. Em grande quantidade. Na transferência dos documentos sempre foi representado por procuradores. Em 1981, os títulos, ou os papéis que representavam a autenticidade, desapareceram do cartório. Três anos depois, em 1984, Medeiros solicitou a recuperação dos documentos, em conjunto com Marinho de Figueiredo, um dos compradores das terras. O pedido foi aceito e o juiz ordenou que todas as terras compradas por Marinho fossem registradas em cartório.
Depois dessa decisão, o Instituto de Terras do Pará (Iterpa) e alguns promotores iniciaram uma investigação sobre o personagem. O Instituto não havia sido consultado pelo juiz. Cartórios foram comunicados sobre a suspeita de fraude.
Em 2002, uma investigação do Congresso Nacional identificou a fraude, na verdade um fantasma, que tinha na Amazônia, 35 milhões de hectares.
A área da reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, tem 1,4 milhão de hectares – e 5 grandes proprietários arrozeiros, 53 pequenos, 250 trabalhadores, e 17 mil índios. A propriedade do fantasma latifundiário é igual a soma das lavouras de soja e milho, no Brasil inteiro. Em 1999, o INCRA identificou fraudes em 39 cartórios nos cinco estados da Amazônia. Os processos contra oficiais de cartórios se arrastam desde então.
Ordem não cumprida
Em 2001, o Iterpa, Ministério Público Federal e o INCRA solicitaram à justiça do Pará o cancelamento de todos os registros de terra sob o nome de Carlos Medeiros. A justiça determinou a suspensão provisória. E o presidente do Tribunal de Justiça do Pará baixou uma ordem, para juizes e responsáveis de cartórios, sobre títulos envolvendo o nome do fantasma.
Deveriam consultá-lo. Logicamente que a ordem não foi acatada e os cartórios continuaram produzindo documentos com as propriedades do fantasma. Em 2005, o Ministério Público Federal entrou com oito ações civis públicas exigindo o cancelamento dos registros das terras, de Carlos Medeiros, além do cancelamento dos planos de manejo florestal, licenciados pelo IBAMA, nas mesmas terras e a reparação dos danos ambientais.
Até o final de 2006, nenhuma decisão foi comunicada. A história é contada por um grupo de pesquisadores do IMAZON – Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia -, publicado em março de 2008,assinado por quatro especialistas: Paulo Barreto (engenheiro florestal), Andreia Pinto (bióloga), Brenda Brito (advogada) e Sanae Hayashi (engenheira floresta). O título do trabalho é: “Quem é dono da Amazônia?”, uma análise do recadastramento de imóveis rurais.
No final, eles comentam: “ em resumo, o governo federal ainda não sabe quem é o dono de grande parte da Amazônia legal”. No caso do fantasma latifundiário o governo levou 18 anos para iniciar processos contra a fraude ( de 1975 a 1993) e 14 anos depois o caso ainda não foi resolvido. O trabalho analisa os últimos recadastramentos, principalmente, o de 2004, envolvendo propriedades acima de dois mil hectares. Entretanto, a análise, é mais profunda, inicia desde 1850, quando começaram as disputas sobre quem tem direito a expedir títulos de terras no país. O Brasil ainda não possui um cadastro de imóveis rurais.
Boicote ao recadastramento
A Amazônia é o retrato maior desta esculhambação. É muito fácil querer vender uma imagem de proteção, de manutenção da biodiversidades, em ter o controle sobre os donos das terras. Pior ainda: é não conseguir desvencilhar fraudes deste tamanho. Segundo o IMAZON, a situação atual das terras na Amazônia é a seguinte:
- 4% são privadas com títulos validados pelo INCRA – 20 milhões de hectares.
- 21% são supostamente públicas, fora das áreas protegidas, sem validação de cadastro, um área de 104 milhões de hectares.
- 32% são supostamente privadas, sem validação de cadastro (são posseiros, grandes proprietários, baseados em documentos estaduais, que o INCRA ainda não analisou. É uma área de 158 milhões de hectares.
- 43% são áreas protegidas, reservas indígenas e unidades de conservação, sendo que muitas delas continuam sendo ocupadas por posseiros e grileiros.
- O IBAMA em 2006 identificou, pelo menos 10 milhões de hectares, nesta situação. Trata-se de uma extensão de 209 milhões de hectares. Total:491 milhões de hectares.
Em dezembro do ano passado, depois da divulgação dos últimos números sobre o desmatamento em 2007, o governo federal baixou o decreto 6.321, que estabeleceu um conjunto de medidas com objetivo de prevenir, monitorar e controlar o desmatamento ilegal em 36 municípios – 19 no Mato Grosso, 12 no Pará, 4 em Rondônia e 1 no Amazonas. O prazo do recadastramento das propriedades acima de 400 hectares encerrou em abril. O universo envolveria 80 mil propriedades e 100 milhões de hectares, mas destas, somente 15,4 mil imóveis precisavam se recadastrar.
Os proprietários deveriam apresentar a planta, um memorial descritivo (com as coordenadas geográficas) e as declarações para cadastro de imóveis rurais. O INCRA organizou 40 escritórios em seis superintendências regionais. Apenas 20% dos proprietários protocolaram a documentação. Ou seja, 3.080 imóveis. Em 2004, aconteceu a mesma coisa. A maioria não se apresentou. Ou porque já desmatou, ou porque não tem documento, ou não tem interesse. Ou, principalmente, acha que mais tarde haverá uma anistia e todos serão legalizados.
Intervenção branca
No Mato Grosso, a entidade que representa os proprietários, a Federação da Agricultura (FAMATO), fez campanha na região contra o processo. Depois disso, o governo federal, editou uma medida provisória dispensando a licitação na venda de posses até 15 módulos fiscais, ocupados antes 2004 – corresponde a quase 1.500 hectares. Uma lei criada em 2005, liberava esta medida em propriedades de até 500 hectares – na Amazônia, destinadas a agricultura familiar. O mesmo trabalho também informa os preços das terras de floresta na Amazônia, valores identificados no final de 2006: no Amapá um hectare valia R$14,00, no Mato Grosso R$700,00. Existe uma discussão para legalizar as áreas invadidas por posseiros e grileiros, estabelecendo um valor de referência de R$300,00 o hectare.
Como disse recentemente o presidente da Comissão de Meio Ambiente, da Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA), órgão máximo do agronegócio, “a floresta é um ativo de baixíssimo valor econômico. E há um atividade que dá retorno e renda. A Amazônia tem uma vocação extraordinária para a pecuária”.
No últimos dias, o governador Blairo Maggi(MT) tem se queixado de perseguição, chegou a dizer que os coitados dos produtores do estado estão com medo, das operações da Polícia Federal. “Há um intervenção branca, definiu.” Um protesto tardio, pois desde o início do governo não ligou a mínima para regras ambientais, tanto que criou a delegacia de crimes ambientais, apenas depois da realização da Operação Curupira, da Polícia Federal, em 2006. O que mais se pregava no estado era a separação do Mato Grosso da Amazônia Legal.
O motivo da gritaria é muito simples: o decreto presidencial proíbe os bancos oficiais de liberar crédito a quem desmata ilegalmente. Aí o negócio complicou. Até então, mesmo fantasmas como Carlos Medeiros conseguiam liberação no IBAMA do manejo florestal – sinônimo técnico de desmatamento - E dinheiro nos bancos oficiais, leia-se Banco do Brasil. Resumindo a burocracia: o desmatamento ilegal na Amazônia sempre foi realizado com a conivência e crédito dos governos estadual e federal, mesmo quando se trata de propriedades cujos donos não existem. Ou, como se diz popularmente, são totalmente, falcatruas.
(Por Najar Tubino*, Eco Agência, 30/05/2008)
*Najar Tubino é jornalista.