Há 37 anos na Funai, sertanista reclama da estrutura do órgão e da falta de recursos
O Sertanista José Carlos Meirelles, 60, alerta que índios isolados, como os que vivem no Acre e vieram ao conhecimento público em fotos divulgadas na semana passada, correm sério risco. "Eles podem não desaparecer fisicamente, mas vão desaparecer culturalmente se a situação continuar como está." Para Meirelles, são os próprios índios isolados que não querem contato, seja com homens brancos ou índios aculturados.
O sertanista, que trabalha na Funai (Fundação Nacional do Índio) desde 1971, reclama da falta de estrutura do órgão e dos parcos recursos disponíveis: "Plantamos tudo que comemos, porque, se for comprar, o dinheiro não dá. O que gastamos por ano é uma merreca, além de que os índios não são eleitores."
Queixa-se ainda do fato de as grandes decisões sobre a Amazônia serem chanceladas, segundo ele, "no Sul maravilha, sem consultar o povo daqui [da floresta]".
Paulistano, Meirelles largou a engenharia para trabalhar na Funai. Membro do Departamento de Índios Isolados do órgão desde a sua criação, em 1988, e coordenador da Frente de Proteção Etno-Ambiental do rio Envira, no Acre, o sertanista falou à Folha na última sexta-feira à noite, por telefone, da cidade de Feijó (AC). Contou rindo como levou uma flechada no rosto, mas mudou a voz e se esquivou de comentar sobre um dos traumas de sua vida, quando, para sobreviver, precisou matar um índio.
FOLHA - É possível haver grupos indígenas autônomos que nunca tiveram contato com a sociedade?
JOSÉ CARLOS MEIRELLES - Não existe nenhum grupo indígena que não tenha tido contato. Esses índios sabem da existência dos homens brancos, eles já viram e usam instrumentos de ferro encontrados em acampamentos de madeireiros. Eles não querem é contato, mas claro que sabem da nossa existência.
FOLHA - Os índios isolados correm risco de desaparecer?
MEIRELLES - Eles correm sério risco. Podem não desaparecer fisicamente, mas vão desaparecer culturalmente se a situação continuar como está. Sabemos de alguns índios isolados que sofrem pressão, mas não temos como acolher todas as demandas. Temos pouca gente e pouco dinheiro. Não são só os índios [que estão ameaçados], mas todo o povo da Amazônia, inclusive os brancos. Tudo é decidido no Sul maravilha, em Brasília, sem consultar o povo daqui. O pacote chega pronto, acham que somos um bando de idiotas e fazem um monte de trapalhadas. Tem que se desenvolver a Amazônia, mas com racionalidade. E os índios isolados são os mais fracos, porque dependem literalmente do ambiente onde vivem.
FOLHA - Como é a relação desses índios isolados com os aculturados?
MEIRELLES - Eles também não têm contato, alguns grupos são até inimigos. Quando se encontram, eles se matam.
FOLHA - Há conflitos entre eles?
MEIRELLES - Sim, aqui no Acre houve uma guerrinha entre índios isolados e não isolados. Esses povos eram inimigos tradicionais. O problema é que os índios não isolados repetem o discurso dos brancos: índio bravo não é gente, é bicho. Os aculturados, na maioria das vezes, têm mais preconceito em relação aos isolados do que nós.
FOLHA - A Funai quer um controle epidemiológico no entorno das áreas onde vivem os povos autônomos, já que eles têm baixa imunidade. Como está a saúde deles?
MEIRELLES - Por enquanto vai bem. Monitoramos o território, mas eles andam muito. Se pegam um facão dos brancos com o vírus da gripe, e esse vírus vai para a aldeia, faz um arraso. Vai morrer muita gente. A idéia é boa, uma das maneiras de se resguardar esses povos é proteger a saúde do entorno. Estará sendo evitada a contaminação pelos índios de uma doença que tem características que eles nem conhecem, como gripe e sarampo, coisas que eles ainda não têm.
FOLHA - Há uma situação de violência contra os índios no lado peruano, principalmente por parte de madeireiros. Como está no Acre?
MEIRELLES - Aqui os madeireiros ainda não chegaram. Ainda. Do outro lado a coisa pega. Quase 90% do mogno exportado para o mundo sai da região, há milhares de madeireiras, legais e ilegais. Estão matando índio adoidado. Quem mora do lado de lá corre para cá, porque se ficar vai morrer. Ou corre ou morre, essa é a política indigenista deles.
FOLHA - Mas aqui também há muitos problemas.
MEIRELLES - Há problema por todos os lados. No norte de Mato Grosso há confusão por causa da madeira, da soja. Em Roraima é a questão da Raposa/ Serra do Sol. Aliás, a temporada de caça à raposa está aberta. Tivemos a idéia de colocar esses índios na mídia [com a divulgação das fotos] porque há muita gente que acha que eles não existem. E também porque, pelo que está acontecendo na Amazônia, é só uma questão de tempo para essa desgraceira chegar aqui. Só falta chegarem os madeireiros de Rondônia e acabarem de desgraçar com o resto. Se não houver essa campanha na mídia, a Amazônia que eu conheci vai acabar.
FOLHA - Os sobrevôos para monitorar os índios não são freqüentes, como o sr. disse. Falta estrutura para trabalhar?
MEIRELLES - Gostaria que [os sobrevôos] ocorressem duas vezes por ano, mas falta dinheiro, é muito caro. O Estado brasileiro repassa pouco dinheiro para a Funai, e recebemos ainda menos para os índios isolados. Trabalhamos com poucos recursos, plantamos tudo que comemos, porque, se for comprar, o dinheiro não dá.
O que gastamos por ano é uma merreca, além de que os índios não são eleitores. Precisamos de uma estrutura melhor, mais pessoas trabalhando. Moramos na base, passamos o ano lá, de vez em quando vamos para a cidade [de Feijó]. Só tem um rádio velho, não tem internet, não tem telefone. Acontece alguma coisa, morremos por lá mesmo. A Funai não treinou gente nova nesses anos todos, esses caras que mexem com índios isolados estão todos como eu, uma sucata velha, com 60 anos. Estou treinando meus filhos porque eles nasceram no mato, já estão aqui.
Depois ainda vão dizer que sou um déspota. A Funai não é como o Ministério de Minas e Energia, que faz barragens, descobre mina e dá lucro.
FOLHA - Como surgiu o interesse do sr. pelos índios?
MEIRELLES - Sempre gostei de mato, de natureza. Fazia engenharia mecânica quando levei acidentalmente um tiro de um irmão em uma caçada. No hospital descobri que não era nada daquilo que eu queria para a minha vida. Escapei da engenharia, do tiro e fiz o concurso para a Funai, em 1970, no tempo da ditadura brava. Saí da selva daí e vim aprender na daqui com os índios.
FOLHA - Pensa em sair da floresta?
MEIRELLES - Ainda tenho lenha para queimar, o problema é que na minha profissão dependemos muito do físico. Já estou com 60 anos, o físico já está começando a reclamar, dores nas costas... Vai chegar uma hora em que terei que parar. Daqui a mais três anos talvez esteja na hora, quem sabe mudar de lugar e escrever minhas memórias, sei lá.
FOLHA - O sr. foi flechado certa vez. O que aconteceu?
MEIRELLES - Quando fui flechado, não existia a base de proteção [aos índios]. As pessoas subiam o rio para pescar, retirar madeira, só que mataram alguns índios. Eles acham que nós, brancos, somos como eles, poucos. Logo após a morte desses índios, saí de casa em um domingo, para pescar, e levei uma flechada na cara. Devem ter pensando que eu matei algum índio irmão. Os índios isolados nos vêem como invasor. Quando alguém faz algo contra eles, viramos saco de pancada, pois moramos mais perto.
FOLHA - Houve um episódio em que o sr. matou um índio...
MEIRELLES - Essa é uma história de que não gosto de falar. Foi um acidente de percurso.
FOLHA - O que aconteceu, os índios cercaram o sr. e sua família?
MEIRELLES - Foram outros índios [não os isolados] e em outra situação. Ainda não trabalhava com índios isolados. Quase fui morto, se não tivesse feito isso não estaria agora conversando com você. Foi uma questão de auto-defesa, mas é uma história antiga e que ainda me incomoda muito.
(Por Lucas Ferraz, Folha de São Paulo, 02/06/2008)