A quem se estarreceu com as imagens de índios caiapós ferindo com facão um engenheiro da Eletrobrás, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro oferece um eixo de compreensão: "Não é uma ação inexplicável, não se deve ao temperamento primitivo e selvagem dos índios. Se deve ao modo como eles reagem diante de situações, que nós, talvez acostumados à obediência e à humildade, talvez não reajamos assim".
"Talvez o que redima os índios, e o que os tem mantido vivos até hoje, seja o fato de não estarem excessivamente acostumados à humildade e à obediência e que ainda conseguem reagir. Não sei se isso é um mau sinal assim", afirma. Viveiros de Castro analisa a crise amazônica como símbolo de um impasse. "Há um certo modelo de desenvolvimento que se tornou dominante. Um modelo baseado na exportação maciça de produtos do agronegócio, pecuária e agora os biocombustíveis. São modos de exploração ambientalmente estúpidos e sem futuro do ponto de vista da sustentabilidade."
Nascido no Dia do Índio (19 de abril), Viveiros de Castro, 57, tornou-se a maior autoridade em etnologia indígena do país. Doutor em antropologia social pela UFRJ, tem pós-doutorado pela Universidade de Paris e é professor no Museu Nacional desde 1978. É autor de livros como "Bruxarias, Oráculos e Magia entre os Azande" (2004), "A Inconstância da Alma Selvagem" (2002), "Amazônia" (1993) e terá lançado em 16 de junho a coletânea de ensaios em inglês "The Turn of the Native". Falou à Folha no lançamento de coletânea de entrevistas suas pela editora Azougue, no Rio.
FOLHA - Como o sr. analisa a polêmica sobre a exploração econômica da Amazônia, que envolve a questão indígena?
EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO - O que está em discussão na verdade é o destino da Amazônia, se o Brasil sabe cuidar do que é seu. Há muita conversa, pouca ação. A ação que se tem, só se vê de destruição. A discussão sobre os índios é sintomática, porque o que se debate, na verdade, é que país queremos ser: um país realmente do futuro -que é a capacidade de ter uma relação com a sua base ambiental, seus recursos, uma relação moderna- ou ter uma relação antiga, como se tinha no século 19, baseada na destruição, no desmatamento e na exportação do nosso ambiente.
Se queremos ser de fato um país do futuro, para valer, ou "país no futuro". Queremos ser realmente a segunda China, como disse o presidente num momento de especial infelicidade? Ou queremos ser o Brasil?
FOLHA - Qual a sua avaliação da atual política indigenista?
VIVEIROS DE CASTRO - O presidente da Funai é muitíssimo mais capaz que o presidente anterior. A política indigenista desse governo não é pior do que a do governo anterior. Sob alguns aspectos é até melhor. É infinitamente superior a políticas indigenistas dos governos militares, por exemplo, que foram justamente aquelas que o general [Augusto Heleno, comandante na Amazônia, que declarou no dia 16 de abril que a "política indigenista é um desastre"] evocou num momento de saudosismo, dizendo que a política indigenista estava caótica. Caótica estava no tempo dele, no tempo dos generais e coronéis. Mas, sem dúvida, há coisas que não vão bem.
FOLHA - Quais?
VIVEIROS DE CASTRO - Há um certo modelo de desenvolvimento que se tornou dominante. Um modelo baseado na exportação maciça de produtos de agronegócio, pecuária e agora os biocombustíveis. São modos de exploração ambientalmente estúpidos e sem futuro do ponto de vista da sustentabilidade. Visam fazer dinheiro fácil, digamos assim. Usam pouquíssima mão-de-obra e áreas muito extensas. Destroem freneticamente o meio ambiente. Se você olhar o mapa de Mato Grosso por satélite, vai ver que as únicas áreas verdes que restam no território são indígenas.
FOLHA - Qual sua opinião a respeito do debate sobre a reserva indígena Raposa/Serra do Sol?
VIVEIROS DE CASTRO - O que está em discussão é se eles têm direito ou não a essas terras, que não é área de floresta, é região de campos. Acho que eles têm de ficar ali, não tem a menor conversa. Eles tinham direito àquelas terras, sempre tiveram. Os direitos deles precedem os nossos. Nós reconhecemos isso ao dar aos índios direitos históricos sobre as terras que ocupam. Essa discussão é inteiramente viciada por uma mistura de interesses, que estão se fundindo na imaginação e na mídia, dos grandes produtores de arroz, cana e soja, que não têm em mente a pátria como questão. Entre os patriotas profissionais e os empresários, cujo única religião é o dinheiro, está havendo uma estranha convergência de opiniões, que só pode estar baseada num equívoco e na ingenuidade, que eu não diria recíproca.
FOLHA - Como o sr. analisa as cenas de agressões dos índios a um engenheiro da Eletrobrás, que foi ferido no braço por facões?
VIVEIROS DE CASTRO - Essas cenas não são falsas. Estão sendo usadas. Mas, como todo mundo sabe, cena é cena, montagem é montagem, escolha de imagem é escolha de imagem. É claro que essas cenas aconteceram. Há cenas violentas dos índios, como há cenas de violência de uma quantidade de brasileiros em situações desse tipo ou semelhantes. Volta e meia aparece na TV a polícia chutando um negro na rua e parece causar menos escândalo do que índios dando uma prensa num engenheiro branco. É estranho.
FOLHA - Foi um caso pontual aquela reação dos índios?
VIVEIROS DE CASTRO- Foi uma indignação. Pelo que eu soube, e isso não justifica de forma alguma o jeito como isso se desen- rolou, o engenheiro se comportou de forma arrogante e incivil. Tratou a platéia de maneira paternalista, como se fosse composta por ignorantes e ingênuos. Os índios não têm muita tolerância para esse tipo de atitude. Sobretudo os caiapós.
Eles não gostam de serem tratados como idiotas. O que me contaram é que o engenheiro tratou as pessoas mal, e foi maltratado. Não estou dizendo que ele deveria ser maltratado. Não há justificativa para a ação, mas há explicação. Não é uma ação inexplicável, não se deve ao temperamento primitivo e selvagem dos índios.
Deve-se ao modo como eles reagem diante de situações, que nós, talvez acostumados à obediência e à humildade, talvez não reajamos assim. Talvez o que redima os índios, e o que os tem mantido vivos até hoje, seja o fato de não estarem excessivamente acostumados à humildade e à obediência e que ainda conseguem reagir. Não sei se é um mau sinal assim. Os caiapós, índios do médio Xingu, têm uma tradição de ser um povo orgulhoso, que não leva desaforo. O que eu soube -eu insisto, não estava lá- é que eles se sentiram insultados.
Para começar, eles não deram uma facada. Se eles quisessem decapitar o engenheiro, não seria tão difícil. Foi mais uma bagunça. E todo mundo com um facão, com um pedaço de pau, não é das situações mais agradáveis. Não esqueçamos que esse caso de Altamira já ocorreu em 1989. A diferença é que a pessoa não se mexeu, então não se cortou. A situação é muito parecida, só que na época não deram atenção, não fizeram esse escândalo todo porque agora o caso está conectado a outras coisas.
(Por Malu Toledo, Folha de São Paulo, 01/06/2008)