“No meio da floresta, ninguém consegue se preocupar com conservação se tiver com um filho passando fome”. Com esta frase, o líder comunitário Manoel Cunha, presidente do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), resumiu a tênue relação entre bem estar ambiental e social para quem vive sem recursos e infra-estrutura na região amazônica. Foi durante um seminário em São Paulo, no início de maio. Cunha saiu da Reserva Extrativista Médio Juruá, no Amazonas, para falar sobre a necessidade de mais incentivos em pesquisa e políticas públicas para que os moradores da região sejam estimulados a manejar sustentavelmente a floresta, em vez de cederem à sedução do dinheiro mais fácil da derrubada e do boi na Amazônia.
As ferramentas para que a pesquisa na floresta se reverta em benefícios monetários ou não para os detentores de conhecimentos tradicionais existem no Brasil desde 2001, mas em poucos casos têm funcionado satisfatoriamente. Uma (medida provisória MP 2186-16/2001) define as regras para o acesso a recursos genéticos e repartição de benefícios. E, embora tenha sido considerado um grande avanço, é fortemente criticada pela comunidade científica por burocratizar e complicar as pesquisas, além de não ser suficiente para evitar a exploração ilegal e o tráfico internacional de ativos da biodiversidade. Por este motivo, o Brasil pressiona pelo estabelecimento de um regime internacional de caráter obrigatório para que os governos só aceitem patentear produtos se comprovada sua origem e respeito à legislação local. Esta é uma boa briga que a nossa delegação encara nos momentos finais da 9ªa Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre a Diversidade Biologia (COP 9), em Bonn, na Alemanha.
Como as outras negociações envolvendo biodiversidade, o ritmo das discussões é lento demais para competir com a velocidade das pressões contra a natureza. Desde a COP5, no ano 2000 em Nairóbi, no Quênia, negocia-se este regime internacional para ditar as regras sobre acessibilidade dos recursos genéticos no planeta. Segundo explicou a analista Camila Oliveira, do Departamento de Recursos Genéticos do Ministério do Meio Ambiente (MMA), a questão chegou à COP9 sem que as diversas reuniões regionais ocorridas até então tivessem conseguido elaborar um documento consensual. Em vez disso, as delegações participantes levaram para Bonn um esqueleto do texto, com vários itens a serem negociados. Felizmente, segundo representantes da sociedade civil que acompanharam o tema, pelo menos uma recomendação (chamado de Mapa do Caminho) vai realmente sair para orientar o texto final, a ser aprovado até a COP10, em Nagoya, no Japão. Até lá, um grupo de trabalho formado na conferência vai se reunir mais três vezes para finalizar o texto e garantir que em 2010 o acordo seja finalmente assinado.
Mas a maré ainda pode virar. O Japão, que vai sediar a próxima conferência, já avisou que só apóia compromissos voluntários. Sua oposição não chega a surpreender. Basta lembrar das pressões dos japoneses pela patente do cupuaçu, caso vencido pelo Brasil em 2003 e que gerou grande mobilização pelo estabelecimento de regras internacionais mais claras sobre a legalidade do aproveitamento de recursos genéticos de países estrangeiros. Mas o cupuaçu não está só. De acordo com a organização Amazonlink, diversos outros produtos da biodiversidade brasileira estão prestes a serem patenteados por gente de fora, como a andiroba, o açaí, a copaíba, o jambu etc. Daí a necessidade de acelerar internacional e nacionalmente as discussões para melhorar as regras em vigor.
Desconfiança interna
Valorizar o conhecimento tradicional e o uso de ativos da biodiversidade para o desenvolvimento científico é tudo que pesquisadores e comunidades querem. “Conhecendo a tecnologia, vendemos a castanha por um preço melhor porque agora começamos a trabalhar com embalagens a vácuo. Através do associativismo, não precisamos mais dos atravessadores”, exemplifica Manoel Cunha, do CNS. “A comunidade científica precisa se enfiar na floresta com a gente para melhorarmos nossa qualidade de vida”, convoca a liderança.
Para Vera Val, pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e diretora da Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC), não é por falta de vontade. Segundo ela, para que mais estudos sejam feitos, é preciso mexer na legislação e desburocratizar o acesso do pesquisador ao campo. Vera defende que, para agilizar a autorização das pesquisas com finalidade científica e tecnológica, seja montado um cadastro único de cientistas, vinculado a um banco de dados como a Plataforma Lattes, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). “Uma vez tive que esperar seis meses até sair uma licença para eu dar uma aula prática”, lembra Vera. Hoje, ela diz, a lei prevê que não apenas a área ambiental do governo autorize as pesquisas, mas também ministérios como o de Ciência e Tecnologia, Desenvolvimento Agrário e outros, dependendo do caso. E os empecilhos não param por aí.
Devido à grande quantidade de resoluções, detalhes e exceções, as dificuldades da legislação não são consideradas triviais. “Houve um excesso de legislação, muito voltada às instituições de pesquisa, e com pouco foco nas áreas de comércio e exportação. Por trás disso, fica parecendo que há uma desconfiança de que as instituições de pesquisa não sejam idôneas, como se dentro delas houvesse biopiratas, não pesquisadores. Não é por aí”, diz Nadja Lepsch, chefe da Divisão de Propriedade Intelectual do INPA e conselheira do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), entidade responsável por autorizar as pesquisas. Ela reforça que a comunidade científica não quer se eximir de suas responsabilidades, mas apenas conseguir realizar suas pesquisas de maneira correta.
“Se o pesquisador tem dificuldade de acesso à biodiversidade para investigação, nunca iremos descobrir materiais biologicamente importantes. Vamos ficar na retaguarda de outros países que têm um desenvolvimento tecnológico mais rápido e podem ter acesso à mesma biodiversidade em países vizinhos”, explica Vera Val. Na tentativa de se organizar para adequar-se à medida provisória, o INPA está fazendo uma chamada de todas as pesquisas que possam, hoje, envolver acesso a recursos genéticos. “Por causa dessas dificuldades, é possível que tenha gente aqui fazendo pesquisa sem saber que é preciso tirar diversos tipos de licença. Por isso vamos analisar caso a caso”, informa Nadja.
Para ela, a discussão sobre repartição de benefícios é um passo posterior. “Quando a pesquisa chega no nível de patente aí sim podemos pensar em como repartir os benefícios. Antes disso é excesso de burocracia sem justificativa”, opina a pesquisadora. Cautela e muito estudo também é o que defende Vera Val. “Se tivermos que repartir benefícios retroativos, vamos retroagir em tudo. Teríamos, por exemplo, que pagar pelo café, que não é daqui”. Outra discussão é como repartir. “Ela deve servir de fonte de custeio para populações tradicionais. Tem que ser um incentivo para sua cultura e para conservação”, considera o pesquisador Eduardo Vélez, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Quem tem interesse comercial nos ativos da biodiversidade, tem conseguido lidar bem com a questão. Nesta semana, por exemplo, a empresa de cosméticos Natura firmou mais dois contratos de repartição de benefícios por acesso ao patrimônio genético envolvendo uso da castanha-do-brasil e da copaíba na Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Rio Iratapuru, no Amapá. A empresa, que já tem oito contratos sabatinados pelo Conselho de Gestão do Patrimônio Genético – CGEN, órgão regulador do governo, acertou com o estado do Amapá que vai repassar um percentual ainda não divulgado dos recursos oriundos da comercialização dos produtos, por um período de três anos à Secretaria de Meio Ambiente para investimentos nas comunidades.
Apesar do entendimento prático sobre as oportunidades da repartição de benefícios, Manoel Cunha se diz excluído das conversas oficiais sobre o assunto. “Não nos sentimos contemplados, não sabemos a legislação. A consulta pública para a nova lei está sendo feita pela internet, como é de que lá de dentro da reserva extrativista a gente vai participar?”, reclama ele, que pede a realização de consultas públicas pelo menos estaduais. Seu protesto se refere à fase relativamente avançada de discussões de um anteprojeto de lei que pretende substituir a medida provisória 2186, em tramitação na Casa Civil. A fase de consulta termina no dia 13 de julho. Para Nadja, do INPA, a proposta ainda precisa de muitos esclarecimentos e mudanças, mas em relação à MP já é considerada um grande avanço. Pelos seus cálculos, no entanto, supondo que ainda neste ano o anteprojeto seja enviado ao Congresso, ela estima que as discussões ainda vão demorar pelo menos três anos. Se tudo correr bem.
(Por Andreia Fanzeres, O Eco, 29/05/2008)