O sangue que escorreu do braço do engenheiro da Eletrobrás Paulo Fernando Rezende, ferido por indígenas na terça-feira 20, turvou novamente o diálogo com os interessados na construção de hidrelétricas no rio Xingu. Rezende foi atingido após discursar a favor da usina de Belo Monte a uma platéia de ribeirinhos, ambientalistas e indígenas que participavam do Encontro Xingu Vivo para Sempre, em Altamira (PA). No dia seguinte, a Polícia Federal abriu inquérito para investigar a agressão.
A idéia das usinas é antiga e nunca foi aceita pelos indígenas. Em 1989, num debate sobre a mesma obra (então chamada de Kararaô), a índia Túria, da etnia caiapó, hostilizou e encostou um facão no rosto do presidente da Eletronorte, José Antônio Muniz Lopes. O episódio repercutiu Brasil afora e o Banco Mundial desistiu de financiar a obra.Hoje, a usina de Belo Monte é um dos projetos prioritários do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do governo federal, focado em suprir a carência energética brasileira. Como ficou claro em Altamira, há muita animosidade. Em nota, a comissão organizadora do encontro lamentou a agressão, que “não representa o espírito democrático de diálogo”. A antropóloga e professora da PUC/SP, Carmen Junqueira, estuda populações indígenas há 40 anos e falou à CartaCapital.
CartaCapital: Um debate terminar em agressão física é sinal de incapacidade dos índios para se defender com palavras?
Carmen Junqueira: Na história indígena, não há registro de ataques que não sejam para se defender. Eles estão se defendendo de uma ameaça ao seu hábitat. Não sabemos o que foi dito, o que foi questionado e como foi respondido. O índio reage quando estimulado.
CC: A perspectiva de hidrelétricas no Xingu não é nova. Por que não se criou um ambiente de diálogo entre os indígenas e a sociedade?
CJ: A contradição não é entre indígenas e não indígenas. É entre duas formas de distribuir a riqueza do País. É muito difícil dialogar com o desenvolvimentismo a qualquer custo. Há uma enormidade de brasileiros, não apenas indígenas, preteridos nesse processo.
CC: Quem deve ser punido pela violência contra o engenheiro?
CJ: Houve uma agressão que não se justifica do ponto de vista humano. A organização falhou, pois
em um evento tenso como esse não poderia haver armas. Os caiapó são enfezados, são muito inteligentes, entendem bem o português, conhecem madeireiros e toda a malandragem
do homem branco. Não devia ser permitido que entrassem com facões.
CC: É possível existir um debate razoável?
CJ: Índio não é criança. É preciso um ambiente em que verdadeiramente exista negociação, e isso não está acontecendo. Conheço esses engenheiros há anos. Eles não movem um milímetro suas intenções, enquanto os índios são constantemente iludidos.
(CartaCapital, 23/05/2008)