O Encontro Xingu Vivo para Sempre terminou nesta sexta, 23 de maio, em Altamira (PA), com um recado claro: representantes de movimentos sociais, organizações da sociedade civil, populações indígenas e ribeirinhas da Bacia do Xingu presentes não querem hidrelétricas na região e exigem ser ouvidos pelo Estado brasileiro para apresentar o modelo de desenvolvimento por elas desejado. Para fechar o evento de forma simbólica, mas contundente, um ato público foi realizado na beira do rio, com a presença de quase três mil pessoas. Grupos indígenas, em especial os Kaiapó, dançaram, cantaram e banharam-se no rio num gesto simbólico de homenagem às suas águas.
Desde o dia 19, mais de duas mil pessoas, incluindo pesquisadores, indígenas, extrativistas, agricultores e moradores da cidade, discutiram os impactos dos projetos hidrelétricos previstos para toda a Bacia do Xingu (MT e PA), entre eles as Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) nas cabeceiras do rio, no Mato Grosso, e a usina de Belo Monte, umas das prioridades do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). Principalmente os representantes indígenas protestaram contra o fato de nunca terem sido adequadamente consultados sobre esses projetos e sobre a decisão de implantá-los, mesmo sendo os principais afetados.
“Os índios votaram no Presidente Lula porque ele prometeu melhorar a nossa vida. Agora ele nos esqueceu? A mensagem de todas as nossas lideranças é que não queremos barragens no Rio Xingu e vamos resistir a elas”, afirmou o cacique Ireô Kaiapó. Os Kaiapó foram um dos grupos que se colocaram de forma mais contundente contra a construção de Belo Monte . “Estamos aqui não apenas para defender nossos direitos, mas o futuro de nossos filhos e netos; os direitos de nossos parentes de toda a região, do Pará e do Mato Grosso”, bradou o cacique durante a fala das lideranças de seu povo, na quinta-feira, enquanto erguia no colo uma criança Kaiapó.
A Constituição Federal e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho determinam que qualquer projeto de aproveitamento energético que atinja Terras Indígenas precisa ser aprovado pelo Congresso Nacional com consulta prévia aos seus moradores. Apesar disso, o Estudo de Inventário Hidrelétrico do Rio Xingu, que prevê a possibilidade de construção de barragens em várias Terras Indígenas, foi elaborado, finalizado e está prestes a ser aprovado pela Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL sem qualquer consulta aos povos indígenas. “A realização de uma consulta adequada aos povos indígenas sobre essas hidrelétricas é não só uma obrigação legal, mas um dever democrático do Estado brasileiro”, argumenta o advogado Raul Telles do Valle, coordenador do Programa de Política e Direito do Instituto Socioambiental. “Estamos falando de projetos que podem impor uma modificação drástica no modo de vida desses povos e ameaçam retirá-los de suas terras. Mas não há espaço para diálogo se a decisão de implantá-los já foi tomada e até data para o leilão de Belo Monte já foi marcada, mesmo sem termos idéia de sua viabilidade ambiental”.
A comissão organizadora do evento convidou representantes de vários órgãos oficiais, como os ministérios de Meio Ambiente e Minas e Energia, o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e a Funai (Fundação Nacional do Índio), mas nenhum deles apareceu. O único a enviar representantes foi o Ministério de Minas e Energia, um técnico da Eletrobrás que acabou sendo machucado pelos indígenas presentes durante um tumulto no meio de sua apresentação.
Projeto inconsistente
Pesquisadores, especialistas e representantes do Ministério Público também voltaram a apontar várias inconsistências no projeto de Belo Monte. “A usina só será viável economicamente se mais quatro hidrelétricas forem construídas. O que está em debate, na verdade, é um conjunto de usinas que terá um impacto tremendo sobre os ecossistemas e as populações de toda a bacia”, alertou o professor Célio Bermann, da Universidade de São Paulo (USP), durante a mesa redonda da quinta-feira, 22 de maio.
De acordo com a Eletrobrás, Belo Monte deverá gerar pouco mais de 11 mil MW com um reservatório de 400 quilômetros quadrados, o que é visto como um trunfo ambiental por parte do governo. Além dos sérios impactos sobre várias populações a montante e a jusante da barragem, estudos independentes apontam que, apesar da grande potência instalada, a usina iria funcionar com 30% ou menos de sua capacidade durante quatro meses no ano, o que afetaria a sua viabilidade econômica e demandaria a construção de outras usinas rio acima para regularizar a vazão do rio e assim permitir que produza energia durante o ano inteiro.
“Os povos tradicionais da Bacia do Xingu [índios, ribeirinhos, extrativistas etc] permaneceram invisíveis ao Estado e à sociedade brasileira por muito tempo. Isso tem de acabar. É hora deles serem ouvidos e de terem respeitados os seus direitos”, disse Marco Antônio Delfino, procurador federal em Altamira. Ele lembrou que as ações que o MPF tem impetrado contra a construção de Belo Monte e de outras usinas na Bacia do Xingu objetivam apenas fazer cumprir a Constituição. “Se permitirmos que ela seja descumprida uma vez, e mais outra, e ainda outra, chegará o dia em que nenhum de seus dispositivos será respeitado. Se Belo Monte for construída, será um monumento ao desrespeito à Constituição. Não podemos admitir isso”. Como o barramento do Xingu pode trazer conseqüências cumulativas sobre várias Terras Indígenas e populações, Marco Antônio defendeu que o Ibama realize o licenciamento de qualquer usina na região e que ele seja precedido por uma avaliação ambiental integrada de bacia que leve em conta a opinião e as necessidades especiais dessas populações.
PCHs
Um tema importante discutido durante o Encontro Xingu Vivo para Sempre foi o das Pequenas Centrais Hidrelétricas - PCHs. Também foi unânime a recusa dos povos indígenas, em especial do Parque Indígena do Xingu, onde já funciona uma dessas usinas, no rio Culuene, a novos projetos hidrelétricos. “Estamos aqui para perguntar: que país é este em que vivemos? A impressão que temos é que o governo trabalha contra todos os direitos que estão garantidos na lei dos povos indígenas. Estamos aqui para reclamar por esses direitos”, questionou Marcelo Kamaiurá, morador do Parque Indígena do Xingu.
Marcelo defendeu a criação do Comitê Gestor da Bacia Hidrográfica do Xingu como uma instância de consulta e decisão sobre o futuro das águas da região. Ele lembrou ainda a importância estratégica da Bacia do Xingu para a conservação. Existe hoje um conjunto contíguo de 24 Terras Indígenas e Unidades de Conservação na bacia, num total de quase 27 milhões de hectares em áreas protegidas.
“Estamos com um movimento de todos os povos do Xingu contra todas as obras que afetem as nascentes do Xingu. Queremos convidar todos os caciques da região a apoiar essa mobilização, para que essa idéia chegue a todas as comunidades. Quanto mais não temos conhecimento, informações, ficamos mais vulneráveis ao poder dos empreendedores. Gostaríamos de conseguir unificar um movimento dos povos do Xingu contra as barragens. Podemos fazer organização forte para sermos reconhecidos como os donos dessas terras”, disse Marcelo.
“Se é interesse dos brasileiros gerar energia para o desenvolvimento, quero lembrar que os povos indígenas também são brasileiros e não são escutados. O governo não nos vê como brasileiros?”, complementou Ianuculá Kaiabi, também morador do Parque. Para ele, o que está em jogo nos projetos de usinas do Xingu são os interesses de grandes empresas. Ianuculá chamou os ribeirinhos de “parentes” (termo usado entre indígenas de etnias diferentes para se referir um ao outro) e reforçou a importância de um movimento unificado em defesa do Xingu e de seus afluentes.
Já existe uma PCH funcionando, outra sendo construída e mais três já aprovadas para serem instaladas nos rios formadores do rio Xingu. Estudos independentes realizados a pedido da Funai comprovaram os graves impactos sobre a pesca na região, o que ameaça a segurança alimentar das 14 etnias habitantes do Parque Indígena do Xingu, já que os peixes são o seu alimento principal. Além disso, locais por eles considerados sagrados serão destruídos com a instalação dessas hidrelétricas, como ocorreu com a PCH Paranatinga II, a única já em funcionamento. (leia aqui e veja outras notícias relacionadas).
A carta final do encontro pede ao Poder Público que respeite a diversidade social e ambiental hoje existente na bacia do Xingu, e que implemente políticas públicas que a valorizem. Medidas como a finalização da demarcação de terras indígenas, o incentivo à comercialização de produtos da floresta, o investimento em tecnologia para aumentar a produtividade e a renda da agricultura familiar e para ocupar em bases sustentáveis as áreas hoje degradadas pela expansão agropecuária são colocadas como pontos fundamentais para o desenvolvimento da região.
(Por Oswaldo Braga de Souza, ISA, 25/05/2008)