Para o reitor da Unicamp, avanço dos canaviais no Brasil não afetou a produção nem é responsável pela inflação alimentar no mundo, mas pode ser uma ameaça caso o País não crie uma política agrícola
O Brasil não deve recuar, devido às pressões internacionais, no avanço da produção de cana, etanol e biocombustível, mas precisa com urgência de uma política agrícola — “que ele nunca teve” —, antes que a cana tome conta das áreas com plantio de alimentos como arroz e feijão, porque a ameaça existe. O alerta é do reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), José Tadeu Jorge, engenheiro de alimentos e professor titular da Faculdade de Engenharia Agrícola (FEAGRI).
O mesmo aspecto foi abordado pelo ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, quando disse que, para que o País se torne líder mundial no fornecimento de alimentos, precisa resolver problemas de infra-estrutura, como em portos e estradas. O ministro acredita que a eficiência na produção agrícola é prejudicada pela ineficiência na logística. O reitor da Unicamp avança na questão estrutural e fala da enorme cadeia de desperdício que existe no Brasil.
De acordo com o ministro, a alta dos alimentos no mundo não é passageira, mas trata-se de um novo patamar de preços para os próximos dez anos. Mas neste cenário mundial o reitor da Unicamp lembra que o Brasil leva vantagem porque tem o que nenhum outro país no mundo possui: 80 a 100 milhões de hectares agricultáveis disponíveis.
Segundo Jorge, a Unicamp dá sua contribuição à sociedade na questão de alimentos, mas pode contribuir muito mais. “A pesquisa em alimentação na Unicamp está na origem da universidade, que nasceu com a Faculdade de Engenharia de Alimentos, em 1967, que na época funcionava no Instituto de Tecnologia de Alimentos (Ital). E depois nunca parou de avançar nesta área, onde há centenas de pesquisas de tecnologias, de produção, de preservação, de acesso...”, afirma Jorge.
A Unicamp promove, desde abril, o curso semipresencial de segurança alimentar e nutricional, dividido em seis módulos agendados até junho, que tem o objetivo de contribuir no avanço das políticas públicas nesta área. A iniciativa tem a colaboração da Food and Agriculture Organization (FAO), do Proyecto Regional de Cooperación Técnica para la Formación em Economia y Políticas Agrárias y Desarrollo Rural para América Latina (Fodepal) e do Proyecto Iniciativa América Latina y Caribe sin Hambre (ALCSH).
Na entrevista a seguir, o reitor revelou sua avaliação sobre o atual debate internacional a respeito de biocombustíveis e produção agrícola de alimentos.
Há coerência na relação entre a fome e a alta dos alimentos com o biocombustível?José Tadeu Jorge - Não há relação de causa e efeito direto nesses indicadores: fome, biocombustível, produção e alta de alimento. A questão da fome é um problema de acesso aos alimentos. O marco de referência nessa questão fome está na reunião da FAO em 1970, há 38 anos, que procurou discutir a questão. De lá para cá, é importante dizer que a situação melhorou pouco, mas melhorou. A FAO fala que existem cerca de 800 milhões de pessoas abaixo da alimentação necessária. Isso não significa necessariamente fome. Dados recentes no Brasil apontam para cerca de 10% da população brasileira abaixo da linha de alimentação necessária. Isso significaria 20 milhões de pessoas. Mas isso existe não é porque não tem comida. O mundo e o Brasil produzem muito mais comida do que seria necessário, se considerarmos a produção total. Se você vai a continentes como a África, pode encontrar um déficit local. Mas, em termos mundiais, não há déficit. A questão é puramente de acesso. As pessoas não têm condições econômicas. No Brasil, é só lembrar do Betinho, da arrecadação de alimentos, do Fome Zero. O panorama mudou muito pouco nestes 38 anos. No Brasil, eram 20% sem a alimentação mínima, hoje são 10%. A situação melhorou, mas 10% ainda é muito, principalmente sabendo que há comida suficiente para todo mundo.
Então, a questão da fome não tem nada a ver com biocombustível?José Tadeu - Não dá para misturar estes assuntos. Em 1970, não havia nem Pró-Álcool e já existia uma fome pior que hoje. A crise atual, como estão chamando este assunto, não é culpa dos biocombustíveis. O trigo, por exemplo, subiu 130%. Isso não pode ser atribuído aos bio. O Brasil importa muito trigo, ele não produz o suficiente para si próprio. São outras razões de mercado. Mais pessoas passaram a consumir. Nos últimos sete anos muitas pessoas passaram a ter acesso, como China, Índia, Brasil. Significa demanda maior, possibilidade de mercado melhor, e a especulação surge daí. Estamos falando de negócio. Pessoas que têm o produto vão buscar as melhores condições de comercializar.
O senhor acredita que a produção agrícola acompanhou esse aumento da demanda, que veio com o crescimento populacional e a chegada de outros mercados?José Tadeu - Isso é reviver a teoria de (Thomas) Malthus. Num certo momento, no século XVIII (em Essay on Population - Ensaio sobre a população), ele demonstrou que a população crescia em progressão geométrica e a produção de alimentos aumentava em progressão aritmética. Portanto, a previsão era que faltaria alimento no mundo. Pelos dados que ele tinha na época, estava correto. Mas no futuro as condições mudaram, a população parou de crescer em progressão geométrica, e a produção de alimentos, com pesquisas e evolução tecnológica, cresceu muito mais que antes. É importante salientar que a ciência tem evoluído sempre no sentido de equacionar esses problemas todos. Isso vai continuar sendo importante no futuro. Precisa ser bem planejado.
Quer dizer que a produção nem de longe é o problema, mas o entrave continua sendo somente o acesso?José Tadeu - A questão da polêmica que eu acho que merece muita atenção é que não é descartável a possibilidade de que a cana passe, no futuro, a substituir a área plantada de alimentos. Eu confirmo que nada do que aconteceu até agora é culpa do biocombustível. Mas acho que são necessárias medidas para que continue sendo assim. O risco número um: a plantação de cana invadir reservas ecológicas. Essa alternativa do ponto de vista econômico não é viável. Ninguém vai fazer isso para ter prejuízo. Por isso, por essa opção não ser viável, não é a maior preocupação. O risco número dois: a possibilidade da substituição de pastos por cana. Sempre pensando do ponto de vista econômico. O Brasil é o maior exportador de carne bovina. É possível ocupar algumas áreas de pastagens melhorando tecnologicamente a criação, usando menos área e destinando a área à produção de cana. Mas isso tem um limite. A produção de carne sendo competitiva não vai interessar a troca. Risco número três: a cana pode entrar onde os produtos que estão plantados ali perdem em competitividade para o biocombustível. Isso pode acontecer principalmente com grãos, como arroz e feijão. Mais difícil de acontecer com soja, que tem mercado competitivo de exportação. Então, isso pode diminuir área de arroz e feijão em favor da cana. Alguns já dizem que isso já está acontecendo no Estado de São Paulo. No momento em que tivermos superprodução de suco de laranja com preços de exportação de suco de laranja em queda, os laranjais vão ser menos competitivos que a cana. Com o imediatismo que existe na agricultura brasileira, não dá para descartar a hipótese de que as pessoas comecem a arrancar citros para plantar cana.
Do ponto de vista econômico, pode vir a acontecer essa troca que pode ser uma ameaça à produção de alimentos?José Tadeu - É preciso estar atento para que haja uma política agrícola que evite isso. E a história brasileira da agricultura mostra que é preciso se preocupar com isso sim. O Brasil, de uma maneira séria e consistente, nunca teve política agrícola. É preciso trabalhar, existem instrumentos que podem organizar esta questão do biocombustível de maneira positiva. Todos concordam que é uma grande oportunidade de o Brasil liderar a produção de biocombustíveis com vantagens já divulgadas em relação à produção norte-americana feita a partir do milho. Seria muito importante que o Brasil não perdesse essa oportunidade. Pode ser vital para o desenvolvimento do País, inclusive em outras áreas. Mas precisa organizar esta questão. O Brasil tem o que nenhum outro país no mundo possui: são 80 a 100 milhões de hectares agricultáveis disponíveis (que não estão sendo utilizados). Área que pode ser usada para produção agrícola e que não está sendo. Na maior parte desta área é possível colocar cana. É preciso que haja instrumentos de política que favoreçam o uso destas áreas para a produção de cana para biocombustível. O Brasil tem hoje algo em torno de 7 milhões de hectares plantados com cana. É possível expandir muito a produção de cana, uma vez que nós temos de área agricultável disponível mais de dez vezes o que há de cana. Não precisa tirar arroz ou feijão para plantar cana.
O que falta para ocupar estas áreas?José Tadeu - As pessoas precisam ser induzidas a ocupar essas áreas. Essas fronteiras deveriam merecer uma atenção de estímulo, uma política agrícola para que essas áreas fossem utilizadas. Mas vale lembrar que boa parte destas áreas necessitam de infra-estrutura de escoamento. Além disso, o produto tem de ser armazenado antes de ser escoado. É papel do governo dotar, com políticas, essas regiões. O Estado de São Paulo é ótimo, não existe infra-estrutura melhor para escoar qualquer produção. Criar condições para utilizar a área que hoje não é usada para agricultura, portanto, seria ideal para expandir a produção de cana e, consequentemente, de álcool. Em muitos lugares é importante que essa política trabalhe com a questão do zoneamento agrícola, determinando áreas mais propícias.
Com uma política como o Pró-Álcool?José Tadeu - Uma política que se faça valer das regras de mercado, não uma intervenção.
Se formos avaliar globalmente, os EUA fizeram isso, uma política agrícola de estímulo à produção do etanol do milho. Muitos vêem aí a origem da crise no preço dos alimentos.José Tadeu - Eu não acho. Todo país deve proteger seus interesses, o Brasil também. Mas não adianta o Brasil ser um grande produtor de álcool se isso criar problema de produção de alimentos no futuro. Isso não existe hoje, mas acho que o Brasil deve proteger a sua posição, aumentar a produção de álcool, sem se tornar vulnerável na produção de alimentos. O País tem todas as condições de fazer isso, porque você não vai encontrar em nenhum outro lugar do mundo 80 milhões de hectares para aumentar produção agrícola. Só aqui. É exclusividade do Brasil. Temos que defender essa posição. Por isso, é extremamente importante a adoção de um planejamento coerente, consistente, para não abrir mão de nenhuma das duas coisas.
O momento não é de abrir mão e recuar, mas de avançar (no biocombustível)?José Tadeu - É de avançar, mas de forma organizada, identificando os riscos e cuidando para que sejam minimizados. Esse conjunto de ações, que deveriam constituir a política agrícola, envolvem o estímulo para ocupar área agricultável, envolve a questão do zoneamento, envolve a garantia de preço... Hoje não funciona adequadamente no Brasil um instrumento que seria importante que é a equivalência do produto. Tomar empréstimo e pagar com a produção ou em dinheiro. Isso é estímulo ao agricultor, que depende somente do trabalho dele nesta situação.
O senhor colocou a posição privilegiada do País diante do mundo em termos de terra disponível para a produção de alimentos. Isso quer dizer que basta equacionar o avanço do biocombustível e a produção? Onde entra a questão do desperdício, tema de seus estudos? O Brasil está nesse caminho? O desperdício também contribui para a fome?José Tadeu - Claro que contribui. Se você tiver mais disponibilidade e mais oferta, de maneira direta você cuida para que os preços subam menos e fica mais fácil de ter acesso aos alimentos. Infelizmente o desperdício no Brasil tem duas razões fortes, uma delas é cultural. É fácil de ser verificada. Vá a um restaurante por quilo. Teoricamente você coloca no prato a sua carteira. Se você pôs ali, pesou e não comeu, jogou dinheiro fora. Mas você vê muita gente que coloca comida no prato e não come. Essa é a parte mais visível da questão cultural. Mesmo em casa, muita gente, por comodidade, compra mais do que consome para não voltar ao supermercado. As coisas estragam. A outra questão é de política agrícola. Em alguns momentos da história o Brasil teve política econômica para a agricultura, mas não teve política agrícola. Até hoje você ouve que o governo vai liberar R$ 5 bilhões para a próxima safra. Mas para quê? Não que isso não seja importante, mas é mais importante que exista uma política agrícola, com os fundamentos agrícolas. O que é? Por exemplo, estradas vicinais para escoar a produção. Vários levantamentos mostram que as estradas brasileiras são responsáveis por desperdícios enormes, cheias de buracos, transportando frutas, por exemplo. Sai o abacaxi do Norte de Minas para São Paulo, vem batendo. O descarte de abacaxi que vai para o lixo é enorme. Em caso de grãos a granel você pode ver, até aqui em São Paulo, um caminhão com grãos caindo. Curvas, buracos, o caminhão passa e caem grãos. Isso vai acumulando e gerando desperdício significativo. Há soluções. Um programa de secadores para quem tem produção de grãos é mais importante que alguns valores, por exemplo. Ou programa de refrigeração de frutas, para ajudar a fazer durar mais tempo e chegar em melhores condições ao supermercado. Tem uma cadeia de desperdício muito grande, e ela leva a perdas pequenas (como grãos, em torno de 5% a 10%, dependendo do grão), até perdas grandes de frutas e hortaliças, até 30% a 40%. Isso vai para o preço.
O senhor acha que o fato de o Brasil bater recordes de produção agrícola e de exportação não é sinal de que tem política agrícola adequada?José Tadeu - De jeito nenhum. Primeiro: a área plantada está aumentando. O nível de evolução tecnológica nos produtos brasileiros é enorme. A produtividade, a definição de novas variedades, tem contribuído muito para o aumento da produção. Explicam o aumento da safra. Mas continua havendo desperdício e falta de política.
Se o senhor fosse resumir sua análise, a sua sugestão para equacionar tudo isso é a criação de uma política agrícola de verdade?José Tadeu - O preocupante é que não dá para confiar que isso (política agrícola) vai existir, porque nunca existiu. É extremamente importante cuidar disso, porque não podemos correr atrás depois. Essas coisas têm de ser planejadas. Temos de nos antecipar. O risco que se identifica está aí. Tem que cuidar antecipadamente, para que este risco seja amenizado ou eliminado.
(Por Adriana Menezes, Agencia Anhanguera /
Unicamp / Correio Popular, 11/05/2008)
adriana.menezes@rac.com.br