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mudança de hábitos dos animais
2008-05-21

Acostumadas aos recantos úmidos e com vegetação, as cobras sofrem com a expansão urbana. Mas nem todas as serpentes têm batido em disparada com avanço sobre seus habitats. Enquanto moradias espalham-se pelas periferias de grandes cidades brasileiras, espécies como a jibóia (Boa constructor) e a jararaca (Bothrops jararaca) adaptam-se à ocupação humana e deleitam-se em áreas tomadas por lixo e esgoto.

Apesar de ainda não haver dados aprofundados, alguns pesquisadores observam um aumento no número de serpentes em regiões urbanizadas. Segundo os especialistas, certas espécies deram de ombros para as modificações do ambiente e estão tirando bom proveito da fartura de alimentos. “Nas cidades há uma produção excessiva de lixo, o que favorece a proliferação de roedores e lagartixas”, comenta o biólogo do Instituto Butantan, Fausto Barbo, que defendeu uma tese de mestrado sobre o assunto, na Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Como sublinha Barbo, os ratos são o item predileto no cardápio dos ofídios capturados perto do asfalto. E a relação não é coincidência, conforme aponta o biólogo Aníbal Melgarejo, chefe da Divisão de Zoologia Médica do Instituto Vital Brazil, no município fluminense de Niterói: “As espécies que se alimentam de ratos têm crescido em importância, como as jararacas e as jibóias, enquanto as que comem rãs e pererecas estão diminuindo, pois áreas de brejo foram destruídas pela urbanização”.

Na capital paulista, além da peçonhenta Bothrops jararaca, dois outros tipos de serpente figuram entre as mais encontradas pelo Corpo de Bombeiros: a falsa-coral (Oxyrhopus guibei) e a dormideira (Sibynomorphus mikanii). De acordo com o pesquisador do Butantan, todas elas caracterizam-se pela resistência às alterações no habitat. “Há espécies que ocorrem apenas em florestas e desaparecem com qualquer modificação. Outras já toleram certo grau de depredação do ambiente”.

Umas por outras

Com as matas que circundam grandes cidades reduzidas, resta às cobras encontrar paz em outros lugares. “As pessoas estão invadindo áreas em que os animais moram. O setor imobiliário está aproximando cada vez mais a moradia das pessoas da moradia dos animais”, destaca o veterinário André Maia, do Zoológico de Niterói (Zoonit). Foi ali o destino de 21 jibóias capturadas pelo Corpo de Bombeiros nos últimos quatro meses. “Com a desordem urbana, o número de cobras que chegam aqui tem aumentado, e elas são pegas nas casas das pessoas”, conta.

Segundo um levantamento feito pelo Instituto Vital Brazil, foram encontradas serpentes em 32 dos 48 bairros de Niterói (67%). Um total de 29 espécies espalha-se pelo município e, de acordo com os dados, as peçonhentas jararaca, jararacuçu (Bothrops jararacussu) e coral (Micrurus corallinus) representam 62% dos exemplares registrados. “O que nos preocupa um pouco é que tem desaparecido algumas espécies inofensivas e aumentado algumas venenosas”, diz Melgarejo, apontando a falta de planejamento, coleta de lixo e saneamento como culpada pelos números.

Distante de São Paulo e Rio, o Norte brasileiro passa por situação semelhante. Desde o início do ano, o Corpo de Bombeiros do Pará recolheu cerca de 60 ofídios que se arrastavam aos pés dos moradores da Região Metropolitana de Belém. Ana Prudente, pesquisadora do Museu Paraense Emilio Goeldi, não tem dúvidas de que as causas são as mesmas apontadas pelos colegas do Sudeste: “Isso vem crescendo nos últimos anos. Com a perda de vegetação, serpentes se deslocam buscando outro ambiente. E na maioria das vezes acaba sendo nas residências, principalmente na periferia, próxima aos remanescentes”, afirma.

Além da oferta de alimentos, Ana frisa que a temporada de chuvas fortes que cai sobre a região amazônica é mais um fator que faz as estatísticas dos bombeiros engordarem: “Quando chove aqui, alaga tudo, entra água nas casas e as cobras entocadas saem”. Pela abundância de águas e por estarem inseridas na Amazônia, as espécies mais capturadas em Belém são a sucuri (Eunectes murinu), que tem hábitos aquáticos, a jararaca Bothrops atrox e a jibóia.

A plasticidade desses animais que se aproveitam das alterações impostas pelo homem pode ser aparentemente favorável. Mas conforme observa o pesquisador do Vital Brazil, este ganho possibilita perdas futuras. “No desequilíbrio do ambiente, há um rearranjo em que algumas espécies desaparecem e outras poucas se beneficiam e se multiplicam. Sempre o espaço deixado por uma é ocupado por outra. Geralmente a descaracterização de ambientes naturais prejudica a biodiversidade, pois cria ambientes monótonos, que inviabilizam múltiplas espécies e beneficiam umas poucas, que então proliferam”, explica.

Entocadas

É provável que as rastejantes estejam nas cidades em maior número que o estimado. Ana Prudente, do museu Goeldi, lembra que estes répteis não são de ficar se exibindo por aí, o que pode dar a falsa impressão de que não estão presentes. “A jibóia, por exemplo, que é bastante vista, é um bicho grande, terrestre. Uma cobrinha pode estar ali sem que ninguém veja. As menores acabam não sendo pegas e os números podem ficar subestimados”, sugere.

Melgarejo concorda e afirma que as serpentes só costumam sair da toca em determinadas condições. “A convivência (com homens) geralmente não é percebida, salvo em circunstâncias especiais e sazonais, como períodos de intensa chuva, intenso calor ou mudanças de estação, quando os animais se deslocam e aparecem, pois habitualmente estão escondidos e não os percebemos”.

Melhor assim, pois quando resolvem olhar o que se passa em volta, não é raro as pessoas as matarem por medo. Os especialistas pedem calma. Aconselham o isolamento do local e a busca por autoridades competentes, como os bombeiros, para resolver de forma amigável. “As serpentes não atacam o ser humano com o objetivo de espantá-lo, mas pela ameaça que sofrem. Ainda que sejam peçonhentas, para elas o veneno é uma coisa muito cara para se produzir, pois têm um número limitado de doses. Se atacam um homem, é veneno jogado fora, pois não vão conseguir se alimentar dele. Então, é desperdício atacar”, assegura o pesquisador Ronaldo Fernandes, do Museu Nacional do Rio de Janeiro.

Para evitar possíveis desentendimentos com o réptil, os pesquisadores recomendam que o dever de casa seja feito. Não deixar lixo ou entulho espalhados já é um avanço para que os ratos não atraiam seus predadores. E entrar em desespero também não é aconselhável, até porque as serpentes não são tão más como parecem. “Esse pavor que as pessoas têm vem de origem muito religiosa. Há muitos mitos, lendas, e as serpentes foram durante muito tempo responsáveis pelo pecado original”, recorda Ana Prudente. “Isso tudo acaba criando um preconceito muito grande”.

(Por Bernardo Camara, O Eco, 20/05/2008)

 


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