Os debates sobre os biocombustíveis continuam acalorados e controversos. A cada semana que passa, o noticiário traz novas informações acerca dos seus possíveis custos e benefícios. Um dia, somos informados de que uma agência internacional (ONU), instituições políticas (UE) e grupos de científicos apóiam o desenvolvimento dos biocombustíveis porque permite reduzir as emissões de gases que causam o efeito estufa e aliviar a pressão sobre os preços do petróleo. Outro dia, os meios de comunicação relatam apelos de organizações não-governamentais, científicos, presidente de empresa multinacional da indústria de alimentos, agências internacionais e outros, que apontam para os efeitos do crescente uso de terras para produção de bioenergia e seu reflexo no aumento dos preços dos alimentos e das terras, no desmatamento e, portanto, no aquecimento global.
Nesse contexto “quente”, onde fatos e valores se entrelaçam, é pouco provável que as controvérsias sejam resolvidas brevemente. Enquanto o debate perdura, governos negociam as normas e os padrões que facilitarão o comércio internacional dos biocombustíveis e empresas iniciam movimentos estratégicos para se posicionar no que elas acreditam será um vultoso mercado no futuro próximo. Entre outros movimentos, um dos mais interessantes para o Brasil diz respeito à crescente atuação da Petrobras nessa área.
No início do mês de março de 2008, a Petrobras anunciou a criação de uma subsidiária responsável pelos negócios de biocombustíveis. A decisão surpreendeu porque até então a empresa só havia emitido intenções de criar uma diretoria nessa área. Segundo algumas opiniões, a iniciativa refletiria disputas políticas para acomodar indicados de um partido da base governista, já que a criação de uma nova empresa acarreta custos adicionais. No entanto, a decisão de criar uma nova subsidiária, ainda que possa ter sido incentivada por razões políticas, representa também uma mudança organizacional que faz sentido de um ponto de vista estritamente empresarial.
Em primeiro lugar, a constituição dessa unidade permitirá um melhor tratamento das informações sobre os mercados de biocombustíveis e um acúmulo de conhecimentos específicos nessa área. Sem mudança organizacional, essas informações correm o risco de se perder ou de ser pouco aproveitadas e haverá poucos conhecimentos acumulados. Num contexto no qual existem expectativas bastante favoráveis quanto à expansão da demanda por biocombustíveis, essa perda pode representar um custo importante para a empresa. Em segundo lugar, a inovação organizacional promovida pela Petrobras representa uma aposta que pode lhe garantir bons retornos tanto em termos de lucros futuros quanto no que diz respeito à sua reputação, o que geralmente agrada os acionistas e promove o valor e a sustentabilidade do crescimento da empresa.
Além disso, como já adquiriu competências suficientes na comercialização de combustíveis, a Petrobras se beneficia de recursos estratégicos para tocar adiante seus projetos sem ter de enfrentar a dura aprendizagem de operar na indústria de distribuição de energia. Por fim, como toda empresa que atua num ambiente onde existe concorrência, a Petrobras é incentivada a mudar e procurar posicionar-se estrategicamente em mercados promissores. Sua experiência na área de biocombustíveis representa certamente uma vantagem em relação a outras petrolíferas globais, mas sem investimentos e acúmulo de conhecimentos ela corre o risco de desperdiçar essa posição em proveito de outras empresas como, por exemplo, a BP e a Royal Dutch Shell que planejam investir na produção de etanol no Brasil.
O interesse crescente da Petrobras pelo desenvolvimento dos mercados globais de biocombustíveis não somente se materializa em inovações organizacionais, mas também mediante um conjunto de outros investimentos. Pouco depois da criação da nova subsidiária, por exemplo, a Petrobras assinou com a trading japonesa Mitsui a documentação necessária para a constituição da empresa Participações Nippo Brasileira em Complexos Bioenergéticos. Segundo os parceiros, os objetivos da nova organização estarão focados em novos projetos de bioenergia, em particular na produção de etanol para o mercado japonês e na geração de energia elétrica a partir do bagaço da cana-de-açúcar.
As relações entre a petrolífera brasileira e a trading japonesa estão também na base de dois projetos de construção de alcooldutos. O primeiro, que conta ainda com a participação da construtora brasileira Camargo Correa, pretende transportar 12 milhões de metros cúbicos de etanol por ano entre o Centro-Oeste do país e o litoral paulista. O segundo alcoolduto deve ligar Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, ao porto de Paranaguá, no Paraná. Para a Petrobras, esses investimentos são importantes porque, por um lado, garantirão escala operacional e certo grau de segurança no abastecimento, variáveis estratégicas para se posicionar no mercado internacional de energia. Por outro lado, permitirão maior controle sobre a cadeia produtiva e reforçarão seu poder de barganha junto aos produtores de etanol, criando provavelmente maiores atritos com os usineiros.
No que tange à atuação na cadeia de biodiesel, a Petrobras mostra-se mais cautelosa. Após ter investido sem sucesso no desenvolvimento do H-Bio, um óleo mineral com conteúdo vegetal, a Petrobras foi compulsoriamente colocada na posição de ator principal da cadeia de biodiesel com o lançamento do Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel (PNPB). Tendo em vista os objetivos sociais e regionais do programa e o caráter embrionário da produção de biodiesel no Brasil, a Petrobras necessita aprender a lidar de forma inédita com uma cadeia produtiva pouco estruturada e com atores que não costumam lidar com produção em escala e relações contratuais explícitas.
Ainda que o mecanismo do leilão de compra realizado pela Agência Nacional do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (ANP) tenha garantido oferta além das necessidades imediatas, fazendo com que a implementação da mistura de 2% de biodiesel ao diesel mineral (B2) ocorresse sem problemas específicos, o desenvolvimento do mercado de biodiesel continua gerando algumas incertezas e a Petrobras mostra sinais de insegurança. A empresa, por exemplo, teve de suspender um contrato de fornecimento de biodiesel para a mineradora Vale do Rio Doce, que pretendia usar uma mistura de 20% de biodiesel nas suas locomotivas nos eixos Vitória-Minas e Carajás. A curto prazo, o início das operações das primeiras usinas de biodiesel da estatal, em Candeias (BA), Montes Claros (MG) e Quixadá (CE), permitirá produzir 170 milhões de litros, proporcionando maior segurança em termos de abastecimento e qualidade do produto, já que poderão processar tanto dendê como soja, algodão, girassol, mamona, pinhão manso, amendoim e sebo bovino, beneficiando-se da capacidade tecnológica da empresa. A médio prazo, com a previsão da suspensão do mecanismo dos leilões, a Petrobras está planejando construir uma usina de grande porte capaz de processar 900 milhões de litros por ano a partir de 2012. Segundo fontes do governo, o investimento facilitará a estruturação de toda a cadeia, do fornecimento à distribuição, além de manter o compromisso social do programa com a agricultura familiar e usar combinações de várias oleaginosas para otimizar o custo.
No seu conjunto, essas diferentes iniciativas revelam as intenções da Petrobras de atuar de modo crescente nos mercados de biocombustíveis, transformando-se em uma empresa líder na produção e distribuição global de energia. Esse caminho não será evidente. Existe, por exemplo, uma diferença significativa entre lidar com extração de petróleo e gás e com produção de etanol e biodiesel. Por um lado, a aquisição de competências em tecnologia e engenharia de projeto é uma dimensão estratégica no caso das energias fósseis. Por outro lado, na área de bioenergia um dos desafios mais importantes é aprender a trabalhar e a construir relações de cooperação e confiança com agricultores, usineiros e produtores de biodiesel, que são atores com interesses, práticas e valores distintos e muitas vezes conflitantes.
Os recentes movimentos da Petrobras indicam o desejo de exercer um maior controle sobre a cadeia, sinalizando que não existe, no momento, confiança suficiente para recorrer exclusivamente aos mecanismos de mercado. Além disso, ao aumentar sua participação na área de biocombustíveis, a Petrobras envolve-se nas controvérsias que caracterizam o contexto “quente” assinalado inicialmente, sofrendo provavelmente maiores pressões políticas e de visibilidade internacional. O desenvolvimento do etanol de lignocelulose, ou etanol de segunda geração, obtido a partir de qualquer biomassa, pode representar uma resposta política e tecnologicamente apropriada já que apresenta uma solução ao dilema bioenergia versus alimentos. Porém, no estado tecnológico atual, ela não é ainda uma opção produtiva viável, necessitando de maiores investimentos em pesquisa e desenvolvimento, quer pela rota enzimática quer pelos processos de termoquímicos. A Petrobras, por meio de uma unidade experimental instalada no seu Centro de Pesquisas e Desenvolvimento (Cenpes) e de parcerias com universidades brasileiras, está investindo na tecnologia enzimática. Mas trata-se ainda de uma iniciativa embrionária e sem grandes expectativas no futuro próximo.
O caminho a trilhar pela Petrobras para se posicionar como uma empresa líder na produção e distribuição global de bioenergia não será linear e tranqüilo. No entanto, decisões estão sendo tomadas e teve início uma série de investimentos nesse sentido. O recente prêmio outorgado pela agência de classificação Management & Excellence à Petrobras, como petrolífera mais sustentável, é um fator que deve incentivar a empresa a desenvolver essa estratégia. Outrossim, alguns segmentos do governo brasileiro olham certamente com bons olhos a emergência de um player global capaz de lhe garantir um lugar estratégico na geopolítica mundial. A possibilidade de manter o leadership bioenergético e de se beneficiar das externalidades associadas à construção de conhecimentos e tecnologias é outro fator que interessa provavelmente ao governo, ainda que um aumento das exportações represente um risco a mais para a segurança energética brasileira. Mas se esse movimento significa um passo na direção de um estilo de desenvolvimento ecologicamente responsável, socialmente includente e economicamente dinâmico é uma questão ainda em aberto.
(Georges Flexor, Carta Maior, 16/05/2008)