Em seu primeiro ano como senadora, completado em fevereiro deste ano, Kátia Abreu (DEM-TO) se destacou como uma das principais protagonistas do fim da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) - talvez, o principal tento da oposição neste segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva - ao dar voto contrário à renovação da contribuição, como relatora da matéria. Ela considera que essa foi uma pequena fresta aberta para a reforma tributária.
Quando Kátia Abreu chegou ao Senado, em fevereiro de 2007, já vinha de uma experiência parlamentar que se iniciou em 2000, como deputada federal. Na Câmara, ela foi a primeira mulher a presidir a Frente Parlamentar da Agricultura no Congresso, a chamada Bancada Ruralista, que na época contava com 180 integrantes.
Nesta entrevista, a senadora qualifica como levianas as críticas que surgiram, recentemente, sobre o programa brasileiro de produção de biodiesel, afirmando que o Brasil é a única fronteira agrícola que ainda tem espaço para aumentar sua produção, tendo condições de abastecer toda União Européia com arroz, milho e soja.
O êxito da ampliação da produção brasileira, no entanto, pondera a senadora, depende, no plano externo, de uma redução dos subsídios agrícolas - prática que, segundo ela, tem o custo de US$ 1 bilhão/dia só para a União Européia. Internamente, as medidas dependem do governo federal e do Estado brasileiro. "Da porteira para dentro, nós conseguimos fazer o nosso dever de casa. O grande problema é da porteira pra fora".
A senadora critica a matriz de transporte brasileira, que está invertida, com prioridade para as rodovias, enquanto o mundo todo investe em primeiro lugar em hidrovias, depois em ferrovias e, em terceiro lugar, em estradas. Outro gargalo citado por Kátia Abreu é a insuficiência e a precariedade dos portos brasileiros. No entanto, como relatora da Medida Provisória 412/07, ela confia que irá derrubar uma resolução da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) que está impedido que empresários invistam cerca de US$ 9 bilhões no setor.
Kátia Abreu se mostra, mais uma vez, convicta da importância de o Estado brasileiro cumprir o que ela entende ser sua função principal no jogo econômico, que é a de regular as atividades dos diversos setores. "O Estado brasileiro não tem de proibir, mas regular como fazer", analisa.
Aos 25 anos, a atual senadora ainda cursava o último ano de Psicologia na Universidade Católica de Goiás quando um acidente aéreo tirou-lhe o marido, deixando-a com dois filhos pequenos, de 4 e de 1 ano, e grávida de dois meses. Tornou-se chefe de família e empresária rural. Seis anos depois, Kátia Abreu foi eleita presidente do Sindicato Rural de Gurupi. Desde então, presidiu a Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Tocantins e a Comissão Nacional da Amazônia Legal da Confederação Nacional da Agricultura (CNA). A partir de 2006, passou a ocupar também uma vice-presidência da CNA e quer se eleger presidente da entidade nas eleições marcadas para outubro.
- Estou trabalhando muito para vencer - adianta.
Agência Senado - A tentativa de se relacionar o programa brasileiro de produção do biodiesel com a alta generalizada do preço dos alimentos em todo o mundo não passou de um equívoco ou a senhora detecta, nestes fatos, a ação de concorrentes?
Kátia Abreu - Com certeza! Essa acusação chega a ser irresponsável e ridícula. Dos 850 milhões de hectares de terras agriculturáveis que tem o Brasil, nós temos 0,7% plantado com cana-de-açúcar. Se tivermos um aumento de 30% dessa área, estamos mexendo com nada em vista do que as possibilidades nos permitem. O que incomoda muito é que em todos os estudos que temos em mãos, em nível mundial, o Brasil, realmente, é a única fronteira agrícola que ainda tem espaço para aumentar sua produção. Esse aumento dos preços tem um componente ligado aos biocombustíveis? Tem, mas muito mais em função dos Estados Unidos, que fez uma substituição muito forte com relação ao seu plantio de milho. O petróleo encarece toda a produção e vêm colocar a culpa no etanol, na agroenergia limpa, que faz bem para o planeta? São declarações tão absurdas, que tiram a credibilidade dessas instituições.
Agência Senado - A crise no explosivo setor de alimentos começa a preocupar os governos, em graus distintos, mas independentemente de se tratarem de países ricos ou pobres.
Kátia Abreu - De fato, e há problemas diversos em relação a esta questão. Primeiro, nós tivemos um aumento de consumo nos países emergentes, devido ao aumento da renda das pessoas, conseqüência do crescimento desses países, como o Brasil, a Rússia, a Índia, o Chile e a China, que quase quadruplicou o salário dos trabalhadores. Segundo, houve um encarecimento dos produtos porque nós tivemos um aumento exorbitante do petróleo, que significa fertilizante e transporte, e que chegou a US$ 120 o barril. Terceiro, temos a questão do milho nos Estados Unidos, que ampliaram sua área plantada, deixando de plantar soja e trigo. Além disso, de toda a produção de milho lá, 30% está reservada para a produção do etanol. A conseqüência disso é um prejuízo tanto na alimentação direta do cidadão, que encareceu, como, também, na alimentação animal, já que houve encarecimento das rações que utilizam milho. Quarto, com a crise americana no mercado da construção civil (subprime) muitos desses investidores redirecionaram seus investimentos para as commodities, investiram no mercado futuro, nas bolsas, o que também empurrou os preços para cima. Também tivemos problemas climáticos em algumas regiões, como na Austrália, em países da União Européia, e, principalmente, na Rússia.
Agência Senado - E qual seria o papel reservado ao Brasil, levando-se em conta seu reconhecido potencial agrícola, dentro desse quadro de dificuldades que o setor está sofrendo, em nível mundial?
Kátia Abreu - Como eu disse, o Brasil é o único país do mundo que tem fronteiras a serem abertas para poder alimentar com custos baixos e com alta produtividade. O Brasil hoje produz 140 milhões de toneladas de grãos, utilizando para isso 55 milhões de hectares. Dessas 140 milhões de toneladas, os 190 milhões de brasileiros utilizam 100 milhões, e 40 milhões são exportadas. Nós temos, ainda, mais 100 milhões de hectares em que podemos produzir grãos. Então, se eu tenho 55 milhões de hectares produzindo 140 milhões de toneladas e nós consumimos 100 milhões, se eu passar a produzir mais 100 milhões de hectares, vou produzir três vezes mais do que estava produzindo e vou conseguir alimentar cerca de 350 milhões de pessoas. A União Européia tem uma população total de 450 milhões de habitantes. Temos condições de abastecer a União Européia todinha, de arroz, milho, soja. O Brasil tem 850 milhões de hectares e só 55 milhões de hectares plantados de grãos. Sem falar que nós ainda temos pastagens degradadas e áreas que legalmente podem ser abertas preservando as reservas legais, reservas permanentes.
Agência Senado - E no que se refere à tecnologia agrícola, como está o Brasil?
Kátia Abreu - Além da área disponível, nós ainda poderemos melhorar muito a nossa produtividade. No caso do milho, por exemplo, nós colhemos, numa média nacional, 3.300 kg por hectare, enquanto os Estados Unidos conseguem 6 mil kg por hectare. É o único país que é mais competitivo do que o Brasil. Mas, no caso da soja e do arroz, nós somos muito mais competitivos. Além de termos mais área, ainda temos condições de aumentar nossa produtividade por hectare. Para a produção de cana, a tecnologia brasileira é a melhor do mundo.
Agência Senado - Na sua avaliação quais são os entraves que impedem que a agricultura brasileira atinja esse vigor que a senhora acabou de descrever?
Kátia Abreu - Temos que aproveitar as necessidades alheias. O mercado é isso: falta em algum lugar, o outro abastece. Se nós somos um país promissor, com capacidade para abastecer o mundo, nós temos até a obrigação moral de contribuir. É claro que nisso tem ganho de dinheiro, de capital, mas isso não é crime nenhum. Mas nós temos algumas dificuldades para alcançar esses patamares. Dificuldades, não do produtor rural. Da porteira para dentro, nós conseguimos fazer o nosso dever de casa. O grande problema é da porteira pra fora. Por que, então, não passamos, rapidamente, a produzir mais 100 milhões de hectares de grãos?
Agência Senado - Onde está o gargalo?
Kátia Abreu - São vários. Em primeiríssimo lugar, longe dos demais: logística. Nós não temos transporte que possa ser competitivo. Enquanto o mundo inteiro está investindo, em primeiro lugar, em hidrovias; em segundo lugar, em ferrovias e, terceiro lugar, em rodovias, a nossa matriz de transporte está invertida. Nós estamos investindo quase 80% em rodovias, quase nada em hidrovias e ferrovias. Se você transportar uma tonelada por mil quilômetros de rodovia, você gasta 42 dólares; em ferrovia, serão 26 dólares e, em hidrovia, são 18 dólares. Além disso, é muito menos poluente, porque você gasta menos combustível, e é muito mais democrática. Outro fator: a rodovia não só encarece a produção pelo preço do frete, mas, também, pela manutenção das estradas que, ao longo do tempo, vai comendo dinheiro que poderia estar sendo investido em outras coisas. Importantes as rodovias são, mas como braços para fazer os produtores chegarem às hidrovias e ferrovias. Aqui no Brasil, só esses três rios aqui [a senadora levanta-se e aponta no mapa pendurado na parede os Rios Madeira, Teles Pires/Tapajós e Tocantins] equivalem a três Mississipis. O Rio Mississipi transporta 60% de toda produção americana. [Ela volta a apontar o mapa] Temos hidroelétrica aqui e hidroelétrica aqui, e sem eclusa para passarem os barcos, matando o potencial dos rios. Vão fazer uma eclusa em Tucuruí para atender só ao ferro gusa daqui. Se aqui tivesse eclusa e aqui tivesse eclusa, toda produção do oeste da Bahia, do sul do Piauí, do sul do Pará, do Leste de Mato Grosso podia ser escoada por hidrovia.
Agência Senado - Por trás dessas dificuldades para a implantação de um sistema eficiente de hidrovias e ferrovias haveria o lobby do petróleo?
Kátia Abreu - Eu não acredito que exista lobby do petróleo. Eu acredito que falta planejamento estratégico.
Agência Senado - Mas como explicar o fato de as cidades estarem abarrotadas de carros criando problemas graves de falta de espaço e poluição; do número de acidentes nas estradas brasileiras estar aumentando, crescentemente, além da nossa matriz para o transportes de produtos estar invertida?
Kátia Abreu - Eu resumiria o que você está dizendo com a seguinte frase: é muito mais difícil fazer o bem do que o mal. É difícil explicar o bem. Impressionante!
Agência Senado - Saímos da Economia e fomos para Psicologia..
Kátia Abreu - Exato. É tão difícil fazer o bem! E agora vamos para os custos de construção. Você gasta 55 milhões de dólares por mil quilômetros com hidrovia; 900 milhões, com ferrovia e 300, 500 milhões, com rodovia. É tão óbvio. Eu vou ser relatora da MP 412, que está chegando da Câmara dos Deputados. É um incentivo fiscal para quem investir em portos e eu estou enxertando algumas coisas para ver se consigo melhorar a situação dos portos. O primeiro gargalo são os transportes e o segundo gargalo são os portos. Entre 56 países, o Brasil está no 47º em eficiência portuária. Nós vamos tentar melhorar essa performance. Só para você ter uma idéia, nós pagamos, em 2007, só na área dos fertilizantes importados, US$ 150 milhões de demurrage, que é a multa por hora parada de navio. Você contrata o navio para trazer seu produto, o navio chega no porto e não tem como descarregar. Ele fica lá 30 dias parado. Ele não está nem aí... O taxímetro fica rodando. E você acha que isso é repassado para quem? Repassam para os produtores do Centro-Oeste - Tocantins, Mato Grosso, Goiás -, para o saco de soja, o saco de milho. Por isso é que a comida fica cara. Nos últimos dez anos, nós tivemos um aumento em nossas exportações, em média, de 150%. No mesmo período, tivemos 0,014% do PIB [Produto Interno Bruto] em investimentos em portos. Ou seja, investimento quase zero.
Agência Senado - E o governo acena com alguma mudança para essa situação dos portos?
Kátia Abreu - O PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] prevê investimentos no valor de 1,6 bilhão de Reais em portos, no período de quatro anos. Agora nós temos dez empresas que querem investir 9 bilhões de dólares em portos e a legislação brasileira não deixa porque existe uma "resoluçãozinha" da Antaq. Nós, agora, vamos destruí-la através da aprovação da [MP]412, se Deus quiser. Para proteger o cartel do Porto de Santos, não querem deixar nove empresários, com nome, CPF, endereço, investirem em portos. Eles viram meu trabalho e vieram falar comigo. Aí, dizem: 'Será que essa mulher 'tá' ficando doida?' Não estou, não. Olhe os investimentos do PAC. Olhe o que eles destinam para as hidrovias. Dá vontade de chorar. Por que não deixam os empresários investirem nos portos? Por causa dessa "resoluçãozinha" da Antaq, de outubro de 2005, que diz o seguinte: "Pode pegar seu dinheiro, correr o seu risco e fazer o seu porto. Mas tem uma condição: você só pode fazer o porto se o investimento do porto justificar que você tem carga própria para exportar. Você não pode exportar de terceiros mais do que 5%". Não tem meia dúzia de empresas no país que tenha produção própria para exportar. Tem a Valle do Rio Doce, talvez a Gerdau, talvez a CNN. A resolução contrariou a Lei dos Portos e o artigo 21 da Constituição federal.
Agência Senado - Ainda sobre a crise provocada pela alta nos preços dos alimentos, há informações de que a especulação financeira desviada para o setor de alimentos com a crise do setor imobiliário norte-americano seria responsável por 30% da explosão dos preços, especialmente a Bolsa de Valores de Chicago, onde os fundos de produtos básicos dominam 40% dos contratos. Há como introduzir alguma forma de controle capaz de frear esse tipo de especulação?
Kátia Abreu - Nós temos opções, sim. Nós precisamos é superar alguns gargalos, como a questão dos transportes e dos portos, aqui no Brasil. Porque são o preço e o custo que fazem a renda do produtor. O que é que eu posso fazer com o preço? Nada! É o mercado que regula. Para compensar esse preço, eu só posso mexer no custo. Então, se eu vou por aqui e acho um paredão, eu tenho que procurar outra estrada. Se eu encontro o preço do petróleo e dos fertilizantes alto, eu tenho que dizer ao governo que preciso transportar meu produto por hidrovia; que preciso de portos mais eficientes; que preciso que ele, governo, pare de ser ideológico e deixe aprovar os transgênicos, porque isso vai diminuir o custo de produção; que preciso que ele pare com o cartel dos defensivos agrícolas no país, e que permita o registro de defensivos genéricos como ocorre com medicamento humano. Nós temos condições de plantar. Eu sou extremamente liberal. Eu não sou a favor de controle de mercado, a não ser que se trate de uma calamidade pública e não existam outras alternativas. Mas nós temos alternativas.
Agência Senado - Recentemente, o jornal Financial Times, de Londres, publicou matéria apontando o Brasil como uma solução óbvia, mas esquecida, para a alta global dos preços dos alimentos. Depois de destacar que o país tem enormes reservas de área cultivável não utilizada, diz que o mundo desenvolvido parece míope em relação às oportunidades que o Brasil representa. Na sua avaliação, trata-se de uma perspectiva animadora ou a matéria pode suscitar preocupação para as autoridades brasileiras, já que países como a China se pronunciaram, imediatamente, interessados em comprar terras no Brasil com vistas à produção de biodiesel?
Kátia Abreu - É uma coisa supernatural essa perspectiva desse mercado e assim funciona com qualquer produto. Se está faltando o produto, se o produto está sendo demandado, se o custo de produção está alto, se eu não tenho mais lugar para produzir na minha fábrica, eu vou atrás de outra fábrica. No caso, é a fábrica a céu aberto que é a produção de alimentos. Então, nada mais natural que esses empresários direcionem seus investimentos para os lugares propícios para aquilo que está faltando. Acho muito interessante!
Agência Senado - Nesse caso, qual deveria ser a atitude do governo brasileiro?
Kátia Abreu - O Estado brasileiro não tem que proibir. Ele tem de regular como fazer, colocar normas e limites. A tendência do mercado mundial é sempre o mercado imperfeito. São poucos produzindo muito. É o contrário da agricultura. Nós somos um mercado perfeito. Nós somos muitos produzindo tudo. Agora, você pega fertilizantes, é meia dúzia de produtores. Com os defensivos agrícolas e com o petróleo, acontece a mesma coisa. Então nós temos de criar a regulação para proteger o consumidor desses oligopólios, para que eles não se transformem em cartéis. Oligopólio não tem tanta importância. As pessoas são contra os oligopólios. Eu não. Eu só não quero que virem cartéis. Você pode ter uma única empresa em um país - pois oligopólio é isso, é quando dois, três ou um produz tudo - desde que não se aproveite dessa situação e trabalhe em cima do seu custo de produção. Se o meu custo foi 50 e eu quero ter um lucro razoável, em torno de 15%, isso é lucratividade em cima do custo. Mas o que fazem os cartéis? Têm um custo de 50 e colocam mais 50% de lucro, porque não têm nenhum concorrente. O Estado tem que regular. Agora, proibir exportação, proibir plantio de cana para obter etanol, isso não. O mercado se auto-regula.
Agência Senado - Segundo dados da FAO, no último ano, o preço dos cereais - especialmente o trigo - aumentou 130%; o do arroz, 74%; o da soja, 87%; e do milho, 53%. A reunião realizada no final de abril passado, na Suiça, entre as agencias e organismos da ONU - com a presença do secretário-geral, Ban Ki-moon, resultou em um apelo aos doadores (países ricos) do Programam Mundial de Alimentos da ONU para que aumentassem suas doações, previstas, inicialmente, para U$ 500 milhões. A senhora considera essa estratégia eficaz, ou as medidas deveriam ser outras?
Kátia Abreu - Eu acho que não deviam doar nada para ninguém, não; deviam acabar com o subsídio. Quando eles acabarem com o subsídio, não agüentarão competir conosco, com a Argentina, com o Uruguai e com vários países africanos. Agora, com um subsídio desses... Então, não precisa nos dar nada, não. Se apenas parassem os subsídios do primeiro mundo, que tiram os demais do ramo, poderíamos melhorar a nossa produtividade. Eles gastam 1 bilhão de dólares por dia com subsídios. O porta-voz da ONU - que eu não me lembro o nome e faço questão de não lembrar - disse que é um crime contra a Humanidade o Brasil trocar a plantação de alimentos por produtos que geram o etanol. Nunca vi nenhum deles reclamar, por exemplo, que uma vaca européia "ganha", por dia, três euros e meio. Enquanto isso, tem africano que não ganha um euro para comer, por dia. E eu não os vejo reclamando do preço do petróleo.
Agência Senado - Com o tema da segurança alimentar chegando ao topo das preocupações do planeta, superando até mesmo as inquietações internacionais com os altos preços do petróleo, cujo barril passou da marca dos U$ 120, qual é a sua expectativa sobre os debates previstos para o encerramento da Rodada de Doha? Há informações de que o chanceler Celso Amorim acenou com a possibilidade de o Itamaraty aceitar uma abertura negociada do mercado brasileiro às manufaturas estrangeiras, em troca de uma redução substancial dos subsídios agrícolas pagos pela comunidade européia e Estados Unidos. Essa seria uma boa saída para o impasse de Doha?
Kátia Abreu - Uma negociação é igual a um projeto de lei: você pode fazer um projeto de lei que una os 81 senadores e ele não satisfazer o povo brasileiro. Então, na negociação bilateral, tem sempre aquele que perde e aquele que ganha. Pode haver compensações por um momento, mas elas não podem ser permanentes e constantes. A sociedade não tem obrigação de financiar a incompetência de ninguém. Se você faz um acordo bilateral que prejudica as categorias A e B e beneficia a N, o que é que eu faço com essas categorias que foram prejudicadas? Concordo que inicialmente nós podemos dar um apoio para que elas se restabelecerem, mas isso não pode durar parar sempre. Se elas não conseguirem ficar competitivas, têm de sair do ramo e nós temos que comprar de quem faz mais barato. Então, quando tirarem o subsídio ao açúcar da beterraba da Europa, que é monstruoso, vão ver que comprar açúcar brasileiro fica quase de graça. Então, por que eles não compram açúcar de nós, e nós compramos queijo, vinho deles? Cada um produz aquilo que pode. Claro que tem um mínimo de segurança alimentar, já que não pode faltar alimento. Nós temos, inclusive, na cláusula de minimis, que permite que você subsidie até 10% do que você produz no país. Não tem problema; dá para subsidiar porque tem alguns fatores inesperados, que precisam de compensações. Mas temos de botar na cabeça que ou ficamos competitivos ou temos de comprar de quem vende mais barato. Eu não posso impor a uma mãe de família, a uma dona-de-casa, que ela compre uma camiseta nacional para seu filho se a camiseta feita na China é 50% mais barata. O governo brasileiro tem de descobrir o que tem de errado para que o empresário brasileiro possa, também, produzir com o preço da China. Agora, não posso obrigar a dona-de-casa ou o trabalhador a comprar mais caro porque o produto é brasileiro e proibir importação. Isso sem falarmos que existem questões de segurança nacional. O arroz é um alimento básico para o povo brasileiro, assim como o trigo e o milho. A soja é produto muito mais para exportação do que para consumo interno. Mas isso não significa que os produtos básicos tenham de ser protegidos. Precisam ter políticas mais favoráveis, sem exagero, obedecendo a cláusula de minimis; um limite suportável de subsídio, pois isso é normal.
Agência Senado - E quanto à proposta do chanceler Celso Amorim, de o Brasil abrir seu mercado para os produtos manufaturados e, em contrapartida, os europeus e americanos reduzirem, substancialmente, os subsídios pagos aos seus produtos agrícolas?
Kátia Abreu - Eu acho importante que isso aconteça. Eu acredito que tenha que haver perdas e ganhos. Então, o que o Brasil sabe fazer de melhor? Eu não vou contrariar minha vocação: se eu me acho competente como psicóloga, para que eu vou fazer Engenharia? Se o Brasil é competitivo na produção de alimentos - ele é imbatível! - para que vai brigar para produzir aquilo em que não tem competência? Nós temos que trabalhar para fortalecer a indústria nacional - que é importantíssima para o país - importando bens de capital e tecnologia, qualificando a mão-de-obra e criando linhas de financiamentos, se for preciso, sem juro nenhum. Bens de capital deixam a empresa nacional competitiva. Você vai perder em não cobrar juros no empréstimo, mas você vai ganhar muito mais porque ela vai produzir muito mais e isso significa impostos que o Estado recebe. Agora, nós temos que expandir o nosso mercado, porque nós podemos produzir muito mais do que produzimos hoje, para exportar. Não adianta a gente produzir muito alimento e depois não ter para onde mandar. Esses mercados têm que ser abertos, é um objetivo nosso.
Agência Senado - Qual é sua expectativa quanto à próxima reunião da Rodada de Doha, que deverá acontecer no próximo dia 19.
Kátia Abreu - Sinceramente, não estou acompanhando isso de perto. A Comissão de Assuntos Internacionais da Confederação Nacional da Agricultura (CNA) é que está acompanhando essas negociações de Doha, e eu não sei quais são as reais perspectivas. Mas, se o ministro Celso Amorim está pretendendo fazer algumas concessões para que a gente possa exportar mais alimentos... só se não tiver inteligência. Qual é a principal demanda do mundo hoje? Não é alimento? A África também pode dar uma boa contribuição na produção de alimento. Eles têm clima, terra, mas, por enquanto, ainda não conseguem concorrer com os subsídios que os produtos europeus, americanos, canadenses, japoneses recebem, porque é um US$ 1 bilhão por dia. Um dia eu perguntei para o ex-presidente da confederação nacional da agricultura dos Estados Unidos: "Você agricultores são tão poucos - 7% da população americana - e como vocês têm tanta força para conseguir tanto subsídio?" Ele me respondeu: "Somos poucos, mas somos decisivos. As eleições americanas são muito equilibradas, então nós fazemos a diferença". E aqui nós somos 25% no campo e não fazemos diferença nenhuma.
Agência Senado - Qual a relação que se pode estabelecer entre o desempenho da agricultura brasileira e o projeto de reforma agrária do governo?
Kátia Abreu - Eu não vejo relação. Nós temos muitas pequenas propriedades que são produtivas em Santa Catarina, no Rio Grande do Sul, no Paraná, que são modelos de aplicação de tecnologia num nível bastante avançado, assim como também na formação administrativa. São produtores que, na sua grande maioria, aproveitam os nichos de mercado e fazem a diferença. Como o produtor francês, que passa o conhecimento de pai para filho, e só eles é que sabem fazer aquele tipo de queijo, aquele vinho, que são coisas artesanais, especialíssimas. Agora, no mundo inteiro, fora essas especialidade, esses nichos de mercado, a pequena propriedade só sobrevive com ajuda do subsídio.
Agência Senado - Por que essa dependência?
Kátia Abreu - A pequena propriedade, com raras exceções, tem dificuldade para a produção em escala. Então, as grandes propriedades que produzem em escala podem ter uma produtividade menor e conseguir sobreviver. Eu posso plantar mil hectares e ter produtividade de 2%, que vou conseguir sustentar a minha família, mas, com uma produtividade de 2% em 100 hectares, eu não consigo. Então, a produção em escala é uma coisa importante.
Agência Senado - E quanto à reforma agrária, especificamente?
Kátia Abreu - Eu acho uma judiação esses assentamentos e o que fazem com essas pessoas. Não existe uma reforma agrária. Esses movimentos sociais perderam o rumo, perderam o objetivo, perderam o foco. O foco deles é outro: é o comunismo, uma coisa do passado; é transformar o Brasil em Cuba. Isso é tão atrasado que eu nem discuto, nem faz parte do meu discurso. Em meu estado eu sou votada em grande parte desses assentamentos.
Agência Senado - No que consiste a principal falha dessa política agrária?
Kátia Abreu - Na cabeça dos governantes - todos, geralmente, de formação urbana -, eles acham que um pedaço de terra é o suficiente. Na realidade, quando eles ganham a terra, em vez de os problemas estarem resolvidos é aí que eles começam. Na hora em que eles ganham um pedaço de terra, têm um sentimento terno, benéfico. Quem é que não quer um pedaço de terra? O direito de propriedade está no DNA do povo brasileiro de todas as classes - pobres, médios e ricos -, é uma coisa forte no Brasil, tanto que está entre as cláusulas pétreas da Constituição federal. Só que, resolvido aquele problema cultural, emocional, ideológico, começam todos os outros problemas: técnicos, de mercado, de produtividade, de escala, de mão-de-obra, enfim, é uma dificuldade tremenda. Demoram anos para colocar energia nas casas. Eu conheço assentamento no Tocantins que ficou três anos sem estrada. Não tinha como sair de lá. São seres humanos, jogados de qualquer jeito no meio do mato, sem assistência técnica, sem nenhuma infra-estrutura, formando favelas rurais. Lembro de uma ocasião em que visitei um assentamento chamado Manchete, em Marianópolis, com 450 famílias. Um pequeno proprietário me disse: "Veio aqui um técnico agrícola e disse que eu tinha de criar galinha e que eu não podia mudar. Só que eu não sei mexer com isso não." Eu, então, perguntei o que ele sabia fazer. Ele disse que sabia plantar mandioca e fazer farinha. Eu falei pra ele matar as galinhas, vender tudo e ir plantar mandioca. Quer dizer, além de dar uma assistência técnica mínima, ainda fazem tudo errado.
Agência Senado - E qual seria a saída para a pequena propriedade?
Kátia Abreu - Nós gostaríamos que a pequena propriedade fosse inserida no agronegócio e não que ficasse à margem do agronegócio. Se fizéssemos uma moratória com os assentamentos que existem hoje, e não criássemos mais nenhum, mas, em compensação, equipássemos todos eles com infra-estrutura e déssemos assistência técnica... É assim que o Primeiro Mundo faz. O pequeno proprietário tem de ser subsidiado. Já que vou fazer um assentamento, vou fazer da maneira correta. Fazer de qualquer jeito só para colocar na imprensa que assentou não sei quantas famílias? Você acha que assentou, mas, na realidade, empobreceu aquelas famílias, deixando-as sem assistência médica e onerando as pequenas prefeituras locais, criando grandes dificuldades para o município. Porque essas pessoas passam a ser cidadãs do município e a prefeitura não tem dinheiro para dar a assistência devida, não tem maquinaria para fazer estradas para eles, nem tem produtos para fornecer para eles plantarem. Se implementassem todos os assentamentos de forma correta, pusessem toda a infra-estrutura e, principalmente, disponibilizassem a assistência técnica, eles poderiam ser inseridos no agronegócio, como já o foram os pequenos produtores do sul do país.
Agência Senado - Gostaria de lhe pedir que falasse sobre sua vida e sua formação. Como chegou à vida pública?
Kátia Abreu - É uma longa história. Eu fiquei viúva aos 25 anos de idade. Meu marido faleceu num acidente aéreo e nos deixou uma propriedade rural em Gurupi, que na época era Goiás. Eu estava no último ano de Psicologia. Pretendia ser uma grande psicanalista. E aí eu tive que tocar a fazenda. Tinha um filho de 4 anos, outro de 1 ano e estava grávida de dois meses. Um ano depois que meu marido morreu foi criado o estado do Tocantins, em 1988. Aí eu fui para a fazenda e comecei a trabalhar pra criar os meninos. Não sabia nada de campo, mas me dediquei e fui aprender tudo. Seis anos depois eu era a presidente do Sindicato Rural da cidade de Gurupi, que era, na época, a segunda maior cidade do estado, porque ainda não havia Palmas. Dois anos depois fui eleita presidente da Federação da Agricultura do Estado de Goiás. Fui a primeira mulher no Brasil a ser presidente de sindicato e fui a primeira e única a presidir uma federação estadual de agricultura. Hoje eu sou vice-presidente da CNA. Agora em outubro nós temos eleições e eu sou candidata a presidente. Estou trabalhando muito para vencer.
Agência Senado - Quanto às suas atividades no Senado, o que a senhora destacaria?
Kátia Abreu - O Senado é uma escola maravilhosa, em que você não pode ser dar ao luxo de se dedicar a uma área específica. Como somos poucos senadores - 81, apenas - e muitos os assuntos, aqui nós temos que ser mais plurais: temos de tratar de impostos, reforma tributária, logística, câncer de mama, violência contra a criança, agronegócios, exportação e importação, gasto público, temos de nos esforçar para entender um pouco de cada coisa. Essa tem sido uma experiência muito boa. No meu primeiro ano de mandato no Senado, a luta maior foi o fim da CPMF, e eu fui a relatora da proposta. Considero que termos derrubado a CPMF foi uma pequena fresta, uma janela para a reforma tributária. A CPMF é apenas o mínimo que nós tínhamos que devolver ao Brasil. Pretendemos devolver mais, diminuir mais os impostos, para que esses recursos possam ir para o melhor cofre que existe, que é o bolso do brasileiro. É o dinheiro mais bem guardado.
(Por Jorge Frederico, Agência Senado, 15/05/2008)