Normalmente, nesta época do ano, os agricultores do delta sul de Mianmar estariam drenando as suas terras para plantio de arroz, arando os campos com os seus búfalos e se preparando para plantar novas sementes para a colheita do outono. Mas há duas semanas o ciclone Nargis acabou com tudo isso. O momento em que a tempestade se abateu sobre o país não poderia ter sido pior. Dezenas de milhares de famílias de agricultores perderam os animais de trabalho, os estoques de arroz e as sementes. Agora a colheita também passou a ser incerta.
"Creio que perderemos a colheita", afirma Hajkan Tongul, vice-diretor do Programa Mundial de Alimentação em Mianmar. "O tempo é curto". Tongul e outros especialistas em auxílio internacional que têm longa experiência em Mianmar temem que o ciclone tenha interrompido o ciclo sazonal da vida no delta do Rio Irrawady, que já foi uma das regiões mais férteis e importantes para o plantio de arroz.
"Os agricultores do delta perderam 149 mil búfalos", revela Brian Agland, diretor da organização humanitária CARE em Mianmar. "Será impossível substituir esses animais a tempo para o período da aração da terra. Provavelmente a Care e outros grupos de auxílio comprarão aquilo que os moradores locais chamam de "búfalos de ferro" -pequenos tratores vermelhos feitos na China, que custam US$ 1.000 a unidade.
Remessas substanciais de sementes novas de arroz também são necessárias. Segundo Tongul, a fonte provável dessas sementes será a Tailândia. Tradicionalmente, os agricultores do delta usam sementes do arroz colhido no ano anterior. Novos animais de criação -porcos, patos, galinhas e alevinos de peixes, além dos búfalos- e sementes são prioridades para os grupos de auxílio humanitário que trabalham com desenvolvimento rural no delta.
"O ciclo agrícola é bastante crítico", afirmou Agland na quinta-feira (15). "Precisamos evitar que haja um período de fome, e contamos com pouquíssimo tempo". Funcionários dessas organizações continuam manifestando preocupação quanto à relutância do governo em permitir a assistência externa. "Eles estão restringindo as nossas ações e escondendo os fatos, e não permitem que importemos quase nada", acusa Tongul. "Preciso de 50 mil toneladas de arroz para alimentar a população afetada durante os próximos seis meses. No momento só tenho 3.000 toneladas. Isso é algo que não me deixa dormir à noite".
Na quinta-feira, a contagem de mortos do governo aumentou em quase 5.000, fazendo com que o número total de mortes devido ao ciclone chegasse a 43 mil, além das 27.838 pessoas que estão desaparecidas. A Federação Internacional das Sociedades Cruz Vermelha e Crescente Vermelho calculou que o número de mortos passou de 68.8233 para 127.990. As agências da Organização das Nações Unidas (ONU) e outros grupos de ajuda internacional realizaram uma reunião de emergência a portas fechadas na tarde da quinta-feira a fim de elaborar estratégias para fazer com que os agricultores retornem às suas terras e ao trabalho.
Muitas famílias buscaram abrigo em mosteiros budistas, em prédios velhos e em escolas, e o governo tem transportado esses desabrigados de caminhão para campos de refugiados administrados pelo exército. Os campos de refugiados ficam bem longe das terras dos agricultores. Mas as agências de auxílio dizem que os agricultores precisam retornar para o que quer que tenha restado das suas propriedades a fim de reconstruir as casas -mesmo que sejam moradias rudimentares-, drenar os campos alagados e continuar arando e semeando.
Segundo essas agências, a menos que os agricultores flagelados possam voltar ao trabalho, o país necessitará de mais 50 mil toneladas de arroz daqui a seis meses. O Rio Yangon, que foi bloqueado por embarcações afundadas e destroços da tempestade, foi reaberto para a navegação na tarde da quinta-feira, o que se constituiu em um fato encorajador para os funcionários das agências de auxílio humanitário. Isso significa que remessas maiores -especialmente de arroz- podem agora ser transportadas por barco até o porto de Yangon, caso o governo reduza as restrições às importações.
O Programa Mundial de Alimentos remeteu milhares de biscoitos energéticos ao sul do país, mas, de acordo com Tongul, a agência ouviu falar que parte da remessa foi roubada e substituída por biscoitos baratos e de pouco valor nutritivo. Ele disse que a ONU deu início a uma investigação. Na quinta-feira a agência de notícias "Associated Press" informou que a junta militar de Mianmar advertiu, em uma transmissão por uma rádio estatal, que ações legais serão tomadas contra pessoas que comercializarem, estocarem ou fizerem mal uso da ajuda internacional destinada aos sobreviventes do ciclone.
A Junta anunciou também a aprovação de uma nova constituição em um referendo realizado apenas uma semana após o ciclone. A data marcada para o plebiscito foi mantida, embora isso tenha atrasado a votação nas áreas mais gravemente atingidas. A constituição, que tem como objetivo perpetuar o regime militar, foi aprovada em 10 de maio com mais de 90% dos votos, de acordo com as autoridades.
A área litorânea e Yangon deverão votar em 24 de maio, mas os analistas dizem que os votos no "sim" já ultrapassaram o número necessário para a aprovação final da nova carta constitucional. Fortes chuvas continuavam caindo em Yangon e no delta na quinta-feira, complicando ainda mais a remessa de suprimentos, já que pontes e estradas foram destruídas. Até o momento o principal meio de transporte do auxílio da região de Yangon para o delta tem sido o caminhão, e grupos como Save the Children, World Vision e CARE tiveram algum sucesso na tarefa de encaminhar comida para o sul do país.
Porém, muitas vilas e aldeias no interior do delta ainda estão completamente isoladas, e é provável que o número de mortos aumente drasticamente assim que seja avaliada a dimensão do desastre nessas áreas. "Temos usado barcos pequenos e motocicletas para chegar a esses locais", disse Agland. "E estamos encontrando vilas que tinham 200 habitantes, e nas quais atualmente só há de cinco a dez pessoas". Em vez de contar separadamente o número de mortos e o de feridos, o governo e alguns grupos de auxílio humanitário começaram a aglutinar as duas categorias.
Mas Agland chamou atenção para o fato de que desaparecido não significa necessariamente morto. "Por exemplo, houve inúmeros relatos de crianças desaparecidas, mas também estamos descobrindo grupos de crianças que estão perambulando por conta própria nas áreas rurais que foram atingidas pelo ciclone", disse ele. "O número de mortos é muito elevado, e acho que nunca saberemos quantas pessoas exatamente morreram. A nossa prioridade agora é impedir que morra mais gente".
(The New York Times, Tradução: UOL, 16/05/2008)