Acho que o ciclone extratropical, que inundou Porto Alegre de água durante o feriadão, provocou um efeito corrosivo no meu raciocínio. De repente, dezenas de informações se misturam, assuntos variados, mas com o mesmo pano de fundo. Das últimas reações internacionais à crise dos preços nos alimentos, onde comparo declarações. O primeiro-ministro japonês, Yasuo Fukuda, falando do “desafio global sério e iminente.... a ameaça da fome e destruição que está crescendo e os altos preços também provocam inquietação social”. Quer levar o tema para a próxima reunião do G-8. Os países mais poderosos, se reunirão em nova cúpula no mês de julho.
Talvez lá, os representantes norte-americanos relatem os seus problemas internos, como aumento semanal na gasolina, ameaças de recessão ou a diminuição de 75% de doações nos bancos de alimentos. É muito difícil ter informações sobre o programa de auxílio alimentação no país mais rico do mundo. São 28 milhões de pessoas que recebem selos alimentares. A rede de bancos de alimentos, fornece comida a programas de 30 mil igrejas, é organizada na “America’s Second Harvest” (Segunda Colheita da América).
O número de pessoas aumentou 25% no último ano, disse a coordenadora da rede, ao jornal Financial Times – matéria traduzida pela Folha de São Paulo em 28 de abril. As doações diminuíram porque antes dos aumentos nas commodities o governo distribuía grãos, para equilibrar os preços. Agora com o aumento no custo do frete e também dos alimentos a situação se inverteu. O mesmo processo ocorreu na África, onde países como a Zâmbia fornecem comida a 10% da população – cerca de 1 milhão de pessoas. Os orçamentos dos programas de assistência da ONU estouraram. Como se não fosse previsível. Desde o ano 2000 os estoques mundiais de alimentos têm diminuído, na razão de 585 milhões (2000) para 314 milhões, em 2007. A produção da comida no ano passado chegou 2,084 bilhões de toneladas, enquanto o consumo atingiu 2,105 bilhões de toneladas. No ano anterior o desequilíbrio já se expressava nas estatísticas: 1,991 bilhões de toneladas produzidas e um consumo de 2,044 bilhões de toneladas.
Controle especulativoEsta é uma descoberta inútil. Mais ou menos como falar em “revolução verde” na África, onde se pratica uma agricultura de subsistência, em terras comunitárias, dependendo muitas vezes de irrigação. Querer montar, repentinamente, um esquemão moderno, com um pacote de químicos, sementes transgênicas e todo o aparato usado na agricultura industrial, chega a soar como uma teoria hipócrita. O mundo globalizado não se interessa por caridades ou causas sociais. Vislumbra o lucro, principalmente a curto prazo. Por isso mesmo, 40% das cotações futuras das commodities, estão no controle de fundos especulativos, que “migraram”, como diz o economês , das posições falidas de “subprime” (empréstimos que apodreceram), para um novo setor. A denúncia foi feita numa publicação do The Wall Street Journal chamada “Barrons”, no dia 31 de março deste ano.
Enquanto isso, no Brasil, passamos por diversos estágios, da euforia ao radicalismo das autoridades mundiais, criticando a política brasileira de apoio aos combustíveis vegetais. Até parece que o setor privado está preocupado com isso.
São 150 usinas do chamado “biodiesel” em implantação no país, a maior parte do Mato Grosso (46), 18 delas apresentadas em projetos ao governo estadual, que contará com incentivos fiscais. Nada mais natural, na terra do maior plantador individual de soja do mundo – Blairo Maggi, o governador. Serão mais de 800 milhões de litros de capacidade instalada. Este ano, a Agência Nacional de Petróleo, órgão regulador do setor, realizará quatro leilões de combustível com óleos vegetais. Totalizando 660 milhões de litros. Destaquei os números de uma publicação chamada Anuário Brasileiro de Agroenergia 2008, editada pela Gazeta do Sul, em português e inglês.
Números não fechamFiz e refiz cálculos. De um lado a ANP anuncia uma produção de 402 milhões de litros em 2007. Todos os participantes da cadeia produtiva, incluindo a associação dos distribuidores de combustíveis, afirmam que 90% do “biodiesel” é produzido com óleo de soja, por motivos fáceis de imaginar: maior produção, rede de distribuição, esmagamento, política das empresas, histórico, pesquisa, entre outras coisas. Mas ao mesmo tempo, um diretor do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), Arnaldo Campos divulga os números dos agricultores familiares. Eles produziram 214,2 milhões de litros, algo como 60% do total industrializado pelas usinas. Os números não fecham. Se a produção foi de 402 milhões, conforme a ANP, 60% não são 214 milhões, mas cerca de 241 milhões, arredondados. Ainda segundo o MDA, no números do Anuário Brasileiro de Agroenergia, cerca de 49% do “biodiesel com origem na agricultura familiar”, foi fabricado com óleo de mamona. Isso significa uma produção de 104 milhões de litros. Tem alguém mentindo nesta história. Se 90% da produção de “biodiesel” foi produzida com soja, num total de 402 milhões de litros, sobram 10% para outras oleaginosas, ou outras fontes. 10% de 402 milhões não são 104 milhões.
Essa é só uma demonstração do açodamento, delírio, como costumo chamar, desta epopéia ao contrário, que virou a corrida pelos combustíveis vegetais. De um lado, grupos internacionais, como a Agrenco, de George Soros, montando usinas no Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Paraná. De outro, o discurso da agricultura familiar, do selo social, já entregue a 27 usinas. O próprio diretor da Embrapa Agroenergia, criada no embalo desta corrida, Frederico Durães, já anunciou que tirando a soja, levará 10 anos para esquematizar o pacote tecnológico das outras oleaginosas, como mamona, girassol, pinhão manso, ou cambre , uma nova planta introduzida no país. Pinhão manso é natural do semi-árido e não é comestível, mas o custo de produção é barato, comparado com as outras. E produz durante vários anos. Na mesma pesquisa da ANP sobre os montantes de óleo industrializado, o primeiro estado que figura na lista é Goiás. Sinceramente não conheço a tradição de agricultura familiar dos goianos. Em segundo é a Bahia, em função da produção da região de Barreiras, dominada pela agricultura industrial dos sulistas. Em terceiro é o Ceará e em quarto o RS, que tem tradição nas lavouras de minifundiários.
Sebo combustívelSem contar a soja, advinhem qual a segunda matéria-prima usada na fabricação do “biodiesel”? Sebo bovino, aliás, cuja tonelada subiu de R$550,00 reais em 2006 para R$ 1.705,00 em 2007. O Grupo Bertin, maior empresa frigorífica do país – na questão do aproveitamento industrial do boi -, com sede em Lins (SP), inaugurou uma usina no ano passado, com capacidade para 110 milhões de litros. A do George Soros no MT terá capacidade de 180 milhões de litros. Um detalhe muito interessante, no esquema burocrático do “biodiesel”: as usinas assinam contratos individuais com cada produtor. Em suma, a partir de julho deste ano, o B3 entrará em vigor. Ou seja, 3% de óleo vegetal, ou de sebo, ou de fritura, no diesel fóssil. A capacidade das usinas vai superar a necessidade, calculada em torno de 800 milhões de litros. Serão mais de 2 milhões de litros. No próximo ano, quando estiverem funcionando as 150 plantas em implantação, a capacidade industrial vai passar dos 3 bilhões de litros. Então, os produtores, não os da agricultura familiar, começaram a fazer campanha pelo B5 (5% na mistura), que entraria em vigor apenas em 2013.
Minha compilação depressiva terminou com duas outras informações: em 36 anos, a Comissão Pastoral da Terra registrou a morte de 800 pessoas por conflitos na zona rural. Apenas um mandante está preso (estava, porque a justiça do Pará absolveu Vitalmiro Moura, vulgo Bida, e provocou um escândalo internacional). Em 10 anos de legislação ambiental, marco deste ano, de 400 processos julgados, em 20% houve condenação. A pena: cestas básicas. No final de abril, mais um agricultor foi assassinado em Tucuruí, a terra da segunda maior hidrelétrica do país. Madeireiros entram no assentamento e escolhem as toras. Quem se recusa a participar do esquema, ou denúncia é morto. A lei na Amazônia continua a mesma: da bala. Gostaria de sugerir ao governo federal, que pensasse na idéia de fazer o PAC da pistolagem. Pelo menos, contra ela.
(Por Najar Tubino,
Jornal do Meio Ambiente, 13/5/2008)