Há bem pouco não se sabia direito o que era crédito de carbono. Hoje a noção é corrente, carbono é commodity, e o crédito, moeda internacional. No final do mês, em Bonn, na Alemanha, deve surgir no cenário mundial um novo dispositivo com este peso. A sigla ABS encerra uma discussão que irá influir no manejo da diversidade brasileira: quem vai ter acesso, por exemplo, aos recursos da Amazônia, e como irá repartir os ganhos do que criar a partir de sementes da floresta ou do conhecimento indígena. Este debate complexo é uma nova briga a opor países ricos e pobres.
Nesta trincheira há duas siglas, CDB e ABS, que não têm nada a ver com mercado financeiro ou freios de carro. CDB é a sigla em português da Convenção sobre Diversidade Biológica, o principal marco internacional sobre biodiversidade. ABS se refere a Access and Benefit Sharing, literalmente acesso e repartição de benefícios, algo que desejam todos que têm interesses em florestas e mares, mas que ninguém sabe ao certo como fazer. Trata-se de um conjunto de regras que os países que assinaram a Convenção têm discutido nos últimos anos. A idéia é aparar as arestas para que algo comece a sair do forno.
O assunto é tão fundamental para o manejo da Amazônia quanto polêmico. Os países desenvolvidos, com forte indústria farmacêutica, de cosméticos e biotecnologia, brigam pelo acesso aos recursos naturais, intuindo que ali há muito o que descobrir, pesquisar e lucrar. Não é um chute no escuro - fala-se que hoje 75% dos princípios ativos dos remédios já têm origem na biodiversidade. Do outro lado, é nos países pobres que costumam estar os recursos naturais do mundo, mas sem pesquisa ou tecnologia tímida. Esta turma, evidentemente, está interessada na segunda metade da sigla, a que fala na repartição dos ganhos.
De 19 a 30 de maio, em Bonn, cinco mil pessoas vão discutir os avanços da Convenção no encontro dos 190 países que assinam a CDB - Estados Unidos e Somália não fazem parte do clube. Os EUA pelos motivos de sempre e por alguns particulares - a discussão de ABS, por exemplo, bate de frente com a proteção de patentes. A CoP-9, na Alemanha, será um mega encontro de diplomatas, ministros, cientistas e ambientalistas, nos moldes da conferência do Clima em Bali, em dezembro. As Convenções do Clima e da Biodiversidade são gêmeas, ambas surgiram na ECO-92, no Rio. A do Clima ganhou fama com a urgência ao combate ao efeito estufa, abriga o Protocolo de Kyoto e tem recursos do mercado de carbono. A da Biodiversidade opera com uma agenda vasta que alcança mares e florestas, aves e bactérias, biocombustíveis e transgênicos - mas continua sendo a prima pobre.
"A discussão sempre foi quem vai pagar a conta", resume Pedro Leitão, secretário-geral do Fundo Brasileiro para a Biodiversidade, o Funbio. Criado em 1995 como braço financeiro da CDB no Brasil, o fundo tem por missão aportar recursos para a conservação da biodiversidade. Qual o tamanho desta conta, ninguém sabe ao certo. Alguns números apontam para US$ 60 bilhões ao ano para preservar a vida na terra e no mar. À época da ECO-92 previu-se o fortalecimento de um mecanismo financeiro, o GEF, para que a Convenção tivesse recursos que colocassem em prática o que se debatia em plenário. A intenção dos países ricos era, em 10 anos, lançar US$ 77 bilhões no GEF. Seria assim que os pobres preservariam e se desenvolveriam de forma sustentável.
Não funcionou. O esquema voluntário dos países industrializados ficou na vontade. O GEF financiou 1800 projetos em 140 países, mas só recebeu 10% da ambição inicial, US$ 7,7 bilhões. "O compromisso financeiro ficou nas palavras", diz Leitão. "A novidade agora é a CDB vir a ser custeada por recursos privados", aposta. "O dinheiro público está diminuindo e há uma fonte importante aparecendo no cenário, mas é privada."
O Brasil vai a Bonn sob pressão pela tendência em elevação do desmatamento na Amazônia e a polêmica em torno dos biocombustíveis. Mas vai pronto ao contra-ataque. O País é o responsável pela criação de 40% das áreas protegidas terrestres criadas em todo o mundo nos últimos cinco anos. Muitos, é verdade, são ainda parques de papel, mas sua criação já afasta grileiros e especuladores. O Arpa, o Programa Áreas Protegidas da Amazônia, quer proteger pelo menos 50 milhões de hectares na região, criando um mosaico de unidades de conservação e de uso sustentável. Serão US$ 400 milhões na região até 2012, no programa do Ministério do Meio Ambiente, com apoio do GEF, do Banco Mundial, do KfW (o banco de cooperação alemão) e o WWF-Brasil. É um sinal positivo do esforço que o país tem feito para reduzir as atuais taxas de perda de biodiversidade - que todos os países concordaram em conter vigorosamente até 2010. Evidentemente isso não tem sido conseguido, nem pelo Brasil, nem por ninguém.
"Vai ser muito difícil alcançar as metas", reconhece Bráulio Dias, diretor do Departamento de Conservação da Biodiversidade do MMA. "Todos os fatores que contribuem para a perda estão se ampliando - a população mundial cresce, o consumo aumenta, tem as mudanças climáticas, a globalização facilita a introdução de espécies exóticas invasoras. As previsões dos cientistas não são otimistas."
Preservar, aqui, não é só poupar da extinção bichinhos fofinhos. A tendência da agricultura moderna é usar poucas variedades e concentrar-se nas mais produtivas. Um efeito disto é que se perde a diversidade genética das espécies. Os parentes silvestres, que estão na natureza, podem ter respostas fundamentais para novas situações climáticas, ambientes mais áridos e salinos, por exemplo. "Há uma crise de arroz no mundo, parte do problema é a ferrugem que está destruindo plantações na Ásia", cita Dias, do MMA. "A solução para isso é desenvolver variedades resistentes. Mas isso só pode ser feito se ainda existir algo que tenha um gene para resistir à doença."
Esta é a base da discussão do ABS. O que está sendo negociado é um regime internacional que defina o acesso e a repartição dos benefícios, e os problemas já começam aí. EUA, Canadá e Austrália estão entre os que brecam o processo porque não querem regra nenhuma para isso. Defendem que bastam leis nacionais e o acesso aos recursos naturais se garante com bons contratos. "Mas a fiscalização disso é impossível e o custo de questionar a execução de um contrato fora do país é muito cara", aponta Cristina Azevedo, gerente de projeto do Departamento do Patrimônio Genético, da Secretaria de Biodiversidade do MMA.
Excluindo o coro de quem está contra tudo, a grande questão em torno do ABS é a de se conseguir um tratado vinculante. Ou seja, uma lei internacional obrigatória que valha para quem assinou a CDB. É o que o Brasil defende, na liderança do bloco de 17 países mega diversos que detém 80% da biodiversidade do planeta, integram os três continentes e inclui China e Índia, México e Costa Rica, Quênia e Madagascar, Indonésia e Filipinas. "Acho que a discussão vai avançar em Bonn, mas o texto não está terminado e provavelmente não será definido se será um regime vinculante ou não", diz o alemão Martin Kaiser, consultor político para biodiversidade e florestas do Greenpeace Internacional. Ele lembra que os países industrializados têm sido reticentes em relação a uma lei obrigatória - e a União Européia vacila. "Do nosso ponto de vista, um Protocolo seria a solução. Mas isso só deve ser resolvido em 2010, no Japão", continua. A ONG tem pressionado o governo alemão para que se aumentem os fundos públicos para a conservação da biodiversidade. "Nossa exigência é começar com ? 2 bilhões por ano para desbloquear esta Convenção", prossegue Kaiser.
Os negociadores brasileiros colocam fichas em um mapa do caminho, a exemplo de Báli. "Esperamos da CoP-9 um resultado sólido que estabeleça um road map para a negociação de ABS de maneira a que possamos adotar um regime internacional até 2010", diz Fernando Coimbra, chefe da divisão de meio ambiente do Itamaraty. "Bonn tem que ser um marco para a superação deste impasse histórico", faz coro Denise Hamú, secretária-geral do WWF-Brasil.
"É preciso ter normas claras e justas que defendam os interesses nacionais, as populações locais e estimulem a pesquisa", defende Dias, do MMA. "A ausência destas regras é o pior cenário de todos. O setor privado e a Academia correm o risco de serem acusados de biopirataria e deixam de investir. E quem tem os recursos naturais não recebe nada." Por trás dos embates em Bonn está a lógica de dar valor à floresta para que ela fique em pé.
(Valor Econômico,
Funbio, 13/05/2008)