Fortunato Carvajal Monar está no ramo de criação de terras. E esta manhã de sábado está prometendo ser o início de um bom dia de trabalho. O sol bate na água suja do Rio Ganges, fazendo com que cintile em cores douradas. Carvajal Monar salta energicamente de uma lancha na areia. Ele caminha alguns poucos passos antes de chegar a uma saliência de aparência estranha, que já tinha atraído sua atenção quando a viu por binóculos.
A saliência tem meio metro de altura. Linhas de areia de cor leve estão ensanduichadas entre camadas de argila escura. Carvajal Monar espeta sua caneta esferográfica no solo para testar a consistência do material. "Tem menos de um ano de idade", conclui sucintamente o engenheiro hidráulico de 59 anos.
Homens improvisam bote para atravessar rua em Sirajganj, a 150 km da capital do país
Ele puxa a moita grossa de grama que cresceu no solo macio. "Esta ilha se desenvolveu muito recentemente", ele diz. Vastas quantidades de sedimento foram levadas pelas águas durante a última enchente, e com base em sua experiência, diz Carvajal Monar, "a ilha continuará crescendo". Natural da Colômbia, Carvajal Monar freqüentemente pisa em novas terras neste país, que todos dizem estar condenado. Ele trabalha para a empresa de consultoria holandesa Royal Haskoning em Bangladesh, um país que é considerado uma das maiores vítimas das mudanças climáticas.
Carvajal Monar às vezes considera os cenários apocalípticos surpreendentes. Eles simplesmente não condizem com suas experiências em Bangladesh. "Este país tem oportunidades tremendas para crescer", diz Carvajal Monar, enquanto abre um mapa mais velho e aponta para a Baía de Bengala. "Aqui, por exemplo, não há muito neste mapa que ainda esteja correto."
O país é tão efêmero quanto a vida humana. "Terra está desaparecendo por toda parte, mas novas terras estão se formando por toda parte", diz Carvajal Monar. "O problema é que os políticos daqui carecem de uma estratégia de longo prazo para ganho, desenvolvimento e proteção da nova terra." Seus dedos deslizam mais ao sul ao longo do mapa, entrando na Baía de Bengala, onde a cor leve indicando água se torna azul escura. Isto representa o início da rampa continental, onde o fundo do oceano mergulha centenas de metros e, ao longo dela, 2,4 bilhões de toneladas de sedimentos não usados. que os grandes rios em Bangladesh, o Ganges, Brahmaputra e Meghna, escoam pelos seus leitos de quilômetros de largura. Carvajal Monar calculou que um ano deste sedimento é suficiente para criar 200 quilômetros quadrados de novas terras.
"Atualmente, grande parte do sedimento simplesmente desaparece em alto-mar", ele diz. Isto, segundo Carvajal Monar, é praticamente um pecado mortal em um país que deveria ter iniciado há muito tempo um programa para usar o lodo, mica e argila férteis para proteger sua costa, protegendo assim futuras gerações de afogamento.
Não é por acaso que ele trabalha para uma empresa de engenharia holandesa. A Holanda e Bangladesh compartilham um destino semelhante. Ambos os países são planos e grande parte de seu território fica abaixo do nível do mar, o que os força a se protegerem constantemente de inundações. "Na Holanda, isto há muito é visto como uma oportunidade, não como uma ameaça", diz Carvajal Monar.
Na verdade, hidrologicamente falando, a Holanda é um país que nem deveria existir. Mas uma hábil engenharia garante a existência bem-sucedida da Holanda. Pôlderes, diques e estruturas de retenção de água protegem seu território contra o mar. Segundo Carvajal Monar, "isto é precisamente o que poderíamos fazer em Bangladesh, mas infelizmente estamos avançando de forma lenta demais".
Fora os paralelos morfológicos, a Holanda e Bangladesh têm pouco em comum. O país muçulmano no canto leste do subcontinente indiano, que se tornou independente do Paquistão em uma guerra sangrenta no início dos anos 70, foi devorado por uma cleptocracia corrupta que foi derrubada por um golpe militar em janeiro. Um governo interino controlado por generais governa o país atualmente. O caos na política se estende profundamente pelos ministérios e pela burocracia do governo, adiando decisões -o grande obstáculo na construção de novas estruturas para proteção contra inundações.
A Holanda já está pagando por uma série de projetos que visam proteger os flancos vulneráveis do país ao longo da costa e das margens dos rios. Um diagrama traçando um desses projetos está pregado em um painel no escritório de Carvajal Monar em Dacca, capital de Bangladesh. É um plano que poderia expandir a massa de terra do país em vários quilômetros quadrados. Na região do delta do Meghna, pela qual 160 mil metros cúbicos de água fluem a cada segundo, Carvajal Monar quer conectar ilhas recém formadas por meio de barragens. A estrutura forçaria o rio a depositar grandes quantidades de sedimentos ao longo de suas margens. "Mas o projeto está parado", se queixa Carvajal Monar. "E isso em um país de 150 milhões de pessoas onde a terra agrícola está encolhendo 1% ao ano."
As coisas estão se movendo em um ritmo mais rápido em Hatia. Antes eram duas pequenas ilhas no delta do Meghna, mas então chegaram os engenheiros holandeses e ajudaram os bengaleses a conectarem as duas ilhas mais ao norte com o continente. Agora tratores estão cavando fossos para formar a característica estrutura retangular do pôlder familiar a todo turista que já esteve na Holanda -a única diferença sendo que em Bangladesh bananeiras estão plantadas nos diques em vez de choupos.
Zulfiquer Azeez é um dos engenheiros que, sob a supervisão de Carvajal Monar, é responsável pelas obras de construção. Ele está familiarizado com a retangularidade verde da Holanda após uma visita ao país há poucos anos. "Mas aqui nós nunca sonharíamos em construir campos de golfe em terra recém recuperada", diz Azeez, um bengalês de 41 anos. "Quase cada pedaço dela é usado para plantações."
Um trator está reunindo o solo cinza e pegajoso. A apenas poucos metros de distância, mulheres da aldeia se ajoelham diante de um pedaço de metal corrugado e viram pimentas para secar ao sol. O dique em breve protegerá as pessoas daqui das enchentes da primavera e das ondas gigantes que regularmente são provocadas por ciclones. Um bunker protetor em palafitas é parte integral do equipamento básico do pôlder tanto quanto seus canais de drenagem. "Sem eles a terra se tornaria salinizada", explica Azeez.
Mas até mesmo a terra desprotegida diante do dique é usada tão logo se projeta apenas poucos centímetros acima do nível da água. Uma das audaciosas é Shamsun Nahar, cuja choupana de bambu fica em uma pequena colina de terra. como uma versão de Terceiro Mundo das pequenas ilhas nas planícies de lama de Frisland, no norte holandês, conhecidas como Halligen. Ela planta no solo aluvial fértil com seus quatro filhos, e o chama de "um presente de Alá". Nahar chegou aqui há apenas poucos meses. Seu marido trabalha no sudeste do país, ou nas docas ou como condutor de riquixá. De fato, Nahar não sabe ao certo o que ele está fazendo no momento, porque, sem um celular, ela não tem como manter contato com seu marido. Ela também não possui um rádio para alertá-la contra ciclones. Ela envia seu filho para trazer as redes. Sem a pesca, a família não conseguiria sobreviver. A maré atingiu a ponta do dique e a água está se agitando diante de sua choupana.
Nahar sabe muito bem quão perigosas vastas quantidades de água podem ser, e ainda assim ela corre o risco de viver à beira da água, na esperança de se tornar a proprietária da terra recuperada. Segundo as leis não escritas dos nômades das marés, o governo no final dará a propriedade da terra recuperada aos primeiros que tiverem sucesso em tomar posse dela. Uma rajada de vento envolve Nahar em uma nuvem de poeira fina. O vento mudou de direção e agora está soprando do sul. A estação seca, que geralmente dura de novembro a abril, está chegando ao fim.
Domando rios monstros
Um vento sul é um sinal de aproximação da monção de verão, um tempo em que os esforços de Gerard Pichel serão testados. O engenheiro holandês está tentando domar os rios que incham em monstros selvagens durante a monção.
Pichel está a caminho do Jamuna, como o Brahmaputra é chamado no lado bengalês da fronteira. Um hidrólogo da DHV, uma firma de engenharia da cidade da Amersfoort, na região central holandesa, Pichel, em um projeto conjunto do Ministério dos Recursos Hídricos em Dacca, protegeu as margens do rio com diques e dois quebra-mares que se projetam do rio em ângulos retos. A enchente da última monção arrancou partes da amurada. "Não podemos permitir que um desastre semelhante aconteça desta vez", diz Pichel.
Os bengaleses construíram os quebra-mares em um ângulo reto e não em um ângulo oblíquo. Como resultado, o lado diante da corrente fica exposto à força plena da água. "Nós cometemos o mesmo erro na Holanda no passado", diz Pichel, balançando sua cabeça. "Mas não é preciso cometer os mesmos erros duas vezes."
Ele já descobriu erros de engenharia hidráulica incômodos ao longo de todo o caminho de Dacca até o Jamuna: aberturas de ponte que são pequenas demais, estruturas de retenção de água dimensionadas de forma imprópria. Além disso, muito dinheiro está sendo gasto em investimentos errados. A companhia aérea estatal acabou de anunciar planos para gastar mais de US$ 1 bilhão em novos aviões. Pela mesma quantia, milhões de pessoas poderiam ser salvas de enchentes. Na verdade, muitas coisas seriam possíveis. Engenheiros desenvolveram formas de domar a natureza, com uma barragem bem situada, por exemplo, forçando o rio a depositar sedimentos ao longo de suas margens. Segundo Pichel, a tecnologia é "mais rápida do que qualquer draga e não custa nada."
Mas a barragem precisa ser construída manualmente. Os cenários que se desdobram diante dos olhos de Pichel lembram a construção das pirâmides. Usando umas macas de madeira, homens encharcados de suor arrastam blocos de pedra de um barco, se deparam com a tábua de bambu do barco ao canal e jogam a pedra na água. Para Pichel, as mudanças climáticas representam apenas outro desafio de engenharia. Além disso, os indianos, e não o aquecimento global, são os principais responsáveis pelos problemas agudos de enchente de Bangladesh.
O país vizinho muito maior construiu barragens gigantes para explorar seus grandes rios. Como resultado, os indianos estão interferindo em um equilíbrio que é crítico para Bangladesh. "Quanto menos água flui do norte para o mar, mais a água do mar avança rio acima", diz Pichel. O resultado fatal é a salinização dos campos no sul e menores safras agrícolas.
Exatamente o oposto ocorre durante o período da monção. Para se protegerem contra as enchentes, os indianos abrem suas comportas, o que causa inundações rio abaixo em Bangladesh. As mudanças climáticas poderiam causar derretimento adicional das geleiras no Himalaia, levando a um nível mais elevado das águas nos rios. "Mas isso seria praticamente marginal em comparação aos atuais problemas de enchentes em Bangladesh", diz Pichel.
O conhecimento sobre os riscos das mudanças climáticas ainda não chegou ao novo pedaço de terra plana na Baía de Bengala. "Eu já ouvi certa vez os homens na cidade conversando a respeito", diz Shamsun Nahar, a agricultora em seu pequeno pedaço de terra recuperada em Hatia. Nahar não sabe o que é pior: os caprichos da natureza ou os dos seres humanos. Há algum tempo, alguns homens de Dacca apareceram com falsos documentos e um grupo de capangas, e expulsaram os vizinhos dela de suas terras. "Quem nos protege?", ela pergunta retoricamente. "Ninguém!"
(Por Gerald Traufetter, Der Spiegel, tradução de George El Khouri Andolfato, UOL, 13/05/2008)