O movimento em defesa dos invasores da terra indígena Raposa Serra do Sol deu visibilidade aos setores que de forma articulada advogam a ditadura do mercado sobre o direito dos cidadãos e consequentemente não tem nenhum compromisso com a democracia e nem com o país.
Com o discurso de que o Estado deve se curvar à supremacia do mercado, vale até a ameaça de separação do país, como fez o líder dos invasores da Raposa Serra do Sol Paulo Cezar Quartiero, propondo a realização de um plebiscito no município de Pacaraima para anexar parte do território brasileiro à Venezuela[1].
Esses setores também não disfarçam o preconceito em relação aos povos indígenas e a sua maneira de se relacionar com a terra e com o meio ambiente. Não enxergam na forma própria de vida e na sabedoria milenar desses povos nenhum valor. Por isso pouco lhes interessa se os povos indígenas tiverem sua existência futura comprometida, assim como lhes parece um absurdo que o Estado, com a demarcação das terras indígenas, garanta a posse permanente da terra a mais da metade da população rural de Roraima. Esperam que as instituições públicas e a sociedade brasileira confundam os seus interesses particulares com os interesses nacionais.
Articularam cuidadosamente uma campanha pelos meios de comunicação para ganhar o apoio da opinião pública para as suas tentativas de ampliar o espaço territorial do mercado, confiscando as terras indígenas da Raposa Serra do Sol. Nessa campanha vale tudo em termos de desinformação até a afirmação de que os fazendeiros chegaram antes dos índios à região (quando os povos indígenas que lá vivem serviram, inclusive, como argumento decisivo para que as fronteiras do país alcançassem os limites atuais).
Mas o discurso mais maldoso é aquele que apela ao sentimento patriótico do povo brasileiro para expropriar os índios de suas terras, que além de injusto e preconceituoso, parte de premissas totalmente falsas. As terras indígenas, nas fronteiras, ao contrário do que apregoam pretensos “nacionalistas” favorecem a soberania brasileira, não só devido à histórica e incontestável pertença dos índios que lá vivem ao estado brasileiro, mas também pela normatização pelo Estado da ocupação indígena dessas terras de acordo com os estritos marcos constitucionais.
O risco a soberania não está numa hipotética aliança futura que os povos indígenas possam fazer com os interesses estrangeiros para declarar a independência em relação ao Brasil, mas na ameaça que o mercado globalizado traz para a governança soberana dos países em prol do bem estar de todos os seus cidadãos. Nesse sentido nunca é demais lembrar o atentado a soberania do país praticado pela forças neoliberais articulados no governo Fernando Henrique Cardoso, através de uma fraude constitucional materializada na Emenda nº. 06 de 1995. De acordo com essa emenda as empresas de capital estrangeiro adquirem o mesmo status jurídico que as de capital nacional quando organizadas de acordo com as leis brasileiras e com sede e administração no país, inclusive podendo minerar em terras indígenas, observadas as condições expressas no artigo 176 da Constituição Federal (que depende de regulamentação em lei). Curiosamente essas mesmas forças são as que mais se mobilizam contra a terra indígena Raposa Serra do Sol acusando os índios e quem os apóia de estarem agindo de acordo com os interesses do capital estrangeiro.
A ameaça a soberania é real e atual e se manifesta pela força do capital transnacional que busca sistematicamente impor limites cada vez maiores a elaboração de políticas públicas autônomas dos países em prol do bem comum. Manifesta-se também através da aquisição de grandes extensões de terra por estrangeiros na Amazônia estimulada pelo agronegócio[2], pela tentativa de diminuir a faixa de fronteira para que as empresas transnacionais possam se apropriar de terras nessas regiões, pelas práticas da biopirataria e de devastação da Amazônia que avançam beneficiadas pelos frágeis mecanismos de fiscalização governamentais.
Já as terras indígenas somam na defesa dos interesses nacionais, pois limitam o alcance do mercado globalizado, favorecem a proteção do meio ambiente, asseguram uma rica diversidade cultural e são garantia de vida para as futuras gerações.
O reconhecimento da terra indígena Raposa Serra do Sol onde vivem os povos indígenas Macuxi, Wapixana, Taurepang, Ingaricó e Patamona constitui, por isso, a manifestação soberana do Estado Brasileiro em assegurar os direitos de sua gente diante do inegável interesse que a Amazônia desperta nos poderosos do Brasil e do mundo em função da sua biodiversidade, água doce, minérios estratégicos e demais recursos naturais.
Está na hora de tirar da mira os povos indígenas e as mais conseqüentes entidades da sociedade civil no apoio aos seus direitos e na luta pela preservação do meio ambiente na Amazônia e apontar os canhões na direção daqueles que, independente de nacionalidade, invadem as terras indígenas, promovem o desmatamento, se apropriam indevidamente das riquezas naturais, ameaçam, intimidam e chegam a matar quem se coloca no seu caminho, tentam manipular as instituições públicas para que respaldem suas práticas ilegais e que muitas vezes se escondem atrás de um falso discurso nacionalista.
Apoiar os direitos dos povos indígenas é um legítimo exercício de cidadania. Quem se opõe e atenta contra esses direitos precisa explicar a sociedade brasileira quais são os reais interesses que defende, porque o discurso do interesse nacional já não cola mais.
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Cimi Norte I, 02/05/2008)