A Câmara Municipal do Rio de Janeiro terá de apreciar, pela terceira vez, um projeto de lei que pretende proibir o uso de animais em pesquisa científica. A proposta foi reapresentada no último dia 5 pelo vereador Claudio Cavalcanti -o mesmo autor das duas anteriores- e, segundo o regimento da casa, precisa entrar na pauta de votação até o mês de outubro.
A primeira tentativa de proibição, a partir de 2005, chegou a ser aprovada pela Câmara, mas foi vetada pelo prefeito César Maia. O segundo projeto também passou -após receber emendas que isentavam entidades de ensino da restrição-, mas está com o futuro incerto por causa de um erro no trâmite. A lei enviada a Maia, que a sancionou "por engano", era a versão sem as emendas.
"Voltei ao primeiro projeto porque ele foi vetado", disse Cavalcanti à Folha. Segundo o vereador, a insistência se justifica porque a proibição das cobaias tem apoio popular ("3 milhões de e-mails") e porque os vereadores se mostraram receptivos. "Outra vez, vamos acionar esse batalhão de pessoas e vamos tentar fazer com que essa lei entre em vigor."
Apesar de o terceiro projeto de lei do vereador ter exatamente o mesmo texto do primeiro, César Maia afirma que ainda é cedo para dizer se vai vetar a proposta novamente. "Só posso opinar conhecendo o texto e submetendo-o aos órgãos internos e externos que tratam da matéria", disse o prefeito. "Lembro que os outros dois tinham excessos."
Segundo o próprio vereador autor do projeto, sua proposta está baseada na crença de que testar de medicamentos em animais não tem valor científico. "Quando um medicamento é testado em animais, isso não quer dizer, absolutamente, que isso vá ajudar em um milímetro os seres humanos", afirma. "Animal é uma coisa, ser humano é outra coisa."
O consenso entre os cientistas, porém, é diferente. Para os pesquisadores ouvidos pela Folha, a proposta de Cavalcanti é nociva à saúde pública.
"Se experiências com animais fossem proibidas na nossa cidade, todos os esforços para descobrir vacinas para dengue, Aids, malária, leishmaniose etc. seriam jogados literalmente no lixo", diz Renato Balão Cordeiro, farmacólogo da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz). "Além disso, as vacinas já produzidas aqui não poderiam ser utilizadas. O controle de qualidade de medicamentos, cosméticos e vacinas virais e bacterianas executado na Fiocruz também é realizado em animais de experimentação."
"Literatura imensa"
Cavalcanti, porém, afirma que o único interesse dos cientistas na experimentação com animais é "o lucro". Ator de profissão, ele diz que seu projeto está baseado em informações técnicas. "No meu gabinete nós temos uma imensa literatura", diz. O autor mais citado pelo vereador em sua argumentação é Hans Ruesch, um piloto de corridas suíço que, depois de se aposentar, publicou vários livros contra o uso de animais em experimentos.
Cavalcanti também evoca o filósofo Peter Singer em sua defesa. Autor vastamente citado na área de ética, porém, Singer é favorável ao uso de cobaias em pesquisas que tragam benefícios relevantes a humanos.
Questionado sobre sua argumentação, o vereador lança uma acusação: "O Peter Singer "deu uma meia-trava" porque deve ter sido de alguma forma, "aliciado". Ele é financiado pela Fundação Rockefeller [que fomenta educação e ciência nos EUA] e não pode ir totalmente contra [o uso de cobaias]."
Na Academia Brasileira de Ciências, Cordeiro articula agora uma reação ao projeto de lei de Cavalcanti. "O que causa perplexidade nele são equívocos, radicalismo irracional e total desconhecimento da importância do uso de animais", diz.
Lei federal pode resolver o impasse
A disputa interminável entre ativistas de direitos animais e cientistas por leis municipais se deve sobretudo ao fato de que o Brasil ainda não tem uma lei federal que regulamente o uso de cobaias. Além do Rio, Florianópolis é palco de disputa. Um projeto para resolver o impasse, um projeto batizado de "Lei Arouca", tramita no Congresso há 13 anos.
Segundo o farmacólogo Renato Cordeiro, da Fiocruz, a proposta pode acabar com a noção de que cientistas usam cobaias por crueldade, pois as normas federais serão feitas por um conselho aberto, que terá membros de sociedades protetoras dos animais. "Acreditamos que o Congresso Nacional aprovará o projeto", diz.
Segundo a presidência da Câmara dos Deputados, o apoio à "Lei Arouca" é bom, e por isso há chance de o projeto entrar em pauta logo. Partidos se reúnem hoje para definir a pauta da semana, mas esse projeto de lei não estava na agenda até ontem. Cientistas temem que medidas provisórias e outros projetos "furem fila".
(Rafael Garcia, Folha de São Paulo, 13/05/2008)