O ministro Carlos Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal, tende a manter o decreto que homologou a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. É o que se pode depreender de decisões do próprio ministro sobre o caso.
Britto promete concluir nos próximos dias seu voto sobre a validade ou não do decreto homologatório da reserva, assinado pelo presidente Lula no dia 15 de abril de 2005. O ministro Gilmar Mendes, presidente do STF, diz que o plenário irá analisar a questão ainda este mês.
Ao contrário do que se vem veiculando na imprensa, o Supremo não decidirá se a demarcação da terra deve ser contínua ou em ilhas. Na questão de demarcação de terras indígenas, o Judiciário só pode se manifestar sobre a legalidade dos atos do Executivo. Se o decreto for declarado ilegal, o processo volta às mãos do Executivo e a Funai terá que apresentar novo estudo antropológico.
No começo de abril, o STF entendeu apenas que a operação da Polícia Federal para retirar os seis arrozeiros da área só pode acontecer quando ficar entendido que o decreto presidencial é legítimo. Como há 33 processos correndo no STF, a retirada neste momento é temerária, segundo os ministros. Dentre esses processos, o principal da questão será debatido na Petição 3.388 apresentada pelos senadores Mozarildo Cavalcanti (PTB-RR) e Augusto Botelho (PT-RR), que pedem a anulação da portaria de homologação da reserva indígena.
No pé da lei, a posição de Carlos Britto sobre o decreto pode estar já desenhada no Mandado de Segurança 25.483, julgado pelo plenário do STF no dia 4 de junho de 2007. Na oportunidade os arrozeiros questionavam o processo de demarcação. O mérito da questão não foi debatido porque o Mandado de Segurança não é o instrumento jurídico correto para esse tipo de questão.
Em sua decisão, o ministro lembrou, porém, que cabe à União demarcar as terras ocupadas pelos índios conforme dispõe o artigo 231 da Constituição. “Donde competir ao Presidente da República homologar tal demarcação administrativa”, anotou Britto.
Para o ministro, não se precisa da manifestação do Conselho de Defesa Nacional para a demarcação de terras indígenas em áreas de fronteira. A necessidade de opinião do CDN é inclusive um dos argumentos da última ação ajuizada pelo governo de Roraima na terça-feira (6/5). O CDN é o órgão de consulta da Presidência da República para assuntos de soberania nacional
Fazendeiros, governo estadual e parlamentares do Estado também reclamam de erros legais do decreto, que não garantiu, por exemplo, o direito ao contraditório e da ampla defesa. Carlos Britto nega essa situação ao citar como fundamento o artigo 9º do Decreto 1.775/96, que regula o procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas.
A norma concede um prazo de 90 dias desde o início do processo demarcatório para que estados, municípios e interessados manifestem-se à Funai sobre qualquer problema sobre a área ou para pedir indenizações.
Como o decreto não aparenta vícios legais, a demarcação não pode ser interrompida, entendeu o ministro. Segundo Carlos Britto no Mandado de Segurança, “na ausência de ordem judicial a impedir a realização ou execução de atos, a Administração Pública segue no seu dinâmico existir, baseada nas determinações constitucionais e legais. O procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas Raposa Serra do Sol não é mais do que o proceder conforme a natureza jurídica da Administração Pública, timbrada pelo auto-impulso e pela auto-executoriedade”.
No dia 28 de abril, a Procuradoria-Geral da República encaminhou parecer favorável à demarcação contínua da reserva. Na opinião da procuradoria, se a demarcação da forma como foi feita oferece algum risco à soberania nacional, como alegado na Petição, este tem de ser eliminado sem sacrificar o direito dos povos indígenas.
O parecer conclui no sentido de que todas as fases que resultaram na demarcação e na homologação da Raposa Serra do Sol respeitaram os procedimentos exigidos pela legislação e seguiram “consistente estudo antropológico”.
Decisão política
Apesar da jurisprudência, não há certeza sobre a posição do ministro. “A gente não tem como prever como o Supremo irá decidir. Mas, sabemos que a demarcação aconteceu completamente dentro da legalidade. Discutiram-se todas as etapas administrativas”, afirma a advogada Ana Valéria Araújo, da ONG Fundo Brasil de Direitos Humanos. Ela acompanha o processo desde 1998 quando o presidente Fernando Henrique Cardoso assinou o decreto demarcando a reserva. Quando a questão tramitava no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (Brasília), foi a advogado que defendeu o interesse dos índios.
Ana Valéria lembra que o caso ganhou grande proporção com uma série de atores dando opiniões. Por isso, o Supremo pode cair na tentação de fazer um julgamento político. Em uma das decisões sobre o caso, Carlos Britto chegou a comentar que “a própria história do país está em jogo. Não se trata de simples maniqueísmo. O Bem de um lado e o Mal de outro. Aqui, não é fácil separar o joio do trigo”.
Em outra oportunidade, o ministro disse que “diante de um quadro tão complexo, que envolve tantos interesses — particulares e públicos; tantas verdades e meias-verdades; tantas escaramuças e negaças; tanto emocionalismo, enfim, fica extremamente difícil extrair, neste primeiro exame, os requisitos autorizadores da liminar, aí incluída a aparência do bom direito”.
Recentemente, o ministro Eros Grau disse à imprensa que esse é o processo de maior conflito social que já analisou no tribunal onde está desde 2004. “É preciso resolver esta questão definitivamente o quanto antes", afirma Eros Grau.
O ministro Celso de Mello também falou de uma desestadualização de Roraima. As terras indígenas ocupam 42% do estado. O terreno da Raposa Serra do Sol equivale a 7,7% de Roraima.
Carlos Britto confessou publicamente a preocupação com a possibilidade de Roraima retornar à condição de território. "Nos perguntamos se não significaria intervenção branca. Um território transformado em Estado agora regride à situação de território na medida que a União caminha para se apossar de metade da área de Roraima", diz o ministro.
Ventilou-se na imprensa que o presidente Lula tentou convencer pessoalmente os ministros sobre a importância da reserva. Um jantar em 22 de abril — um dia antes da posse de Gilmar Mendes na presidência do STF — foi oferecido com esse objetivo. Uma solução negociada foi inclusive proposta: os seis fazendeiros poderiam ficar onde estão, mas sem que o território fosse descontinuado. O ministro Britto, bem como seus colegas Marco Aurélio, Celso de Mello e Joaquim Barbosa, não compareceram ao encontro com o presidente.
A pressa na solução da questão é motivada pelo fato de a tensão na reserva ter aumentado depois que dez índios das etnias macuxi e ingarikó foram feridos a balas na segunda-feira (5/5), após tentativa de ocupação da fazenda Depósito, do arrozeiro Paulo César Quartiero, prefeito de Pacaraima, que logo depois foi preso pela PF.
Processo histórico
O processo de demarcação da Raposa Serra do Sol remonta aos anos 1970. A Funai somente deu seu parecer antropológico sobre a extensão do território em 1993. O conceito de terra indígena é baseado em quatro elementos — área da aldeia, áreas usadas para atividades de subsistência, áreas para preservação do meio ambiente e área para reprodução física e cultural. Por isso, o conceito de terra indígena deve prever o crescimento da comunidade. O espaço deve ser suficiente para que a tribo sempre se mantenha como um grupo diferenciado.
Argumenta-se que a Raposa Terra do Sol é uma área grande demais para os 15 mil índios que moram lá. Roraima tem 224.299 km² e 391.317 habitantes, o que equivale a 0,57 km²/hab. Na terra indígena, a proporção é de 1,17 km²/hab, duas vezes mais que a média do Estado.
A questão entrou na pauta da Justiça em 1998, quando a área foi demarcada pelo presidente FHC. Na época, já estavam estabelecidos na reserva cerca de 60 fazendeiros.
Agricultores, pecuaristas e políticos do estado ajuizaram na Justiça Federal de Roraima uma série de ações judiciais para impedir o processo do Executivo para efetivar a reserva. A posição dos mandatários do estado fica bem demonstrada quando o então governador Ottomar Pinto, morto o ano passado, decretou luto oficial de sete dias em todo o estado em protesto ao reconhecimento da reserva.
Com o tempo, muitos fazendeiros foram desistindo e deixaram a reserva depois de receberem indenizações da Funai. Sobraram apenas seis rizicultores, que ocupam a área sul da reserva em um espaço que representa cerca de 1% do total das terras.
O assunto chegou ao Supremo em 2004. Na oportunidade, a ministra Ellen Gracie entendeu que a homologação contínua causaria graves conseqüências de ordem econômica, social, cultural e lesão à ordem jurídico-constitucional. Por isso, ela negou o pedido do Ministério Público Federal, que queria suspender a decisão da Justiça Federal do estado permitindo a permanência dos arrozeiros.
Com a homologação da reserva m 2005, pelo presidente Lula, o assunto passou para a competência do Supremo. A partir de 29 de junho de 2006, o plenário do STF reconheceu que a questão é de sua alçada. As contestações dos agricultores vêm sendo liminarmente negadas pelos ministros desde então.
(Por Daniel Roncaglia, Revista Consultor Jurídico, 10/05/2008)