A situação legal de um território indígena no extremo norte do Brasil e os combustíveis de origem vegetal são os temas mais polêmicos da III Conferência Nacional de Meio Ambiente, que acontece na capital do País e centra sua atenção na mudança climática. A Terra Indígena Raposa Serra do Sul é um “dilema de civilização” e seria “um passo atrás” se o Supremo Tribunal Federal não confirmar a demarcação decidida “corajosamente” pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e por seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso, disse a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, perante cerca de três mil presentes à abertura do encontro.
Esta reserva indígena de 1,7 milhão de hectares do Estado de Roraima fica na fronteira com a Guiana e a Venezuela. Uma parte é ocupada por fazendeiros produtores de arroz que resistem em deixar a área, como determina a legislação. Está em jogo a manutenção da reserva em uma área contínua ou deixá-la quebrada e reduzida para permitir a permanência dos arrozeiros e uma pequena cidade. Diante da possibilidade de confrontos violentos, o STF suspendeu em abril uma operação policial para desalojar os fazendeiros. Mas, no último domingo foram feridos 10 indígenas por disparos feitos por empregados de um latifundiário, o que agravou a situação.
Nesse contexto, o comandante militar da Amazônia, general Augusto Heleno, lançou mais lenha na fogueira ao dizer que a demarcação de terras indígenas na fronteira é uma ameaça à soberania nacional. O comentário desatou manifestações de apoio de outros militares. A ministra Marina Silva espera uma “visão de civilização” por parte dos juizes do STF que deverão decidir logo o conflito. Arroz pode ser produzido em qualquer terra fértil, mas para os indígenas a área em que viveram seus ancestrais lhes garante a sobrevivência física e cultural, é “um ponto de referência”, acrescentou. Além disso, a demarcação de terras indígenas constitui “a maior contribuição para a preservação ambiental” e não apresenta riscos para a soberania, mas “aliados” no controle das fronteiras, ressaltou a ministra.
Antes do discurso da ministra, na noite de quarta-feira, o representante dos movimentos sociais e ambientalistas, Temístocles Marcelos, acusou o Poder Judicial de “atrasado e elitista” por trava o processo de demarcação efetiva de terras indígenas, referindo-se em especial à Raposa Serra do Sol. Também defendeu a ação policial para tirar os arrozeiros do lugar. Sobre os biocombustíveis, a ministra afirmou que são uma oportunidade de “minimização e adaptação” à mudança climática, além de permitir a “solidariedade com os países em desenvolvimento”, que podem contar, dessa forma, com “energia limpa” e também reduzir a pobreza.
Essa postura é a de todo o governo brasileiro, que defende especialmente o etanol a partir da cana-de-açúcar como forma de reduzir as emissões de gases causadores do efeito estufa e promover o desenvolvimento rural em países tropicais pobres. A ministra destacou que o etanol brasileiro já evitou nos últimos 30 anos a emissão de 600 milhões de toneladas de carbono. Para a expansão desta produção de combustíveis o Brasil conta com 50 milhões de hectares de terras cultiváveis “em repouso” (sem ser trabalhada), portanto, não seria necessário “cortar nenhuma arvore em parte alguma do país”, assegurou Marina Silva.
Essa área disponível equivale quase a totalidade da até agora dedicada à produção de grãos no Brasil e a pelo menos 14 vezes a extensão destinada à cana-de-açúcar para a fabricação de etanol. Porém, este é um tema que divide os delegados da Conferência de Brasília procedentes dos 27 Estados. Muitos ambientalistas temem que a expansão dos agro-combustíveis, com preferem chamá-los, agravem o desmatamento, inclusive da Amazônia, e provoque carestia no mercado doméstico de alimentos.
Mais que a bioenergia, diretamente relacionada com a mudança climática, o que pode “fazer perder” a Conferência é a questão indígena, desviando o tema central e catapultando discrepâncias insolúveis, alertou Ulisses Crepaldi, delegado de São Paulo, pequeno empresário em gestão ambiental e presidente do Conselho Comunitário de Segurança de um bairro na capital paulista. Alguns delegados da Amazônia rechaçam terminantemente que a Conferência seja um apoio à demarcação contínua da Raposa Serra do Sol, defendendo sua divisão para preservar direitos dos agricultores que vivem na área há muitas décadas. Crepaldi concorda com eles.
Em relação à mudança climática, Marina Silva disse que “o Brasil não pode fugir às suas responsabilidades”, embora pelo princípio de responsabilidades comuns, mas diferenciadas, não esteja obrigado a reduzir suas emissões de gases causadores do efeito estufa. Um caminho seria diversificar as fontes de energia limpa, com a eólica, solar e outras, afirmou. A ministra informou que com o dinheiro obtido com o petróleo se criará um fundo para financiar ações de adaptação, mitigação e redução de vulnerabilidade à mudança climática, segundo estabelece um projeto de lei que o Ministério do Meio Ambiente enviará em breve ao Congresso.
Desmatamento ilegal “zero” e metas de redução de emissões de gases que causam o efeito estufa para o setor produtivo foram as propostas defendidas pelo presidente do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável, Fernando Almeida, representando o setor privado na Conferência. No processo preparatório desta III Conferência Nacional sobre Meio Ambiente foram apresentadas 5.132 propostas, as quais terão que ser harmonizadas e reduzidas nos três dias de debates. Cerca de dois mil delegados e convidados participam dessas discussões.
Com este encontro, que é bianual, e está em sua terceira edição, já são 49 as conferências nacionais promovidas pelo atual governo desde que assumiu em janeiro de 2003, destacou o secretário-geral da Presidência, Luis Dulci, ao falar na abertura em nome do Presidente Lula. “Mais de três milhões de brasileiros já participaram” destes processos, que permitem “avançar políticas públicas” de proteção ambiental, afirmou.
(Por Mario Osava, Envolverde/IPS, 10/05/2008)