Enquanto os sobreviventes famintos e trêmulos aguardavam entre os mortos por ajuda na quarta-feira, após a passagem de um forte ciclone por Mianmar, as agências de ajuda humanitária e diplomatas disseram que a entrega de suprimentos de ajuda estava sendo retardada pela relutância dos líderes militares do país em permitir um afluxo de estrangeiros.
Com as condições piorando na vasta região inundada do Delta do Irrawaddy, uma alta diplomata americana em Mianmar disse que o número de mortos poderá subir para até 100 mil, em comparação ao número oficial de 22.500. Funcionários de ajuda e sobreviventes descreveram as cenas de horror, com pessoas aglomeradas nos pequenos pontos de terra seca, cercadas por corpos e carcaças de animais flutuando na água lamacenta, ou acomodadas em árvores do mangue.
Com Mianmar praticamente fechada para jornalistas estrangeiros, a informação vem das agências de ajuda, dos relatos dos jornalistas locais e das mensagens por e-mail e conversas por telefone com moradores e diplomatas. Testemunhas falam das brigas pelos estoques cada vez menores de alimentos e água potável, das hordas de pessoas lotando as pequenas lojas que ainda estão abertas e dos pequenos barcos incapazes de resgatar os sobreviventes por falta de combustível.
Os temores de epidemia estão crescendo, e Richard Horsey, um porta-voz da ONU em Bancoc, disse que além de alimentos, água e abrigo, também há necessidade urgente de sacos para corpos e pastilhas de purificação de água. Quatro dias após a passagem do ciclone, aldeias inteiras estão sob a água após serem submersas por uma onda de mais de 3 metros que destruiu casas e enterrou os moradores em uma parede de água. As cenas e a escala da devastação lembram o tsunami de dezembro de 2004, que deixou 181 mil mortos em vários países.
A tempestade e suas conseqüências representam um duro desafio para o governo militar, que em setembro reprimiu violentamente um movimento pela democracia liderado pelos monges budistas, matando pelo menos 31 pessoas e provavelmente muito mais. Não se sabe que efeito o desastre pode ter sobre o poder da junta, com moradores enfurecidos se queixando da falta de aviso e da lenta resposta do governo, e com a possibilidade de afluxo de estrangeiros ao país fechado e rigidamente controlado.
A diplomata americana, Shari Villarosa, a encarregada de negócios em Yangun, a principal cidade de Mianmar, disse aos repórteres que a estimativa de 100 mil mortos era referente ao pior cenário, com base em informações fornecidas por uma organização internacional de ajuda que ela não quis identificar.
Apesar da escala do desastre, o governo de Mianmar permitiu a entrada de poucos funcionários de ajuda humanitária e restringiu o movimento no delta, disseram as agências de ajuda. Ele não concedeu vistos para os funcionários de ajuda, apesar de suprimentos estarem sendo reunidos em países próximos.
Em resposta, o ministro das relações exteriores da França, Bernard Kouchner, sugeriu que a ONU deveria invocar sua "responsabilidade em proteger" os civis com base em uma resolução, para permitir a entrega da ajuda internacional mesmo sem a permissão da junta militar.
"Nós estamos vendo na ONU se não podemos implantar a responsabilidade em proteger, dado que os alimentos, barcos e equipes de ajuda estão lá, e obter uma resolução da ONU autorizando a entrega e impondo isto ao governo birmanês", Kouchner disse aos repórteres em Paris. Ele é um dos fundadores do grupo de ajuda Médicos Sem Fronteiras. Mas o subsecretário-geral das Nações Unidas para assuntos humanitários, John Holmes, resistiu à idéia de forçar Mianmar a abrir suas portas, apesar de ter notado que entre 50 e 100 funcionários de ajuda da ONU estão aguardando resposta sobre seus pedidos de visto.
Em 2005, a ONU reconheceu o conceito de "responsabilidade em proteger" civis quando seus governos não podem ou que não querem fazê-lo, mesmo se isto signifique uma intervenção que viole a soberania nacional. Mas raramente ela é aplicada. Em Washington, na quarta-feira, a secretária de Estado, Condoleezza Rice, pediu aos governantes militares de Mianmar para abrirem seu país para a ajuda internacional e apelou para a China, Japão, Indonésia e Índia que ajudem a reforçar este argumento.
"O que resta é o governo birmanês permitir que a comunidade internacional ajude seu povo", ela disse aos repórteres na quarta-feira, em Washington. "Não é uma questão de política. Esta é uma crise humanitária." Tempestades atingem Mianmar todo ano. A pior já registrada, em 1970, matou mais de meio milhão de pessoas, e outra tempestade devastadora, em 1991, matou 143 mil.
O Programa Mundial de Alimentos da ONU, uma entre a meia dúzia de agências com pessoal de prontidão, está enviando 45 toneladas de biscoitos energéticos na manhã de quinta-feira, a partir de depósitos em Bangladesh, mas tem 13 funcionários aguardando para entrar em Mianmar para ajudar na distribuição. A junta concordou em autorizar o envio apenas após um dia de discussões, disse Tony Banbury, o diretor regional do programa.
"Quando os informamos que queríamos transportar estes biscoitos pelo ar, a resposta inicial foi ok, desde que nós os entregássemos para eles", ele disse. "Esta não é a forma como operamos. Isto se transformou em uma discussão que levou o dia todo. No final, eles concordaram que o Programa Mundial de Alimentos seria responsável pela distribuição." O governo de Mianmar disse às autoridades da ONU que dedicou sete helicópteros e 80 embarcações às operações de ajuda.
"Sete é um número muito pequeno considerando as enormes necessidades logísticas", disse Paul Risley, um porta-voz das operações na Ásia do Programa Mundial de Alimentos. O partido político da líder de oposição, Daw Aung San Suu Kyi, que está sob prisão domiciliar, pediu por ajuda internacional urgente. Mas os generais reclusos que dirigem Mianmar obviamente relutam em permitir o ingresso de um grande número de estrangeiros no país.
Um motivo pode ser a realização de um importante referendo no sábado, sobre uma proposta de Constituição apoiada pelos militares; até o momento, a votação seguirá em frente em grande parte do país.
Muitos países estão enviando suprimentos para a vizinha Tailândia no aguardo da autorização para que possam entrar em Mianmar. A Espanha, por exemplo, anunciou que enviará um avião com 13 toneladas de medicamentos, tendas e água potável para a Tailândia, mas aguarda permissão de Yangun para entregar a ajuda.
Em Washington, a porta-voz da Casa Branca, Dana Perino, disse na quarta-feira que Mianmar ainda não respondeu às suas ofertas de ajuda. "Todos podem entender que não há substituto para estar lá em solo para ajudar as pessoas diretamente, e tentar fazê-lo à distância seria impossível", ela disse.
O entendimento de Washington, ela disse, é de que "não foi concedida entrada para ninguém". Há uma equipe americana de ajuda aguardando na Tailândia. Em Paris, Kouchner disse que as marinhas francesa, britânica e indiana contam com navios próximos das áreas mais atingidas de Mianmar e estavam prontas para ajudar.
"Levaria apenas meia hora para os barcos e helicópteros franceses chegarem à área de desastre, e imagino que seja a mesma história para nossos amigos britânicos", ele disse. "Nós estamos colocando pressão constante sobre as autoridades birmanesas, mas não recebemos uma autorização." Mas em um sinal possivelmente encorajador, Mianmar concedeu ao embaixador da Dinamarca na Tailândia, Michael Sternberg, um visto de uma semana para ajudar a avaliar a extensão dos estragos e necessidades de ajuda, anunciou o Ministério das Relações Exteriores dinamarquês, em Copenhague.
Era esperado que o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, tentasse contatar as autoridades de Yangun na quarta-feira, para pedir que se reúnam com as autoridades de ajuda e permitam a entrada da ajuda. O noticiário da televisão estatal de Mianmar citou o general Tha Aye, na quarta-feira, tranqüilizando a população de que a situação está "voltando ao normal".
A mídia estatal de Mianmar mostrou inúmeras imagens dos generais distribuindo alimentos e inspecionando os danos, imagens que visam reforçar a noção de que os militares estão no controle da situação, disse Win Min, um professor de política birmanesa contemporânea na Universidade Payap, em Chiang Mai, Tailândia. "Eles estão tentando mostrar às pessoas que elas devem contar com eles, não com os estrangeiros, não com a oposição", ele disse.
Mas Horsey, o porta-voz da ONU, disse na quarta-feira que "milhares de corpos" estavam flutuando em quase 5 mil quilômetros quadrados do delta inundado. E em Yangun, os preços no mercado teriam dobrado para o arroz, óleo de cozinha, carvão e água engarrafada. Foi relatado que grande parte de Yangun está sem energia elétrica, de forma que os moradores não podem nem mesmo usar suas bombas para beber água potável dos poços.
(Por Seth Mydans*, The New York Times, tradução de George El Khouri Andolfato, UOL, 08/05/2008)
* Graham Bowley, em Nova York; Steven Erlanger, em Paris; Helene Cooper, em Washington; Andy Newman, em New York; e Thomas Fuller, em Bancoc, contribuíram com reportagem.