A crise provocada pelo aumento dos preços dos alimentos, que provocou revoltas populares no Caribe, na África e na Ásia, era previsível. Uma grande parte da produção de alimentos hoje depende de fertilizantes em que derivados do petróleo são componentes importantes. Com o crescimento das importações e das exportações, além da locomoção interna nos países, a produção, o abastecimento e o consumo de produtos agrícolas dependem cada vez mais do transporte.
Na África e em muitas partes da Ásia a agricultura familiar foi completamente desorganizada pelas crises econômicas e financeiras das décadas passadas, e os estados da região tornaram-se impotentes quanto à possibilidade de investimentos em alternativas ou infra-estrutura, graças às políticas neo-liberais de desregulamentação e abertura dos mercados. O protecionismo correlato da Europa e dos Estados Unidos desestimulou a produção agrícola de exportação nesses países. O Haiti, no Caribe, palco de uma daquelas revoltas, é um país cujo solo foi erodido e destruído em termos de capacidade de produção. O empobrecimento, ainda ajudado pelas contínuas guerras ou crises políticas, foi generalizado. O problema maior é que a população não tem dinheiro para comprar alimentos. Tudo isso, em boa parte, gerado por uma política e uma visão unidimensionais de dependência dos combustíveis fósseis, e de um pensamento também fóssil quanto à ordenação do comércio mundial. E agora querem banir, como solução, o biodiesel e o etanol, dizendo que eles vão matar o mundo de fome. Boa parte do mundo já passa fome.
O problema não se chama biodiesel nem etanol, o problema chama-se Organização (ou Desorganização) Mundial do Comércio, o problema chama-se desigualdade, o problema chama-se miséria, pobreza, distribuição iníqua de renda. O problema chama-se ainda exportação de empregos, fuga (ou rodízio?) de capitais, queima das poupanças internas dos países pobres, liquidação da infra-estrutura pelas privatizações, ciclos perversos de produção e consumo baseados no individualismo como método de vida e no mercado como panacéia universal: esses são alguns dos nomes do problema, e se não se mexer nisso, nessa estrutura torpe de produção-consumo, de nada vai adiantar o aferramento ao petróleo nos próximos 50 anos nem mesmo a sua substituição por novas fontes renováveis ou menos danosas de energia.
Produzir empregos demanda energia, demanda transporte, demanda infra-estrutura. Preservar a natureza demanda tudo isso também. E as duas coisas demandam comunicação rápida e eficaz, além de investimento em saúde e educação, sem falar numa cultura de conhecimento do meio-ambiente em suas particularidades e detalhes. E demanda uma rediscussão dos padrões de produção e de consumo no e do mundo inteiro.
Há pessoas que se apavoram diante da possibilidade de que os chineses, os indianos, os africanos e os latino-americanos (nessa ordem) venham a consumir como os norte-americanos e os europeus. “Isso vai acabar com o planeta”, dizem, com olhares assustados e com a veemência de quem está defendendo um valor universal: o seu próprio padrão de consumo. Ou seja: energia pouca, meu carrão, quero dizer, meu padrão primeiro. Os atrasados na corrida à sociedade de consumo, que continuem esfregando pauzinhos para fazer fogo, e se aquecendo com braseiros ou latinhas de álcool – álcool não, porque isso significa desviar combustível... É evidente que estou fazendo uma caricatura, mas conceitualmente essa caricatura tem muito de verdadeira, pouco de deformação.
Até o ano passado, o petróleo foi eleito o grande vilão do mundo. O petróleo era como o sistema colonial nas sociedades emergentes: era o vilão do “passado” que se abatia sobre nós. Agora o vilão passou a ser o futuro? Pode ser. Sabemos que é absolutamente necessário encontrar fontes agrícolas (além das hidrelétricas) de energia alternativas, combinando-as com a produção de alimentos. Ou se faz isso, ou a catástrofe vai se tornar inevitável. Mas sabemos também que temos de encontrar e consolidar padrões de consumo compatíveis com a sobrevivência do planeta e da espécie humana, e isso em todo e para todo o planeta.
Não há vilões na natureza. Os vilões não são nem serão “o etanol”, “o biodiesel”, “a cana de açúcar”, nem mesmo “o petróleo”. O problema é o que se faz com eles, quem faz, por quê, como, e como diziam os romanos, “cui prodest?”, isto é, quem lucra com isso. É hora de voltar à excelente entrevista que o professor Ignacy Sachs deu à Carta Maior no ano passado. Não há vilões na natureza, e o mundo já produz grãos suficientes para alimentar todo o mundo. O problema é que as pessoas pobres não têm dinheiro para comprar alimentos, e os países pobres não têm como subsidiar os seus pobres para que eles os comprem, enquanto os países ricos subsidiam os seus alimentos, e as agências por estes controladas desregulamentam e desorganizam as possibilidades daqueles se organizarem.
(Por Flávio Aguiar,
Agencia Carta Maior, 06/05/2008)