O petróleo do século 21 não está enterrado nas profundezas da terra. Em vez disso, ele incide sobre sua superfície -na forma de luz solar. "O sol é o bem escondido do Norte da África e Oriente Médio", diz Gerhard Knies, um porta-voz da Cooperação Transmediterrânea de Energias Renováveis (Trec, na sigla em inglês), uma rede de cientistas e políticos de vários países que busca resolver o problema de energia da Europa.
A visão deles, que chamam de Desertec, é transformar o sol do deserto em eletricidade, obtendo assim energia inesgotável, limpa e barata. "Nós não temos um problema de energia", diz Hans Müller-Steinhagen, do Centro Aeroespacial Alemão (DLR). "Nós temos um problema de conversão e distribuição." Müller-Steinhagen foi encarregado pelo Ministério do Meio Ambiente da Alemanha de checar a viabilidade do Desertec em vários estudos. Sua conclusão é de que o Desertec é uma possibilidade real.
Em seus estudos, ele analisou a situação de energia na Europa, Norte da África e Oriente Médio do ponto de vista da era pós-petróleo. Entre todas as fontes alternativas de energia, uma se sobressai acima das demais: "Nenhuma fonte de energia chega perto de obter a mesma densidade volumosa de energia que a luz solar", diz Müller-Steinhagen.
E nenhuma outra fonte de energia está disponível em uma área tão grande. A cada ano, 630 mil terawatts-hora na forma de energia solar não usada incide nos desertos dos chamados Estados Mena (sigla em inglês para Oriente Médio e Norte da África). Em comparação, a Europa consome apenas 4 mil terrawatts-hora de energia por ano -meros 0,6% da energia solar inutilizada que incide no deserto.
Deserto abastece a Europa
A Europa precisa de muita eletricidade, mas conta com pouco sol. Os países Mena, por outro lado, têm muito sol mas consomem pouca eletricidade. Assim, a solução é simples: o sul produz a eletricidade para o norte. Mas como funcionaria a enorme transferência de energia? E como transformar a luz solar do deserto em eletricidade?
Na verdade é relativamente fácil. O Desertec é relativamente de baixa tecnologia -nenhum reator de fusão nuclear caro, nenhuma usina elétrica a carvão emissora de CO2, nenhuma célula de energia solar ultrafina. O princípio por trás é familiar para qualquer criança que já queimou um buraco em uma folha de papel com uma lente de aumento. Espelhos curvos conhecidos como "coletores parabólicos" coletam a luz solar. A energia é usada para aquecer água, gerando vapor que então movimenta turbinas e gera eletricidade. Isto, de forma resumida, é como uma usina elétrica termo-solar funciona.
A energia pode ser coletada até mesmo à noite: o excesso de calor produzido durante o dia pode ser armazenado por várias horas em tanques de sal derretido. Desta forma as turbinas podem produzir eletricidade mesmo quando o Sol não estiver brilhando.
Mas o Saara precisaria ser completamente coberto de espelhos? Não, diz Müller-Steinhagen, apresentando uma imagem como resposta. Ela mostra um enorme deserto no qual estão desenhados três quadrados vermelhos. Um quadrado, aproximadamente do tamanho da Áustria, é rotulado de "mundo". "Se esta área for coberta por usinas elétricas alimentadas por coletores parabólicos, seria produzida energia suficiente para atender a demanda mundial", ele diz.
Um segundo quadrado, com apenas um quarto do tamanho do primeiro, é rotulado de "UE 25", em uma referência aos 25 países membros da União Européia antes do ingresso da Bulgária e da Romênia em 2007. Esta área poderia produzir energia solar suficiente para libertar a Europa da dependência do petróleo, gás e carvão. A terceira área é rotulada de "D", para Alemanha. É apenas um pequeno ponto.
Uma situação boa para todos
Segundo o plano, os países ricos em luz solar do Norte da África e do Oriente Médio construiriam as usinas termo-solares no deserto e gerariam a eletricidade. Como benefício colateral, eles usariam o calor residual para alimentar as usinas de dessalinização da água do mar, que forneceriam água potável em grande quantidade para os países áridos. Ao mesmo tempo, eles obteriam um produto valioso de exportação: eletricidade boa para o meio ambiente.
"Os países Mena estão em uma posição de tripla vitória", disse Müller-Steinhagen. Mas a Europa também ganha: ela se liberta de sua dependência do gás russo, da alta dos preços do petróleo, do lixo radioativo e das usinas elétricas a carvão que emitem CO2. Para países como Líbia, Marrocos, Argélia, Sudão e especialmente os países do Oriente Médio, o ramo de energia solar poderia ser o início de um futuro realmente ensolarado. Ele poderia criar empregos e desenvolver uma indústria de energia sustentável, que traria dinheiro para estes países e permitiria investimento em infra-estrutura.
Na verdade, o Desertec não é uma visão futurista -a tecnologia já existe e é testada e comprovada. Desde meados dos anos 80, usinas termo-solares operam sem problemas nos Estados americanos da Califórnia e Nevada. Mais usinas estão atualmente sendo construídas no sul da Espanha. E teve início a construção de usinas termo-solares na Argélia, Marrocos e Emirados Árabes Unidos.
Fazendo a troca
Müller-Steinhagen calculou quanto custaria a troca de energia: para gerar 15% da demanda de eletricidade da Europa, cerca de 400 bilhões de euros (US$ 623 bilhões) seriam necessários até 2050 para pagar pela construção das usinas termo-solares. As usinas termo-solares custariam 350 bilhões de euros, enquanto 50 bilhões de euros seriam gastos em uma rede de transmissão para transportar a eletricidade do Norte da África até a Europa.
Isto exigiria uma rede de linhas de transmissão de corrente contínua de alta tensão -uma tecnologia que também já existe e é testada e comprovada. É a única forma de transportar eletricidade por milhares de quilômetros com relativamente pouca perda de energia.
Mas se tudo é tão simples, então por que os países com radiação solar suficiente constroem usinas nucleares caras e perigosas, em vez de investirem nesta tecnologia simples? Não há desertos nos Estados Unidos? Por que os americanos não estão se libertando de sua dependência do petróleo por meio da energia solar? E por que ninguém realmente começou a explorar esta tecnologia?
"Após as usinas termo-solares terem sido construídas na Califórnia e Nevada, as pessoas perderam o interesse na energia termo-solar porque os combustíveis fósseis se tornaram insuperavelmente baratos", diz Müller-Steinhagen. A energia solar foi negligenciada apesar dos Estados Unidos estarem em uma posição vantajosa, em comparação à região Mena, de ser uma única entidade política em vez de um conglomerado de países com interesses diferentes. Os Estados Unidos poderiam atingir auto-suficiência em energia por meio de usinas termo-solares no sudoeste ensolarado. Mas foi apenas recentemente que cientistas, escrevendo na respeitada revista "Scientific American", apresentaram um "Grande Plano Solar" para os Estados Unidos.
O petróleo barato ficou no caminho do avanço da energia termo-solar. Apesar da abundância de luz solar na Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Kuwait e outros países, o petróleo também é. Mas estes países ricos também podem bancar a construção de usinas termo-solares. "Na Arábia Saudita ou nos Emirados Árabes Unidos, a eletricidade custa meio centavo por quilowatt-hora", diz Müller-Steinhagen. "Isto dificulta convencer as pessoas sobre os benefícios da energia termo-solar."
Falta de consciência
"Há uma falta de consciência nos países Mena a respeito do que esta tecnologia pode fazer", diz Samer Zureikat, fundador da empresa de energia renovável Mena Cleantech, com sede em Frankfurt. "Quando você fala com as pessoas sobre energia solar, elas pensam em pequenos painéis solares que alimentam iluminação de rua. Elas não pensam em enormes usinas elétricas que podem fornecer eletricidade suficiente para um país todo."
Para Zureikat, a troca para a energia termo-solar é uma necessidade da qual não se pode escapar. "A Europa precisa de energia. O Norte da África e o Oriente Médio precisam de água -e rápido." Müller-Steinhagen concorda com ele. Em um estudo diferente, ele investigou a necessidade futura de água da região e a possibilidade de dessalinização da água do mar com energia produzida por usinas termo-solares. A conclusão do estudo é que a escassez de água na região Mena triplicaria em 2050.
O interesse na energia termo-solar está crescendo lentamente. A Masdar, uma empresa de Abu Dhabi que investe em energia alternativa, é parceira em um projeto de construção de três usinas termo-solares na Espanha. Ela também quer construí-las em seu próprio país.
Reconhecidamente, a eletricidade de origem termo-solar ainda não é competitiva. Mas a energia gerada convencionalmente está ficando cada vez mais cara -e a energia termo-solar fica mais barata com a construção de cada nova energia elétrica. Em 2020 no mais tardar, prevê Müller-Steinhagen, a eletricidade termo-solar terá o mesmo preço que a energia gerada por combustíveis fósseis. Além disso, a termo-solar possui maior estabilidade de preço, já que o Sol produz energia ilimitada e gratuita, que não exige extração de matéria-prima elaborada e onerosa.
Sarko Solar
Müller-Steinhagen quer que as pessoas voltem sua atenção para a tecnologia -e rapidamente. Agora é o momento certo, ele diz: as antigas usinas elétricas da Europa estão chegando ao final de suas vidas úteis e novas precisam ser construídas. Estes investimentos decidirão o futuro de nossa energia, dado que a vida útil das usinas de força se estende por décadas.
E os políticos estão começando a se interessar pela idéia. O governo alemão a apóia. Na esfera européia, os membros alemães do Parlamento Europeu como Rebecca Harms, do Partido Verde, e Matthias Groote, do Partido Social-Democrata de centro-esquerda, estão dando seu apoio ao Desertec.
Até mesmo o presidente da França, Nicolas Sarkozy, também descobriu rapidamente a energia solar, apesar de suas recentes vendas de usinas nucleares para países do Norte da África. "Nós estamos sendo inundados por consultas da França", diz Müller-Steinhagen. Sarkozy quer promover a energia solar dentro de sua controversa União para o Mediterrâneo, uma proposta para uma aliança livre dos países que margeiam o Mar Mediterrâneo e outros países da UE.
Groote espera por "novas iniciativas quando a França assumir a presidência da UE no segundo semestre". Mas sua colega do Partido Verde, Harms, alerta contra o otimismo excessivo: "Ainda há apenas uma minoria no Parlamento Europeu promovendo a energia termo-solar. Nós ainda estamos a uma longa distância de uma política unificada de energia".
Perguntas demais continuam não respondidas. Quem pagará pela rede de transmissão? Quem seria dona dela? Será que os vários acionistas concordariam em um preço garantido coletivamente para a energia termo-solar transmitida pela rede? Esta última questão é particularmente importante para os investidores e para a indústria. Wolfgang Knothe, um membro do conselho da MAN Ferrostaal, uma provedora de serviços industriais, diz: "Nós precisamos de segurança política para avançar".
Falta de dinheiro não é o problema. "Energia renovável interessa", diz Nikolai Ulrich, do HSH Nordbank. "É relativamente fácil no momento obter investimento para projetos de energia renovável." O Desertec ainda é apenas uma visão. Mas visões são necessárias, diz Knothe: "Sem o sonho de Kennedy, o homem não teria pousado na Lua". Naquela época, a vontade para transformar a visão em realidade existia, apesar da tecnologia não. Com o Desertec, é exatamente o oposto: a tecnologia está disponível -mas falta a vontade.
(Por Jens Lubbadeh, Der Spiegel, tradução de George El Khouri Andolfato, UOL, 02/05/2008)