Atualmente, calcula-se que 18% da floresta amazônica esteja devastada. Até 2050, se o atual ritmo persistir, metade da área original desaparecerá. Em abril, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que detecta a devastação em tempo real, informou que 72,4 mil hectares foram devastados em fevereiro, 12% a mais que em janeiro. Esse quadro tende apenas a piorar com as pretensões do governo federal para a Amazônia: transformá-la numa área de expansão do agronegócio e de atuação de transnacionais para garantir o crescimento econômico, mesmo que às custas da destruição da floresta e do aprofundamento da concentração fundiária no Brasil. Conforme matéria publicada na edição 266 do Brasil de Fato, a medida provisória 422 – que legaliza a grilagem de terras públicas na Amazônia – sacraliza uma outra série de práticas ilegais na região. Em entrevista, Sérgio Leitão, do Greenpeace, analisa as conseqüências da MP, critica a visão que os sucessivos governos brasileiros têm da região e descreve o ciclo da destruição na floresta.
Brasil de Fato – Como o senhor vê a edição da medida provisória 422? Sérgio Leitão – Essa MP legaliza todo o processo de invasão de terras públicas feito na Amazônia; usa como justificativa o argumento de que é para beneficiar pequenos posseiros e ocupantes, ou seja, setores sociais que não são proprietários de terras. Isso não é verdade, pois, se olharmos o volume de área legalizada por essa MP – 1.500 hectares para cada dono –, essa afirmação não faz sentido. Alguém que tem 1.500 hectares não é um pequeno proprietário. Não há dúvidas de que a MP foi feita para beneficiar o processo de ocupação ilegal da Amazônia por grandes transnacionais. Isso já estava sendo reivindicado pela bancada ruralista, por meio de projeto de lei do deputado federal Asdrúbal Bentes (PMDB-RS). A MP é uma cópia dessa proposta. Quando o governo topa editar uma MP idêntica ao PL do Asdrúbal Bentes, é sinal de que atendeu à reivindicação ruralista. Isso mostra que ele não está disposto a criar restrições, proibições e ações efetivas que dêem conta da grilagem, pelo contrário, estimula o oposto disso. A mensagem é: quem invadiu e grilou está perdoado, quem não invadiu fica estimulado a fazê-lo. Há um duplo efeito nocivo: perdoar a ilegalidade e incentivar novas grilagens. Agora estamos vendo a questão da Raposa Serra do Sol, em Roraima. Uma parte do governo até quer resolver a questão da regularização das terras; outra parte cobra a desocupação pelos povos indígenas. A MP é parte desse pacote de desrespeito às posses de populações tradicionais.
Historicamente, nenhum governo tem mostrado vontade política de resolver a grilagem de terras públicas na Amazônia, certo? A visão dos governos sobre a Amazônia, principalmente de 1964 para cá, é a de que ela deve ser uma área de expansão de atividades econômicas que interessam ao país – ou o que os governantes acham que interessam ao país. Também é usada como “válvula de escape” da reforma agrária, já que ela não é feita. Então, dois terços da reforma agrária no período militar foi feita na Amazônia; dois terços dos assentamentos no governo Fernando Henrique Cardoso também; e dois terços dos assentamentos no governo Lula estão sendo feitos lá. Ou seja, não se resolve o que deve ser resolvido – a distribuição de terras – e a Amazônia vira um quarto de despejo dos conflitos agrários nacionais. O que se faz lá, aliás, é colonização agrária, que não mexe na expropriação e distribuição de terras, mas regulariza.
A violência no campo pode ser vista como uma conseqüência do que você descreveu? O mapa da violência de 2006 mostra que entre as 10 cidades mais violentas, em números relativos, quatro delas estão na zona de expansão da fronteira agrícola da Amazônia. Toda vez que há processos de invasões intensos no campo, há explosão da violência, pois todos começam a disputar o espaço, aparentemente sem dono. E como não há regularização de terras e uma ausência completa do Estado – não há polícia, Judiciário, Ministério Público – a solução dos conflitos é a bala. O município de Colniza, no Mato Grosso, fronteira com Rondônia, é emblemático. Há uma explosão da violência porque há todos esses elementos: madeireiras, frentes de grilagem, assentamentos do Incra. A terra pública não é vista como terra controlada pelo Estado, mas um espaço aberto para ser tomado pela grilagem que depois se legaliza com medidas como essa. Isso é o que no Greenpeace nós chamamos de plano de aceleração da grilagem.
Existe preocupação ambiental por parte do governo? Há pouco tempo houve debate sobre o aumento de desmatamentos e promessas de diminuí-lo. O que tem sido feito concretamente? Não existe preocupação ambiental. Parte pequena e sem poder até tem interesse em conter os desmatamentos. É algo assim: quem quer combater o desmatamento, não pode, não tem condição para isso. Já a parte que pode, não quer. Se compararmos o andamento do programa de combate ao desmatamento – uma ação que reúne vários ministérios sob a coordenação da ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Roussef – com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), também sob coordenação da Dilma, vemos uma clara distinção. Ela inaugura obras pelo Brasil, fala todo o tempo disso, mas nunca fala da necessidade de se conter a devastação da Amazônia. O Ministério do Meio Ambiente (MMA) até quer fazer, mas não pode. A Dilma pode, mas não quer, pois não está na prioridade de sua linha de ação. As medidas de combate ao desmatamento são apenas para compensar aquilo que o governo faz para estimular a política de ocupação e desmatamento da Amazônia. As ações funcionam mais como uma espécie de satisfação à opinião pública do que uma política séria. O grosso dos recursos governamentais são para fomentar atividades econômicas na região. Não há recursos para atividades sustentáveis. Não é dado crédito para agricultores que querem fazer plano de manejo na área de floresta, nem mesmo recurso para a área de pesquisa, ciência e tecnologia que ajude a pensar a questão do manejo das florestas, pois é um tema em que não há consenso científi co de que é possível regenerá-las, por exemplo. Os recursos só vão para o lado da destruição. Enquanto não mudar isso, os índices de desmatamento vão continuar altos. Quando essas taxas caem, é porque há uma queda dos preços dos produtos agrícolas. A ação do Estado nesse meio é residual.
A região é vista pelo Estado, então, unicamente como uma área de expansão agrícola? Nessa visão de crescimento econômico a qualquer preço, a região é tida como o espaço que vai permitir ao país manter a posição de grande exportador de produtos agrícolas e minerais, local disponível para a construção de grandes obras de infra- estrutura. Essa visão da Amazônia é um intransitivo da ação de governo, seja PT, PSDB, DEM/PFL ou militares. Não adianta nenhum ministro ou ministra se demonstrar bem intencionado, porque sua ação sempre será residual diante do restante do governo que vê a Amazônia como espaço a ser explorado para garantir o crescimento do país.
Como as atividades econômicas hoje realizadas afetam o meio ambiente? As forças econômicas da Amazônia funcionam quase como uma linha de montagem. No modelo clássico da fábrica de automóveis, cada um faz sua parte, e lá na frente você tem um carro pronto. Na Amazônia, há a linha de montagem da destruição. A primeira que chega é a madeireira, que abre a estrada, rasga a floresta e retira a madeira. Em seguida, queima-se o que sobrou e põe-se o gado. Depois, vem a monocultura da soja. Essas atividades econômicas não são isoladas, estão relacionadas entre si e operam hoje como uma frente de ocupação da região. A última etapa é a ida de transnacionais que vão para a região produzir a preços mais baixos do que obteriam em qualquer outro lugar, pois lá há abundância de terra e água, além de um clima regular e estável. As condições são imbatíveis. No final dessa linha de montagem temos grandes transnacionais instaladas, a floresta destruída e a região sendo mudada de forma radical. O prejuízo disso para o Brasil e para o mundo, do ponto de vista ambiental, é imenso, pois a Amazônia é uma região fundamental para o equilíbrio climático do planeta. A chuva que cai nas áreas agrícolas do país, inclusive no Centro- Sul e Sudeste, e também em toda região da Bacia do Rio da Prata tem relação com o regime de chuvas amazônico. O Inpe já comprovou que quando chove menos lá, chove menos nas áreas agrícolas do país, por exemplo.
Essas queimadas anunciadas nos jornais são feitas após a ação das madeireiras? Exato. Às vezes, dependendo do interesse econômico, já queimam direto. A voracidade e a velocidade com que agem as frentes de ocupação é brutal. Isso explica porque, hoje, já se tem 18% da floresta destruída. E isso só tende a crescer, pois todas as empresas estão indo para a Amazônia, quem não foi, está indo, comprando terra. Isso se reflete, por exemplo, nos projetos de lei, na pressão dos ruralistas para flexibilizar a legislação. Há, por exemplo, o PL 6424/2005, do senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA), que altera o código florestal para permitir o plantio de cana-de-açúcar para a produção de agrocombustíveis. Já passou no Senado e agora está na Comissão de Meio Ambiente da Câmara de Deputados. Na prática, o proprietário de terras, ao invés de recuperar a floresta derrubada, poderá cultivar “plantas exóticas” [plantas não originárias da Amazônia] como dendê, eucalipto e cana, com a desculpa de que isso ajudará o país na área de agrocombustíveis. Isso consolidaria o que já foi destruído e diminui a proteção. E a cana já está lá: no Pará, Mato Grosso, Acre, e vai crescer mais.
Além da pecuária de corte, há interesses das transnacionais em produzir leite também na região, não? A Amazônia estaria no plano de várias empresas que querem torná-la a maior bacia leiteira do mundo. Ali seria possível vender o litro de leite a 11 centavos de real. Se isso for verdade, essas condições de produção não se repetem em nenhum lugar no mundo. E parece algo plausível, porque hoje a Amazônia já é a maior produtora de carne do Brasil, e o Brasil, o maior produtor de carne do mundo. No resto do país, o rebanho cresce negativamente, ou seja, aumenta- se a atividade pecuária na Amazônia e diminui em outros lugares. Para ilustrar isso, em 1964, havia 1 milhão de cabeças de gado e hoje existem 80 milhões. Esse gado não nasceu todo lá, a maior parte foi levada; e continua sendo levada.
Qual é a visão que devemos ter da Amazônia? A visão de que a floresta pode prestar serviços econômicos e ambientais ao Brasil e à humanidade, sem ser derrubada. A visão, hoje, é que ela só serve se estiver no chão. O volume de área que já se desmatou é sufi ciente para manter todas as atividades agrícolas que se quer para a Amazônia. Mas param de cortar? Não, as pessoas querem terra nova, não uma que já foi desmatada, para, assim, cortar a floresta e entrar na dinâmica da linha de montagem. Até 2050, calcula-se que mais 25 ou 30% de seu território serão devastados, ou seja, até lá, metade da área original será destruída. Certamente haverá aumento de secas, queimadas e diminuição das chuvas. E aí podemos ver as confirmações dos cenários mais catastróficos.
Quanto 1 hectare corresponde a 10 mil metros quadrados, o equivalente a um campo de futebol
(Agência Brasil de Fato,
Amazonia.org.br, 28/04/2008)