Eventos climáticos que fogem à normalidade são esquecidos pelos pequenos fazendeiros da Amazônia três anos após sua ocorrência. Esse comportamento se reflete diretamente na forma como eles lidam com os possíveis impactos das mudanças climáticas na região. Essa foi a constatação de pesquisadores brasileiros e norte-americanos da Universidade de Indiana (EUA), que estudaram como as secas provocadas pelo fenômeno El Niño no final da década de 1990 afetaram a vida desses agricultores em médio prazo.
A pesquisa foi realizada em 2002, nas regiões de Altamira e Santarém, ambas no Pará, e teve seus resultados publicados na edição especial sobre a Amazônia editada pelo periódico científico britânico Philosophical Transactions B. O estudo apontou que quase metade dos fazendeiros entrevistados não se lembrava da grande seca prolongada causada pelo El Niño entre os anos de 1997 e 1998 e, por isso, não havia mudado a forma de lidar com a terra. No entanto, documentos oficiais do governo do Pará mostram que a triplicação dos incêndios acidentais nesse período ocasionou perda da produtividade e grandes prejuízos econômicos.
Mas a que atribuir a “memória curta” dos pequenos fazendeiros? Para o antropólogo brasileiro Eduardo Brondizio, um dos autores do estudo, os motivos são diversos: a memória desses eventos depende do nível de impacto sofrido durante a seca, da familiaridade dos agricultores (muitos recém-chegados) com os padrões climáticos da região, da falta de terminologia para distinguir a intensidade das secas e da falta de conexão entre um fenômeno continental como o El Niño e suas experiências em escala local. Além disso, “embora os agricultores sejam conscientes das mudanças globais, eles têm questões muito mais urgentes a serem solucionadas na região onde vivem”, afirma.
Ele ressalta a falta de assistência técnica aos produtores, tanto por parte do Estado, como da comunidade científica. “Existe muito pouca orientação sobre como eles devem proceder para reduzir o impacto ambiental de sua produção”, avalia. “A falta de recursos e de acesso a tecnologias obriga muitos agricultores a continuarem utilizando as queimadas para limpar o solo e prepará-lo para outro cultivo”, complementa. Segundo ele, a constante chegada e saída de famílias nessas áreas compromete a organização coletiva para enfrentar problemas comuns, como a dispersão de fogo entre propriedades.
O antropólogo também destaca a falta de estações de monitoramento climático, capazes de fornecer dados em escala adequada a diferentes pontos da região, bem como a deficiência do repasse de informações precisas sobre o clima aos agricultores, durante os períodos de seca e de chuva, entre outros. “Esse aparato evitaria a confusão feita por alguns deles entre o El Niño e outros eventos similares, como períodos de seca mais prolongada”, alega Brondizio.
A realidade social
Para realizar esse trabalho, os pesquisadores fizeram um levantamento sócio-demográfico e econômico nas cidades de Altamira e Santarém, onde já havia outras pesquisas na região que apoiaram essa iniciativa. Também foram feitos diversos trabalhos de campo com ênfase etnográfica, para melhor compreender os conhecimentos climáticos das pessoas, a terminologia utilizada por elas e as formas de ação coletiva para lidar com os problemas da seca e com o uso do fogo.
“Trata-se de uma população de pequenos proprietários, com em média cem hectares disponibilizados para a produção pelo Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária]”, explica Brondizio. “O grau de escolaridade é variado: enquanto alguns possuem poucos anos de escola, outros completaram o ensino médio. A renda desses agricultores é modesta e muitos dependem de subsídios do governo federal. A maioria possui em suas propriedades áreas de pastagem e partes cultivadas para o consumo e para a renda. Os principais cultivos são o cacau, a cana-de-açúcar, a mandioca e o arroz”.
Segundo o antropólogo, a maioria desses agricultores apontou como os principais problemas a serem combatidos a precariedade do sistema de transporte rodoviário, o acesso limitado a créditos agrícolas e a carência de assistência técnica. “Cerca de 95% desses produtores fazem uso do trabalho manual e de ferramentas rudimentares, e apenas 18% têm acesso a tratores”, afirma o pesquisador. “Esses fatores, aliados ao aumento substancial das grandes propriedades rurais que compram lotes originalmente designados para reforma agrária, com infra-estrutura bem superior à das pequenas, têm gerado a constante saída de famílias e, como conseqüência, a perda de uma memória coletiva sobre eventos como esse e a precarização de diversos serviços, como educação e saúde”, lembra.
Para Brondizio, é importante colocar para os pequenos agricultores a importância dos efeitos das mudanças climáticas e sua responsabilidade diante dela. “Contudo, é primordial melhorar as condições de vida dessas populações. Para tal, deve-se garantir o acesso não só a informações e tecnologias adequadas para a produção, mas também a um bom sistema de transporte, ao atendimento médico adequado e ao sistema educacional de qualidade”, defende o antropólogo.
(Por Andressa Spata, Ciência Hoje On-line, 24/04/2008)