"Um camelo pode ficar sem água por 30 dias. Uma economia em desenvolvimento, não." Esse texto faz parte da nova campanha da General Electric na China, feita para a divulgação dos serviços de tratamento e purificação de água que estão sendo realizados pela companhia americana no país. Por uma combinação entre desperdício, falta de planejamento, descaso ambiental e aumento da demanda, a China está no grupo dos países que mais sofrem atualmente com a escassez do recurso. Cerca de 70% de seus rios e lagos estão poluídos e mais da metade das cidades tem problemas de abastecimento.
Diante da gravidade da situação, o governo de Pequim decidiu investir no setor 125 bilhões de dólares nos próximos três anos. A quantia, acreditam os representantes do Partido Comunista, deve resolver boa parte das atuais deficiências e deixar a infra-estrutura preparada para suportar o ritmo de crescimento do país. Paralelamente à liberação de recursos oficiais, as autoridades vêm abrindo de forma gradual o setor à participação das companhias estrangeiras. "Nenhum outro lugar do mundo oferece hoje tantas oportunidades para projetos relacionados ao mercado de água", afirma o economista alemão Eric Heymann, analista do DB Research, braço de pesquisas do Deutsche Bank, em Frankfurt, na Alemanha.
A GE é uma das que têm demonstrado grande apetite por esse novo mercado. Com o objetivo de divulgar sua tecnologia de tratamento de água e fazer política de boa vizinhança com o Partido Comunista, a companhia investiu cerca de 80 milhões de dólares para fazer parte do grupo de patrocinadores da próxima Olimpíada. Também como parte de seu envolvimento com os Jogos, colocou outros 500 milhões de dólares em mais de 350 projetos relacionados à infra-estrutura para a competição, em áreas como transporte, segurança, energia, saúde, iluminação e água. Uma das grandes obras do pacote envolve o fornecimento de tecnologia a uma fábrica capaz de reciclar e filtrar mais de 80 000 metros cúbicos de água por dia em Pequim.
Outras multinacionais ligadas ao setor devem disputar espaço no mercado de água com a GE. Uma das pioneiras em investimentos nessa área na China, a Veolia Water, uma divisão da francesa Veolia Environment, possui hoje mais de 20 contratos de operação para distribuição e tratamento em cidades como Changzhou e Chengdu. Um de seus mais novos negócios é o gerenciamento completo de água da cidade de Haikou, capital da ilha de Hainan, ao sul do país, ponto turístico famoso entre os chineses. A Veolia investe 1,5 bilhão de dólares por ano no país, valor que deve aumentar mais de 60% até 2013. Outra companhia francesa com forte atuação no ramo, a Suez Environment, administra atualmente o fornecimento de água a 13,5 milhões de residentes chineses. Ela tem operações importantes como uma concessão de 30 anos, assinada em 2006, para o tratamento de água e esgoto dos mais de 6 milhões de habitantes de Chongqing, na região central do país, cidade que é um dos símbolos do progresso da China. Nos próximos cinco anos, a Suez planeja investir 750 milhões de dólares a fim de capitalizar o negócio local de água e esgoto. Em 2006, o país foi responsável por 6% do faturamento da companhia.
As empresas multinacionais perceberam que a água não é um bem como qualquer outro na China -- ela está cada vez mais rara no país e, portanto, mais valiosa. Os chineses detêm 7% dos recursos hídricos do mundo -- e 21% dos habitantes do planeta. O nível de água per capita é de 2 127 metros cúbicos por ano, ante 45 039 metros cúbicos do Brasil. O problema é ainda mais grave na região norte, que concentra quase metade da população do país e apenas 14% da água. A China sofre também com a falta de uma estrutura de fornecimento adequada, razão pela qual menos de 15% de sua população tem água potável em suas torneiras. Dois terços das 600 maiores cidades chinesas não têm sequer abastecimento regular. Para completar o quadro de problemas, há carência de uma boa rede de serviços de tratamento de resíduos agrícolas, domésticos e industriais, o que contribuiu para a poluição que vem destruindo as fontes limpas.
A dimensão do problema
As razões que transformaram a água num dos principais desafios para a China
Poluição
A falta de uma estrutura adequada de tratamento de esgoto e de resíduos industriais e agrícolas deixou resultados trágicos. Estima-se que mais de 70% dos rios e lagos da China estejam poluídos
Fornecimento inadequado
Mais da metade das cidades chinesas sofre com a falta de água. Na porção rural do país, a situação é ainda pior: só 67% da população tem acesso à água potável, ante 93% da urbana
Desvantagem natural
AChina tem 21% da população do planeta, mas só 7% do estoque de água. O norte do país é o mais desigual: concentra 42% dos chineses e só 14% da água
A SITUAÇÃO DE EMERGENCIA tem sido agravada pelo ritmo de crescimento econômico chinês, que exerce uma pressão enorme sobre a demanda do recurso. De acordo com o centro de estudos de água americano Pacific Institute, o consumo total de água na China aumentou 20% de 1980 a 2005. Mudou também o perfil de utilização. Antes, o setor industrial consumia apenas 7% da água disponível. Hoje, sua participação é de 25%. A demanda é tão grande que as fontes de água já não conseguem mais dar conta do recado. Muitas delas começam a apresentar sinais de esgotamento. É o caso da bacia do rio Hai, um dos três maiores do país, que tem capacidade para fornecer 17,3 bilhões de metros cúbicos de água por ano. As retiradas em 2007, no entanto, chegaram a 26 bilhões de metros cúbicos. Com isso, o Hai corre o risco de secar nos próximos anos.
O governo chinês começou a se preocupar mais seriamente com a questão só nos últimos anos. Em 1988, foi criada no país a Lei Nacional de Água, que estabelece as diretrizes para o uso do recurso, promovendo soluções para problemas nas áreas de gerenciamento, utilização, conservação e proteção das riquezas hídricas do país. Em 2006, o governo aumentou a ênfase no assunto ao lançar seu 11o plano qüinqüenal. Nele, as autoridades clamam pela construção de uma "sociedade que economiza água". "Hoje conseguimos ver que o governo chinês está realmente interessado em resolver a questão da infra-estrutura nesse setor", afirma Eric J. Heikkila, especialista em assuntos da China da Universidade do Sul da Califórnia, nos Estados Unidos. Um projeto grande do governo para reduzir os problemas de abastecimento da região norte pretende desviar mais de 40 bilhões de metros cúbicos de água do sul, a um custo de 62 bilhões de dólares. A obra, que deve ser finalizada em 2050, vai retirar água do rio Yangtze e levá-la ao norte através de mais de 2 500 quilômetros de canais, construídos em três fases. "O governo chinês sabe que há uma crise de água que está atravancando seu desenvolvimento. E seus esforços em tornar o país e sua economia sustentáveis se traduzem em enormes oportunidades de negócios em áreas como tratamento de água e esgoto", diz Jean-Louis Chaussade, presidente da Suez Environment.
O setor não vai necessitar apenas de obras de infra-estrutura. Num prazo curto de tempo, o governo de Pequim precisará rever a política de tarifas. O preço da água é muito baixo no país. Hoje, a média nacional do gasto das famílias com conta de água representa apenas 0,5% de seu orçamento, muito aquém do padrão de 5% sugerido pelo Banco Mundial para países em desenvolvimento. De acordo com muitos especialistas, aumentar as tarifas para o uso do recurso poderia conter o consumo e criar no país uma cultura de conservação e economia. Nacionalmente, o custo do uso de água residencial já subiu 42% de 2000 a 2005, de acordo com uma pesquisa do National Bureau of Statistics. Nas grandes cidades, a alta foi de 300% a 400% entre 2004 e 2006. Mas a conta ainda continua baixa. "Sem dúvida, os preços inferiores são uma das principais razões para o consumo alto, já que as pessoas não reconhecem neles a escassez do recurso. No entanto, é preciso ponderar os efeitos sociais de uma alta nos preços. A maior parte da população do país é de baixa renda", diz Eric Heymann, do DB Research.
Não é apenas a potência chinesa que enfrenta graves problemas relacionados ao uso desse recurso. De acordo com um estudo recente da consultoria Deloitte, só em 2008 mais de 1 bilhão de pessoas do planeta sofrerão com a falta de água limpa. Nas próximas duas décadas, o setor exigirá um investimento global de mais de 1 trilhão de dólares. "A água, assim como o petróleo, está se tornando escassa", afirmou recentemente Henri Proglio, presidente da Veolia Environment. Para muitos especialistas no assunto, a água promete ser para o século 21 o que o petróleo foi para o século 20: a commodity preciosa que determina a riqueza das nações. As novas economias emergentes em países da África e da Ásia são as que mais precisam de investimentos. Na África subsaariana, só 65% dos lares têm acesso à água potável, ante 90% na América Latina.
A questão torna-se mais preocupante quando se observa que faltam recursos à maioria dos governos para investimentos em infra-estrutura nessa área. Mesmo nações desenvolvidas, como os Estados Unidos, não escapam do problema. O país tem um déficit de 11 bilhões de dólares anuais no setor, de acordo com a Sociedade Americana de Engenheiros Civis. Em 2005, último dado disponível, o investimento foi de 850 milhões de dólares, menos de 10% do ideal. É consenso no mundo que a solução para evitar a catástrofe passa pelo aumento da participação da iniciativa privada. Hoje, 10% da população do planeta é servida por empresas privadas do setor hídrico. Essa taxa deve aumentar rapidamente nos próximos anos. No Oriente Médio, por exemplo, a Arábia Saudita começou a liberalizar o setor neste ano. Até 2010, o país pretende entregar metade do negócio de tratamento e distribuição de água à iniciativa privada. Mas, em termos de oportunidade de negócios, não há nada que se compare hoje ao que vem ocorrendo no mercado hídrico da China.
(Por Tatiana Gianini, EXAME, 17/04/2008)