Crime contra a humanidade ou meio de promover a independência dos países desenvolvidos? As expressões antagônicas usadas na última semana para definir o papel dos biocombustíveis no atual cenário mundial reacenderam uma polêmica sobre um tema que está se mostrando cada vez mais complexo, com implicações que podem ir além da fome. É o que mostra um levantamento feito no começo do ano pelo Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis da ONG Repórter Brasil.
Divulgado nesta quinta-feira à tarde em Buenos Aires, o trabalho aproveitou a rabeira do alvoroço causado pelo debate entre o relator da ONU para Direito à Alimentação, Jean Ziegler, e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva para sugerir que o plantio das culturas para a produção de agroenergia pode ter, além dos efeitos socioeconômicos, impactos ambientais, fundiários e trabalhistas.
Quem acompanha os anúncios dos índices de desmatamento da Amazônia já bem sabe que uma das vilãs do problema é a soja. O aumento no preço da commoditie no final do ano passado impulsionou o plantio, expandindo ainda mais a fronteira agrícola na região. Se por um lado isso ocorre pelo aumento da demanda chinesa pelo farelo da soja, por outro a necessidade de produção de biodiesel no País vem intensificando essa pressão. Estatísticas à parte, a ONG de jornalistas quis observar como isso vinha ocorrendo na prática.
Entre janeiro e março deste ano 2008, a equipe percorreu 19 mil km passando por Rio Grande do Sul, Paraná, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins, Pará, Ceará, Bahia, Piauí e Maranhão, além do Paraguai observando a expansão da soja e da mamona – as duas culturas contempladas neste primeiro relatório intitulado “O Brasil dos Agrocombustíveis – Impactos das lavouras sobre terra, meio e sociedade”. Por sua extensão no país, a soja apresentou, como era de se esperar, impactos bem mais consideráveis que a mamona, tanto que a cultura é reportada por meio de iniciativas de expansão. Ao longo deste ano serão avaliados ainda milho, algodão, dendê e babaçu, que vão compor o segundo relatório, e por fim a cana-de-açúcar e o pinhão manso.
Partindo de dados estatísticos de órgãos do governo e de ONGs que investigam o crescimento do setor e as mudanças no uso do solo, os pesquisadores listaram localidades em situação crítica e foram a campo. “O intuito era ouvir pesquisadores, governos locais, empresas, ONGS, movimentos sociais. Com base nos números coletados no início, tentar colocar uma cor neles, ver como eles se apresentam na realidade”, explica Marcel Gomes, coordenador do trabalho.
“Em algumas cidades onde a soja está chegando agora, as chamadas cidades de fronteira agrícola, no norte do Mato Grosso, na região da BR-163, foi onde encontramos os mais graves problemas. Além de desmatamento, há uma questão séria de concentração fundiária”, conta. Um município escolhido a dedo pelos pesquisadores foi o de Itanhangá, onde em 2004 o Instituto Socioambiental detectou a conversão direta de floresta em plantação de soja.
Apesar de ser considerada uma vilã notória do desmatamento, o papel do grão normalmente está na manutenção das áreas já degradadas do que propriamente na derrubada da floresta. No processo mais comum, inicialmente entra em ação um madeireiro ilegal, que retira as árvores nobres, depois as menos nobres e então limpa a área para os pecuaristas. Somente depois de alguns anos é que essa terra já “amansada” passa a ser usada para o cultivo de soja. E junto com o grão vêm junto cidades, estradas, aumentando o estrago.
Em Itanhangá foi diferente, como observaram os jornalistas. Originalmente um assentamento com 1145 lotes de cem hectares, o local foi perdendo suas características por falta de estrutura e abandono das famílias. “Com o tempo começaram a chegar na região pessoas capitalizadas que simplesmente compravam vários lotes para fazer uma grande fazenda de soja”, comenta Gomes.
“Na cidade, comenta-se que alguns produtores possuem dezenas de lotes, muitas vezes em nome de ‘laranjas’. Além da madeira, muitas vezes retirada irregularmente dessas áreas, o cultivo da soja avança no município, estimulado, por exemplo, por empresas de biodiesel que desejam conseguir o Selo Combustível Social dos produtos advindos da agricultura familiar”, escrevem os autores.
Segundo Gomes, outra situação que chamou a atenção foi o impacto da expansão da soja em comunidades indígenas, em especial naquelas que vivem no Parque Nacional do Xingu. “O parque até que está bem protegido, mas as cabeceiras dos rios que cortam o Xingu estão cercadas por plantação de soja. Os rios chegam ao parque contaminados por agrotóxico e isso vem mudando a alimentação dos indígenas. Eles já notaram, por exemplo, uma queda na quantidade de peixes.”
Explosão no cultivoAo longo do trabalho a equipe procura mostrar que o quadro tende a piorar se previsões do aumento do plantio de soja no País se concretizarem. Dados do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) e da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais estimam que o Brasil deve ter nos próximos 10 anos uma explosão no cultivo de soja. E nessa conta nem está sendo considerado o abastecimento para as usinas de biodiesel. A maior parte dessa expansão deve ocorrer para atender a demanda chinesa, que vai praticamente dobrar. Na safra 2007/2008, segundo números da USDA, a China importou 33,5 milhões de toneladas. A previsão para 2017/2018 é de 58,3 milhões do grão.
Esse aumento, não só no país oriental, como no mundo inteiro, “deve ser puxado por uma indústria de rações atenta à elevação do consumo internacional de carnes, que deverá passar de 38,2 quilos per capita, em 2005 para 42,6 quilos, em 2020, de acordo com dados da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO)”, escreve o grupo no relatório.
Gomes lembra que quem poderia suprir esse aumento da necessidade chinesa seriam os americanos, os argentinos e os brasileiros. “Mas os americanos estão muito preocupados com a plantação de milho para a produção de etanol. Se pensar que o petróleo não pára de subir, a tendência é que nos EUA, a longo prazo, haja uma pequena redução da área de soja e aumento grande da área de milho. Na Argentina há incentivos fiscais do governo para que a soja para exportação seja antes processada, o que encarece o preço. Assim sobra o Brasil”, pondera. “Se crescer como o previsto, os impactos que observamos agora em 2008 só tendem a piorar daqui a 10 anos.”
Quanto ao uso da soja para a produção de biodiesel, o relatório lembra que apesar de o grão hoje corresponder à 80% da produção do combustível, ele não é exatamente viável para esse fim. “A questão é que o óleo de soja é só um subproduto. Os produtores plantam por causa do farelo. Só 18% do grão viram óleo. Não é sustentável imaginar que o Brasil vá se tornar um grande produtor de biodiesel com base no óleo de soja. Acontece que a demanda para a produção continua crescendo. E a soja é a matéria-prima mais acessível, mais fácil de comprar. Daí a necessidade de incentivar outras culturas, como mamoma, dendê, pinhão manso, que nós vamos investigar nos outros relatórios”, afirma Gomes. “Só que enquanto essas outras alternativas não se apresentarem em uma quantidade grande o suficiente para abastecer as indústrias de biodiesel, a soja continuará sendo a mais utilizada, mesmo ela não sendo a mais eficiente do ponto de vista energético”, complementa.
E é aí que pode se refletir o temor da ONU de substituição de áreas de plantio de alimentos pelo cultivo da matéria-prima dos biocombustíveis. “No Brasil, até onde pudemos ver, a cultura alimentar ainda não está perdendo espaço em massa para a bionergia a ponto de causar problemas de oferta alimentar, mas a pesquisa não é definitiva em nada. Ocorre que se o país corresponder a essa expectativa de aumento do plantio da soja e tentar aumentar demais a oferta de produtos para fazer agrocombustível, é de se supor que o cenário será temário”, afirma Gomes.
Veja o
relatório completo(Por Giovana Girardi*,
O Eco, 24/04/2008)
*Giovana Girardi é jornalista especialista em ciência e meio ambiente