CURITIBA – É indisfarçável o orgulho dos paranaenses quando falam de sua agricultura. Eles têm razão, pois no Paraná a terra é abençoada. O solo fértil faz com que o estado esteja entre os campeões de produção de soja, cana-de-açúcar, milho, trigo e café, entre outros cultivos. Tanta diversidade foi possível também pela constituição histórica do Paraná, que juntou seus povos tradicionais, como indígenas, quilombolas e povos dos faxinais, a imigrantes alemães, poloneses, italianos, japoneses e ucranianos, entre outros. Esses dois fatores - riqueza do solo e diversidade cultural - permitiram que a agricultura familiar da região se consolidasse como uma das mais fortes do país.
Com tantas especificidades, qual impacto e expectativas causam a aplicação do Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel (PNPB) sobre a agricultura familiar paranaense? Na busca de respostas a esse questionamento, a série Debates Carta Maior foi à Curitiba na sexta-feira (18) para ouvir a opinião de diversos atores dos governos estadual e federal e dos movimentos sociais envolvidos com o programa de biodiesel no Paraná.
Participaram do debate Valter Bianchini (secretário de Agricultura e Abastecimento do governo do Paraná), Reni Antônio Bernardi (delegado federal do Ministério do Desenvolvimento Agrário no Paraná), Mário Plefk (vice-presidente da Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Estado do Paraná / Fetaep), Richardson de Souza (coordenador do Programa de Bioenergia do governo do estado), Ademir Antônio Rodrigues (diretor técnico do Instituto de Assistência Técnica e Extensão Rural do Paraná / Emater) e Alvori Cristo dos Santos (dirigente da ONG Departamento de Estudos Econômicos e Rurais / Deser). O debate, que foi mediado pelo diretor-geral da Carta Maior, Joaquim Ernesto Palhares, terá transmissão na íntegra pela TV Carta Maior.
Valter Bianchini foi o primeiro a citar as boas condições da agricultura familiar no Paraná: “Das 374 mil propriedades rurais no estado, 320 mil pertencem a agricultores familiares, o que representa quase 90% dos trabalhadores em regime de agricultura familiar. O Paraná tem uma expectativa de safra de 30 milhões de toneladas de grãos, e mais de 50% do valor bruto da produção vem da agricultura familiar. Temos um terço das terras agricultáveis, e a maioria abaixo de 50 hectares, o que mostra a potencialidade do estado. Além disso, o Paraná é o segundo estado produtor de etanol, com 1,9 bilhões de litros por ano. Na soja, com doze milhões de toneladas, o Paraná também é o segundo, depois do Mato Grosso. A agricultura familiar responde por mais de um terço dessa produção”.
Essa força de produção, segundo Richardson de Souza, pode ser adaptada às necessidades do programa de biodiesel: “O Paraná é muito grande, bastante diversificado em solos e clima e tem potencial para diversas espécies. Praticamente todas que estão aí disponíveis hoje na agricultura. O programa paranaense que enfoca o biodiesel foi definido não somente para desenvolver plantas aptas e compatíveis para o biodiesel, como também tecnologia para incentivar a agricultura familiar a introduzir as oleaginosas que já podem dar retorno em médio e longo prazos”, disse o coordenador, exemplificando em seguida as espécies que já estão sendo testadas no estado: “Temos girassol e mamona para iniciar, mas trabalhamos com outras oleaginosas com potencial, com outras plantas perenes, como o pinhão manso e o nabo forrageiro. O foco do programa é na agricultura familiar, queremos dar novas alternativas ao agricultor. Vemos também as janelas agrícolas para que o agricultor familiar possa aproveitar as safrinhas, como nabo e canola”.
Segundo Mário Plefk, a organização da agricultura familiar no estado também se reflete no fortalecimento de suas associações representativas: “Existem 336 sindicatos de trabalhadores rurais no estado, que trabalham todas as políticas de desenvolvimento da agricultura familiar. Esperamos que as políticas dos governos estadual e federal possam ajudar o agricultor familiar. Temos cautela com o biodiesel, que é um programa novo, e não temos ainda a segurança de que ele possa trazer resultados positivos para a agricultura familiar”, disse o vice-presidente da Fetaep.
A cautela em relação ao programa de biodiesel também é recomendada por Ademir Antônio Rodrigues: “Realizamos no estado um trabalho muito interessante na pesquisa das principais espécies de produção de óleo para biodiesel. Mas, o Emater está na fase inicial de acompanhamento e precisa ter certeza daquilo que vai estar influindo nos negócios dos agricultores. Nosso papel é avaliar a relação custo-benefício para o agricultor familiar. Estamos avaliando como PNPB vai se inserir”, disse.
Apesar das incertezas causadas pelo estágio inicial do programa, a expectativa quanto à obtenção de bons resultados relativos à inclusão social dos trabalhadores rurais e à proteção do meio ambiente é grande: “A pauta dos agrocombustíveis sem dúvida é uma pauta positiva. Poder discutir alternativas de produção e renda compatíveis com tecnologias mais limpas e focadas na proteção do meio ambiente é fundamental. É importante que os governos somem forças que possam passar o programa de biodiesel de uma política social para uma perspectiva de desenvolvimento para a agricultura familiar”, disse Alvori Cristo dos Santos.
Segundo Reni Antônio Bernardi, o MDA incorpora o pensamento governamental, de desenvolver o agricultor familiar: “A pauta do ministério é voltada para a inclusão social dos assentamentos, das populações tradicionais e da agricultura familiar de um modo geral. O Brasil dá mostras nos últimos anos de que é possível a convivência de uma forte agricultura familiar, que tenha espaço no mercado, com uma agricultura de base empresarial. No Paraná, isso vem acontecendo. Nosso trabalho é dialogar fortemente com os movimentos sociais e o governo estadual”, disse.
Bernardi aponta os desafios do PNPB no estado: “Há uma discussão de como incluir o agricultor familiar na produção de etanol, da qual pouco participa. Para promover a inclusão na cadeia do biodiesel, é fundamental descobrir matérias-primas que sejam mais adequadas que a soja para a agricultura familiar, mas tudo é ainda muito embrionário. Outro ponto é fortalecer a assistência técnica e a extensão rural, pois sem isso a agricultura familiar vai ter poucas condições de efetivamente participar da cadeia do biodiesel”.
Segurança alimentarOs eventuais riscos que a expansão do cultivo de oleaginosas para a produção de energia pode trazer à segurança alimentar do trabalhador rural também foi debatida: “A segurança alimentar é outra questão desafiadora para a produção do biodiesel. No Paraná, uma unidade produtiva consegue hoje disponibilizar cerca de dez hectares de área para cultivo, dependendo das combinações de safras de inverno e de verão ou das safrinhas, que são comuns no estado. O risco entre a produção de oleaginosas e segurança alimentar se coloca na perspectiva de que haverá necessariamente uma negociação de impacto sobre a ocupação desse espaço produtivo”, disse Cristo dos Santos.
Valter Bianchini lembrou que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em recente reunião da FAO, defendeu que é possível compatibilizar a produção para a segurança alimentar com a produção para energia: “Aqui no Paraná pensamos da mesma forma. O estado tem uma área de 20 milhões de hectares, com seis milhões destinados à agricultura. Temos quatro milhões de hectares para a soja, 1,5 milhão para ao milho, mas temos outras culturas como o feijão, o trigo, etc. No inverno, nos preparamos para a safrinha do milho e do trigo. O Paraná produz mais de 30 milhões de toneladas de soja, e uma parte é exportada devido a uma política que incentiva a produção de grãos. Outra parte vira óleo e outra vira farelo. Produzimos cinco milhões de litros de óleo, parte desse mercado pode ser destinado a bioenergia”, disse o secretário, citando três questões que considera fundamentais no programa de biodiesel: “Inclusão social, segurança alimentar e proteção ao meio ambiente”.
Mário Plefk voltou a recomendar cautela: “Existem culturas que até hoje não têm zoneamento para a produção de biodiesel. Além disso, não dá pra gente deixar de plantar nosso café, milho e soja e se voltar para o biodiesel. Aconselhamos o agricultor familiar a começar o cultivo das oleaginosas com um ou dois hectares no máximo. Discutimos também o custo de produção, pois não adianta ter venda garantida se o custo de produção é de R$ 700 reais e a venda sai a R$ 750. A opção pelas oleaginosas não se justifica com uma rentabilidade minúscula. Precisamos discutir como implementar uma política pública que efetivamente venha trazer resultados para a agricultura familiar. Nós imaginamos, para daqui a alguns anos, não vender a matéria-prima, mas o vender o produto. Só assim o PNPB vai apresentar resultados”.
Reni Bernardi reconheceu que “a questão do zoneamento é importante”. No caso do Paraná, avalia o delegado do MDA, “é preciso que se estabeleça o zoneamento para que haja limite para a expansão da cultura da cana-de-açúcar e para que a monocultura não crie ambientes aonde a biodiversidade será bastante reduzida”. Bernardi disse que “não há contradição” entre alimentos e bioenergia: “Não temos crise de abastecimento no país, e sempre que precisamos de alimentos, os tivemos. O problema é gerar renda para incentivar o consumo. Não vejo no horizonte nenhum conflito insuperável entre produção de alimentos e produção de energia”.
Petróleo e alimentosA influência do mercado de petróleo na produção do biodiesel também foi lembrada pelos debatedores: “Se o preço do barril de petróleo descer até os 70 dólares, a pauta dos biocombustíveis pode não ser tão interessante para o mercado. Precisamos de uma grande plataforma energética, onde os biocombustíveis façam farte dessa equação. A geração de energia com serviço ambiental pode ser um marco para organizar isso. A pauta política do agronegócio já desenhou uma alta inflacionária dos alimentos, como o feijão e a soja”, disse Cristo dos Santos.
Para Bianchini, o aumento da demanda e o impacto do aumento do preço do petróleo e derivados contribuem para elevar os custos da agricultura: “É preciso minimizar essa afirmação de que os biocombustíveis são os causadores do aumento, pois existe uma multiplicidade de fatores. É possível responder pela segurança alimentar e pela produção de energia, além de garantir a proteção dos biomas. É possível construir um modelo que possa atender a essa multifuncionalidade da agricultura”, disse.
As recentes descobertas de petróleo e gás feitas pelo Brasil, segundo Richardson de Souza, não devem ser usadas como pretexto para que se enfraqueça o programa de biodiesel: “Como brasileiro, a notícia de que o país pode ser um dos maiores produtores de petróleo do mundo me tranqüiliza. Mas, a discussão de deslocar a matriz energética e trocar a dependência de energias fósseis para energias menos poluentes é uma pauta que vai ser crescentemente discutida pelo mundo inteiro”, disse.
“Mesmo com a renovação de nossos estoques de petróleo por 50 ou cem anos, a sociedade brasileira tem que discutir a substituição das matrizes fósseis e a utilização de energias renováveis. Vejo, com essa substituição, um ambiente externo favorável para a agricultura brasileira, e a agricultura familiar vai ter um papel fundamental. Se os governos encontrarem um equilíbrio econômico e social, isso vai se sustentar por muitos anos”, completou Souza.
(Por Maurício Thuswohl,
Agencia Carta Maior, 22/04/2008)