Em um momento no qual os principais especialistas em clima concordam que as emissões de carbono precisam ser reduzidas rapidamente para conter o aquecimento global, a maior geradora de eletricidade da Itália, a Enel, está modificando a sua enorme usina termoelétrica para que esta troque a queima de óleo pela de carvão, o combustível mais sujo do planeta. No decorrer dos próximos cinco anos, a Itália aumentará a sua dependência do carvão de 14% para 33%. O uso do carvão para a geração de eletricidade pela Enel aumentará para 50%.
E a Itália não é a única nação européia a retornar ao carvão. Movidos pelo aumento da demanda, os preços recordes do petróleo e do gás natural, as preocupações quanto à segurança energética e uma aversão à energia nuclear, os países europeus deverão construir cerca de 50 usinas termoelétricas movidas a carvão nos próximos cinco anos. Elas serão utilizadas durante as próximas cinco décadas.
Nos Estados Unidos, um número menor de usinas a carvão será construído, em parte porque está ficando cada vez mais difícil obter licenças junto às reguladoras, e ainda porque a energia nuclear continua sendo uma alternativa viável para os norte-americanos. Das 151 propostas de construção de usinas movidas a carvão apresentadas no início de 2007, mais de 60 foram canceladas, sendo que muitas foram bloqueadas por governos estaduais. Dezenas de outras estão encalhadas na justiça.
As economias de rápida expansão da Índia e da China, nas quais o carvão continua sendo uma grande fonte de energia para mais de dois bilhões de pessoas, há muito tempo são vistas como alguns dos maiores desafios para a redução das emissões de carbono. Mas o atual retorno do carvão até mesmo na Europa, um continente ecologicamente consciente, está semeando um alarme concreto entre os ambientalistas que advertem que o fenômeno está colocando o mundo em uma trajetória desastrosa que fará com que seja impossível controlar o aquecimento global.
Eles estão horrorizados com o renascimento do carvão, um combustível geralmente associado às fábricas emissoras de fuligem presentes nos romances de [Charles] Dickens, e que há apenas uma década era considerado uma página virada da história européia. Houve protestos aqui em Civitavecchia, em uma nova usina de carvão na Alemanha, e em uma outra na República Tcheca, bem como na usina de Kingsnorth, em Kent, que deverá tornar-se a primeira termoelétrica movida a carvão a ser construída na Grã-Bretanha em uma década.
Os proprietários das usinas de geração de eletricidade da Europa enfatizam que estão tornando as novas usinas a carvão o mais limpo possível. Mas os críticos afirmam que "carvão limpo" é apenas um sonho, uma contradição no que se refere às emissões de carbono que mais têm importância para a mudança climática. Eles dizem que esta onda de construção de usinas a carvão é uma iniciativa nada inteligente.
"A construção de novas usinas termoelétricas movidas a carvão é uma tolice", critica James E. Hansen, um climatologista famoso do Instituto Goddard de Estudos Espaciais da Nasa. "Levando-se em conta o nosso conhecimento a respeito do que é preciso ser feito para estabilizar o clima, esse plano é como entrar atabalhoadamente em uma guerra sem uma estratégia coerente, ainda que as informações estejam disponíveis. Neste momento precisamos parar de construir usinas a carvão, e de desativar progressivamente aquelas já existentes no decorrer das próximas duas décadas".
Vantagens do carvão
Assim como muitas outras companhias elétricas, a Enel diz que não tem muita escolha, a não ser construir usinas movidas a carvão para substituir uma infra-estrutura antiga, especialmente em países como Itália e Alemanha, que proibiram a construção de usinas nucleares. Os custos dos combustíveis aumentaram 151% desde 1996, e os italianos são os que pagam o preço mais alto pela energia elétrica na Europa.
Em termos de custo e de segurança energética, o carvão tem as suas vantagens, conforme argumentam os seus defensores. As reservas de carvão durarão mais 200 anos, enquanto as de gás e petróleo se esgotarão nos próximos 50 anos. O carvão é relativamente barato quando comparado ao petróleo e ao gás natural, embora o seu preço tenha triplicado nos últimos anos. E, o mais importante, centenas de países exportam carvão - não existe, portanto um cartel desta matéria-prima - de forma que há mais espaço para a negociação dos preços.
"A fim de superar o choque do petróleo, que está ficando cada vez mais caro, o nosso plano é converter todas as usinas movidas a óleo para carvão, usando tecnologias limpas", afirma Gianfilippo Mancini, diretor da gerência de geração de energia da Enel. "Esta será a usina a carvão mais limpa da Europa. Esperamos provar que é possível utilizar carvão de maneira sustentável e sem agredir o meio ambiente".
"Carvão limpo" é um termo que foi cunhado pela indústria décadas atrás, em uma referência às tentativas de redução da poluição local. A utilização de usinas de "carvão limpo" com novas tecnologias reduziu drasticamente o número de partículas de fuligem emitidas na atmosfera, bem como a quantidade de gases como o dióxido de enxofre e o óxido nitroso. A tecnologia não afeta a emissão de carbono.
Na verdade, a tecnologia com a qual a indústria está contando para a redução das emissões de dióxido de carbono que contribuem para o aquecimento global - captura e armazenamento de carbono - não está ainda comercialmente disponível. Ninguém sabe se ela é viável em grande escala em termos de custo e benefício.
A tarefa - bombear as emissões de carbono para reservatórios subterrâneos, em vez de liberá-las na atmosfera - é um desafio em se tratando de qualquer fonte de energia, e especialmente no caso do carvão, que produz mais dióxido de carbono do que o petróleo ou o gás natural.
Sob as melhores condições atualmente disponíveis, o carvão produz mais do dobro de dióxido de carbono por unidade de eletricidade em relação ao gás natural, o segundo combustível mais comum usado para a geração de energia, segundo o Instituto de Pesquisas sobre Energia Elétrica. No mundo em desenvolvimento, onde até mesmo as novas usinas utilizam um carvão de teor mais baixo e máquinas menos eficientes, essa equação é ainda pior.
A luta para ser verde
Sem captura e armazenamento o carvão não pode ser "verde". "Mas a resolução desse problema exigirá coordenação global e um investimento de bilhões de dólares, algo que nenhum país ou companhia parece inclinado a despender", afirma Jeffrey D. Sachs, diretor do Instituto da Terra, da Universidade Colúmbia. "Descobrir como capturar carbono é algo realmente crítico, e que no final pode não funcionar. E caso isto seja inviável, a situação no que diz respeito à mudança climática será bem mais grave", alerta Sachs.
Existem algumas dezenas de pequenos projetos de demonstração na Europa e nos Estados Unidos, a maioria deles no estágio inicial. Mas o progresso na área não tem sido promissor.
No final de janeiro deste ano, o governo Bush cancelou aquele que até então era o maior projeto de demonstração de captura de carbono nos Estados Unidos, uma usina termoelétrica movida a carvão no Estado de Illinois, devido aos enormes gastos. O custo do projeto, que teve início em 2003 com um orçamento de US$ 950 milhões, disparou para US$ 1,5 bilhão neste ano, e a usina está longe de ser concluída.
A União Européia comprometeu-se a desenvolver 12 projetos pilotos de captura de carbono para a Europa, mas até mesmo aquela organização afirma que isso não é suficiente.
Muitos comparam a transição dos laboratórios de demonstração para a utilização segura, barata e com disponibilidade de recursos nas grandes usinas termoelétricas a um desafio equivalente a colocar um homem na Lua. A Noruega, que está investindo pesadamente para testar a tecnologia, chama a captura de carbono de o seu "pouso na Lua".
E o desafio pode ser na verdade mais difícil do que isso. Trata-se de uma alunissagem que precisa ser reproduzida diariamente em milhares de usinas movidas a carvão em centenas de países - a maioria deles pobre. A cada semana surge uma nova usina movida a carvão na Índia e na China, e a maioria delas não é construída de forma a possibilitar a captura de carbono, mesmo que a tecnologia para isso já tivesse sido desenvolvida.
As usinas que poderiam ser algum dia adaptadas para capturar carbono têm um custo de construção de 10% a 20% mais elevado, e atualmente existem poucas delas. Para a maioria das usinas movidas a carvão os custos de conversão seriam "fenomenais", foi o que concluiu um relatório da Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos.
Além disso, há o problema da armazenagem do carbono, que, em determinado nível, é um problema intrinsecamente local. Os geólogos precisam determinar se existe um local subterrâneo apropriado, calcular a quantidade de carbono que pode ser armazenada nele e, a seguir, equipá-lo de maneira a prevenir vazamentos e garantir a segurança. De acordo com os críticos, um grande vazamento subterrâneo de carvão poderia ser tão perigoso quanto um vazamento de combustível radioativo.
Quanto a usina daqui, a Enel diz que dará início às experiências com a tecnologia de captura de carbono em 2015, na esperança de "encontrar uma solução" até 2020.
"Isso é tarde demais", adverte Sachs. "Neste ínterim, esta e outras usinas movidas a carvão estarão despejando na atmosfera mais gases causadores do efeito estufa do que nunca, o que significará que as atuais previsões climáticas - por mais sombrias que sejam - poderão mostrar-se muito otimistas. Elas assumem que haverá a manutenção da velha mistura energética, ainda que a participação do carvão seja maior".
Uma usina eficiente
Em muitas outras frentes, a nova usina da Enel é um modelo de eficiência e de reciclagem. O óxido nitroso é quimicamente alterado para a geração de amônia, que é comercializada. O gesso e a cinza de carvão resultantes são vendidos para a indústria de cimento. Uma usina de dessalinização instalada no local significa que a operação gera a sua própria água para resfriamento. Nem mesmo a água aquecida que sai da usina é perdida: ela aquece uma fazenda de criação de peixes, a maior da Itália.
Mas o plano da Enel para lidar com as emissões de carbono da nova usina consiste em sua maior parte em um mapa da Itália com várias grandes manchas ovais que representam cavidades subterrâneas que têm potencial para armazenar dióxido de carbono. Essas cavidades não foram totalmente estudadas pelos geólogos de forma a garantir que se tratam de locais de armazenagem seguros e bem lacrados. Não existe nenhuma infra-estrutura ou equipamento que permita a transferência do carbono para essas cavidades.
A nova usina da Enel inaugurará a sua primeira caldeira em dois meses. Ela produzirá imediatamente menos emissões de carbono do que as caldeiras antigas movidas a óleo, mas isso se deve apenas ao fato de que gerará menos eletricidade, conforme admitem os funcionários da empresa.
Nas cidades em torno de Civitavecchia, a chegada eminente da grande usina a carvão, com as suas três cúpulas prateadas, está sendo recebida com uma grande dose de medo.
"Eles chamam isso de carvão limpo porque usam alguns filtros, mas na verdade é algo que não faz nenhum sentido", critica Marza Marzioli, porta-voz do grupo Não ao Carvão, da antiga cidade etrusca de Tarquinia, vizinha a Civitavecchia. "Se você compará-la com a usina antiga, sim, ela é melhor, mas não é 'limpa' de maneira alguma".
O grupo afirma que a Enel conseguiu a aprovação para uma nova usina perigosa movida a carvão comprando máquinas para um hospital da região e fazendo uma intensa campanha de relações públicas. As propagandas da Enel sobre o projeto mostram uma garotinha apagando a chaminé de uma usina termoelétrica. A maioria das pessoas que participaram de um plebiscito local sobre a nova usina em 2007 votou contra ela, mas, de acordo com o grupo, o projeto seguiu em frente assim mesmo.
A União Européia, através do seu sistema de comércio de emissões, tentou fazer com que as usinas levassem em consideração os custos do carbono, obrigando-as a comprar "permissões" para as emissões. Mas a Enel chegou à conclusão de que, com o preço do petróleo tão elevado, o carvão é bem mais barato, mesmo ao se contabilizar o custo dessas licenças para poluição.
Stephan Singer, que administra o escritório europeu de clima e energia do WWF, o antigo World Wildlife Fund, em Bruxelas, na Bélgica, diz que essa matemática é míope. "O custo do carvão e das licenças com certeza aumentará na próxima década. Se eles querem que o carvão seja parte da solução energética, precisam prova para nós que a captura de carbono pode ser feita agora, e que são de fato capazes de reduzir as emissões a um nível aceitável", diz Singer.
(Por Elisabeth Rosenthal, The New York Times, tradução UOL, 23/04/2008)